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O mais turbulento dos anos para a Receita Federal


Por Kleber Cabral e Marchezan Taveira
Kleber Cabral. Foto: Arquivo Pessoal

Pode-se dizer que 2019 foi um dos mais nervosos anos na história de mais de meio século da Receita Federal - e certamente o mais atribulado dos últimos tempos. Sob fogo cerrado de fortes grupos de pressão, a instituição e seus auditores fiscais ficaram sob a mira acurada de autoridades do mais grosso calibre, unicamente por estarem cumprindo sua missão constitucional de fiscalizar, colhendo dados, cruzando informações e identificando de maneira impessoal movimentações financeiras atípicas de agentes públicos. De todos os átrios do poder vieram petardos: Executivo, STF, Congresso Nacional, TCU.

O desastroso vazamento da informação de que estavam sendo analisadas, em caráter preliminar, inconsistências nas contas do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, em fevereiro, deu início à temporada de caça. Estava aberta a caixa de Pandora. Dias depois, o ministro Dias Toffoli, atendendo a convite, comparecia à cerimônia de posse da atual diretoria do Sindifisco Nacional, na qual brindou os presentes com uma espécie de "spoiler" do seu voto (o original, depois alterado e reescrito) no julgamento, em novembro último, do compartilhamento de dados entre Receita Federal e Ministério Público - entendimento que respaldou, em julho, a liminar deferida pelo ministro a Flávio Bolsonaro, que também estava presente àquela cerimônia na noite de 13 de fevereiro.

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Hoje já se têm provas de que os documentos que chegaram à imprensa saíram da empresa Fibria Celulose, também alvo de análise fiscal, que, inadvertidamente, teve acesso a relatório fiscal sobre Gilmar e Guiomar Mendes. Mas o episódio deu azo à narrativa conspiratória de que a Receita Federal atuava por "encomenda" de outros órgãos de poder para pressionar autoridades da República, criando um ambiente favorável ao surgimento de propostas para desfigurar e enfraquecer um dos mais eficientes e republicanos órgãos de Estado do país.

Nesse vácuo muito bem dilatado, articulou-se a introdução de uma emenda "jabuti" na medida provisória 870, proibindo os auditores de fiscalizarem casos envolvendo crimes correlatos à sonegação, como lavagem de dinheiro e corrupção, bem como vedando o compartilhamento de informações entre a Receita Federal e o Ministério Público sem prévia autorização judicial, o que burocratizaria, retardaria e em muitos dos casos inviabilizaria qualquer tipo de investigação, agravando a impunidade que assola o país.

A proposta não prosperou porque houve forte reação dos auditores fiscais, que denunciaram a manobra para a opinião pública. Apesar de vencida a batalha, algumas lideranças partidárias no Congresso Nacional, não por acaso envoltos em processos fiscais e penais, voltaram a investir contra a Receita Federal, tentando incluir o texto da "emenda da mordaça" em outro projeto de lei.

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Por conta do vazamento, ainda não explicado nem assumido pela Fibria, dois auditores fiscais foram indevidamente afastados de suas funções e todas as fiscalizações envolvendo agentes públicos, incluindo pessoas ligadas aos próprios ministros do STF, foram suspensas.

Ao mesmo tempo, a Receita Federal passou a ser alvo de investidas intimidatórias de Bruno Dantas, ministro do TCU, que intimou o órgão a fornecer nome e matrícula de todos os auditores que acessaram dados fiscais de altas autoridades públicas, cônjuges e familiares, nos últimos 5 anos. O TCU enviou à Receita uma lista de CPFs, no intuito de identificar quem acessara dados fiscais daqueles contribuintes "especiais".

A relação continha o grupo denominado de pessoas politicamente expostas (PPE), a quem os tratados internacionais determinam maior vigilância do Fisco, maior rigor sobre suas movimentações financeiras, por estarem mais expostas, em razão do cargo que ocupam, ao cometimento de ilícitos financeiros. A ordem do TCU vinha na direção contrária, fazendo das PPEs uma espécie de lista VIP, constrangendo aqueles que têm o dever de fiscalizá-las e colocando os auditores fiscais numa posição desconfortável de suspeição perante a opinião pública.

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Todas essas medidas repercutiram mal na comunidade internacional. Os auditores fiscais denunciaram a situação ao GAFI e à OCDE, que cobraram explicações das autoridades brasileiras. A arbitrariedade do TCU foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendendo a um mandado de segurança impetrado pelo Sindifisco Nacional. Na sequência, Alexandre de Moraes voltou atrás da decisão que afastara auditores fiscais do exercício de suas funções e o plenário do Supremo refutou a tese da proibição do compartilhamento de informações entre Receita Federal e outros órgãos.

Se a Receita Federal segurou o tranco e sobreviveu à tormenta de 2019, o enredo para 2020 pode ser outro. A LOA do próximo exercício impõe ao órgão um corte de 36% sobre o orçamento de 2019 (de 2,8 para 1,8 bilhões de reais), o mesmo valor nominal de 12 anos atrás. Nesse caso, não se pode culpar o Congresso. O corte foi proposto pelo próprio Ministério da Economia: uma aposta que tem tudo para dar errado. Sufocar a máquina arrecadadora federal em plena crise fiscal é algo que nem os mais heterodoxos fariam. Com um corpo funcional muito reduzido e abandonando investimentos, estamos diante de um redesenho drástico da Receita Federal, que pode pôr em xeque não só a sobrevivência da instituição como todo o aparato de repressão à sonegação e à corrupção no Brasil.

*Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)

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*Marchezan Taveira, auditor fiscal da Receita Federal e jornalista

Kleber Cabral. Foto: Arquivo Pessoal

Pode-se dizer que 2019 foi um dos mais nervosos anos na história de mais de meio século da Receita Federal - e certamente o mais atribulado dos últimos tempos. Sob fogo cerrado de fortes grupos de pressão, a instituição e seus auditores fiscais ficaram sob a mira acurada de autoridades do mais grosso calibre, unicamente por estarem cumprindo sua missão constitucional de fiscalizar, colhendo dados, cruzando informações e identificando de maneira impessoal movimentações financeiras atípicas de agentes públicos. De todos os átrios do poder vieram petardos: Executivo, STF, Congresso Nacional, TCU.

O desastroso vazamento da informação de que estavam sendo analisadas, em caráter preliminar, inconsistências nas contas do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, em fevereiro, deu início à temporada de caça. Estava aberta a caixa de Pandora. Dias depois, o ministro Dias Toffoli, atendendo a convite, comparecia à cerimônia de posse da atual diretoria do Sindifisco Nacional, na qual brindou os presentes com uma espécie de "spoiler" do seu voto (o original, depois alterado e reescrito) no julgamento, em novembro último, do compartilhamento de dados entre Receita Federal e Ministério Público - entendimento que respaldou, em julho, a liminar deferida pelo ministro a Flávio Bolsonaro, que também estava presente àquela cerimônia na noite de 13 de fevereiro.

Hoje já se têm provas de que os documentos que chegaram à imprensa saíram da empresa Fibria Celulose, também alvo de análise fiscal, que, inadvertidamente, teve acesso a relatório fiscal sobre Gilmar e Guiomar Mendes. Mas o episódio deu azo à narrativa conspiratória de que a Receita Federal atuava por "encomenda" de outros órgãos de poder para pressionar autoridades da República, criando um ambiente favorável ao surgimento de propostas para desfigurar e enfraquecer um dos mais eficientes e republicanos órgãos de Estado do país.

Nesse vácuo muito bem dilatado, articulou-se a introdução de uma emenda "jabuti" na medida provisória 870, proibindo os auditores de fiscalizarem casos envolvendo crimes correlatos à sonegação, como lavagem de dinheiro e corrupção, bem como vedando o compartilhamento de informações entre a Receita Federal e o Ministério Público sem prévia autorização judicial, o que burocratizaria, retardaria e em muitos dos casos inviabilizaria qualquer tipo de investigação, agravando a impunidade que assola o país.

A proposta não prosperou porque houve forte reação dos auditores fiscais, que denunciaram a manobra para a opinião pública. Apesar de vencida a batalha, algumas lideranças partidárias no Congresso Nacional, não por acaso envoltos em processos fiscais e penais, voltaram a investir contra a Receita Federal, tentando incluir o texto da "emenda da mordaça" em outro projeto de lei.

Por conta do vazamento, ainda não explicado nem assumido pela Fibria, dois auditores fiscais foram indevidamente afastados de suas funções e todas as fiscalizações envolvendo agentes públicos, incluindo pessoas ligadas aos próprios ministros do STF, foram suspensas.

Ao mesmo tempo, a Receita Federal passou a ser alvo de investidas intimidatórias de Bruno Dantas, ministro do TCU, que intimou o órgão a fornecer nome e matrícula de todos os auditores que acessaram dados fiscais de altas autoridades públicas, cônjuges e familiares, nos últimos 5 anos. O TCU enviou à Receita uma lista de CPFs, no intuito de identificar quem acessara dados fiscais daqueles contribuintes "especiais".

A relação continha o grupo denominado de pessoas politicamente expostas (PPE), a quem os tratados internacionais determinam maior vigilância do Fisco, maior rigor sobre suas movimentações financeiras, por estarem mais expostas, em razão do cargo que ocupam, ao cometimento de ilícitos financeiros. A ordem do TCU vinha na direção contrária, fazendo das PPEs uma espécie de lista VIP, constrangendo aqueles que têm o dever de fiscalizá-las e colocando os auditores fiscais numa posição desconfortável de suspeição perante a opinião pública.

Todas essas medidas repercutiram mal na comunidade internacional. Os auditores fiscais denunciaram a situação ao GAFI e à OCDE, que cobraram explicações das autoridades brasileiras. A arbitrariedade do TCU foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendendo a um mandado de segurança impetrado pelo Sindifisco Nacional. Na sequência, Alexandre de Moraes voltou atrás da decisão que afastara auditores fiscais do exercício de suas funções e o plenário do Supremo refutou a tese da proibição do compartilhamento de informações entre Receita Federal e outros órgãos.

Se a Receita Federal segurou o tranco e sobreviveu à tormenta de 2019, o enredo para 2020 pode ser outro. A LOA do próximo exercício impõe ao órgão um corte de 36% sobre o orçamento de 2019 (de 2,8 para 1,8 bilhões de reais), o mesmo valor nominal de 12 anos atrás. Nesse caso, não se pode culpar o Congresso. O corte foi proposto pelo próprio Ministério da Economia: uma aposta que tem tudo para dar errado. Sufocar a máquina arrecadadora federal em plena crise fiscal é algo que nem os mais heterodoxos fariam. Com um corpo funcional muito reduzido e abandonando investimentos, estamos diante de um redesenho drástico da Receita Federal, que pode pôr em xeque não só a sobrevivência da instituição como todo o aparato de repressão à sonegação e à corrupção no Brasil.

*Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)

*Marchezan Taveira, auditor fiscal da Receita Federal e jornalista

Kleber Cabral. Foto: Arquivo Pessoal

Pode-se dizer que 2019 foi um dos mais nervosos anos na história de mais de meio século da Receita Federal - e certamente o mais atribulado dos últimos tempos. Sob fogo cerrado de fortes grupos de pressão, a instituição e seus auditores fiscais ficaram sob a mira acurada de autoridades do mais grosso calibre, unicamente por estarem cumprindo sua missão constitucional de fiscalizar, colhendo dados, cruzando informações e identificando de maneira impessoal movimentações financeiras atípicas de agentes públicos. De todos os átrios do poder vieram petardos: Executivo, STF, Congresso Nacional, TCU.

O desastroso vazamento da informação de que estavam sendo analisadas, em caráter preliminar, inconsistências nas contas do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, em fevereiro, deu início à temporada de caça. Estava aberta a caixa de Pandora. Dias depois, o ministro Dias Toffoli, atendendo a convite, comparecia à cerimônia de posse da atual diretoria do Sindifisco Nacional, na qual brindou os presentes com uma espécie de "spoiler" do seu voto (o original, depois alterado e reescrito) no julgamento, em novembro último, do compartilhamento de dados entre Receita Federal e Ministério Público - entendimento que respaldou, em julho, a liminar deferida pelo ministro a Flávio Bolsonaro, que também estava presente àquela cerimônia na noite de 13 de fevereiro.

Hoje já se têm provas de que os documentos que chegaram à imprensa saíram da empresa Fibria Celulose, também alvo de análise fiscal, que, inadvertidamente, teve acesso a relatório fiscal sobre Gilmar e Guiomar Mendes. Mas o episódio deu azo à narrativa conspiratória de que a Receita Federal atuava por "encomenda" de outros órgãos de poder para pressionar autoridades da República, criando um ambiente favorável ao surgimento de propostas para desfigurar e enfraquecer um dos mais eficientes e republicanos órgãos de Estado do país.

Nesse vácuo muito bem dilatado, articulou-se a introdução de uma emenda "jabuti" na medida provisória 870, proibindo os auditores de fiscalizarem casos envolvendo crimes correlatos à sonegação, como lavagem de dinheiro e corrupção, bem como vedando o compartilhamento de informações entre a Receita Federal e o Ministério Público sem prévia autorização judicial, o que burocratizaria, retardaria e em muitos dos casos inviabilizaria qualquer tipo de investigação, agravando a impunidade que assola o país.

A proposta não prosperou porque houve forte reação dos auditores fiscais, que denunciaram a manobra para a opinião pública. Apesar de vencida a batalha, algumas lideranças partidárias no Congresso Nacional, não por acaso envoltos em processos fiscais e penais, voltaram a investir contra a Receita Federal, tentando incluir o texto da "emenda da mordaça" em outro projeto de lei.

Por conta do vazamento, ainda não explicado nem assumido pela Fibria, dois auditores fiscais foram indevidamente afastados de suas funções e todas as fiscalizações envolvendo agentes públicos, incluindo pessoas ligadas aos próprios ministros do STF, foram suspensas.

Ao mesmo tempo, a Receita Federal passou a ser alvo de investidas intimidatórias de Bruno Dantas, ministro do TCU, que intimou o órgão a fornecer nome e matrícula de todos os auditores que acessaram dados fiscais de altas autoridades públicas, cônjuges e familiares, nos últimos 5 anos. O TCU enviou à Receita uma lista de CPFs, no intuito de identificar quem acessara dados fiscais daqueles contribuintes "especiais".

A relação continha o grupo denominado de pessoas politicamente expostas (PPE), a quem os tratados internacionais determinam maior vigilância do Fisco, maior rigor sobre suas movimentações financeiras, por estarem mais expostas, em razão do cargo que ocupam, ao cometimento de ilícitos financeiros. A ordem do TCU vinha na direção contrária, fazendo das PPEs uma espécie de lista VIP, constrangendo aqueles que têm o dever de fiscalizá-las e colocando os auditores fiscais numa posição desconfortável de suspeição perante a opinião pública.

Todas essas medidas repercutiram mal na comunidade internacional. Os auditores fiscais denunciaram a situação ao GAFI e à OCDE, que cobraram explicações das autoridades brasileiras. A arbitrariedade do TCU foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendendo a um mandado de segurança impetrado pelo Sindifisco Nacional. Na sequência, Alexandre de Moraes voltou atrás da decisão que afastara auditores fiscais do exercício de suas funções e o plenário do Supremo refutou a tese da proibição do compartilhamento de informações entre Receita Federal e outros órgãos.

Se a Receita Federal segurou o tranco e sobreviveu à tormenta de 2019, o enredo para 2020 pode ser outro. A LOA do próximo exercício impõe ao órgão um corte de 36% sobre o orçamento de 2019 (de 2,8 para 1,8 bilhões de reais), o mesmo valor nominal de 12 anos atrás. Nesse caso, não se pode culpar o Congresso. O corte foi proposto pelo próprio Ministério da Economia: uma aposta que tem tudo para dar errado. Sufocar a máquina arrecadadora federal em plena crise fiscal é algo que nem os mais heterodoxos fariam. Com um corpo funcional muito reduzido e abandonando investimentos, estamos diante de um redesenho drástico da Receita Federal, que pode pôr em xeque não só a sobrevivência da instituição como todo o aparato de repressão à sonegação e à corrupção no Brasil.

*Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)

*Marchezan Taveira, auditor fiscal da Receita Federal e jornalista

Kleber Cabral. Foto: Arquivo Pessoal

Pode-se dizer que 2019 foi um dos mais nervosos anos na história de mais de meio século da Receita Federal - e certamente o mais atribulado dos últimos tempos. Sob fogo cerrado de fortes grupos de pressão, a instituição e seus auditores fiscais ficaram sob a mira acurada de autoridades do mais grosso calibre, unicamente por estarem cumprindo sua missão constitucional de fiscalizar, colhendo dados, cruzando informações e identificando de maneira impessoal movimentações financeiras atípicas de agentes públicos. De todos os átrios do poder vieram petardos: Executivo, STF, Congresso Nacional, TCU.

O desastroso vazamento da informação de que estavam sendo analisadas, em caráter preliminar, inconsistências nas contas do ministro Gilmar Mendes e de sua mulher, em fevereiro, deu início à temporada de caça. Estava aberta a caixa de Pandora. Dias depois, o ministro Dias Toffoli, atendendo a convite, comparecia à cerimônia de posse da atual diretoria do Sindifisco Nacional, na qual brindou os presentes com uma espécie de "spoiler" do seu voto (o original, depois alterado e reescrito) no julgamento, em novembro último, do compartilhamento de dados entre Receita Federal e Ministério Público - entendimento que respaldou, em julho, a liminar deferida pelo ministro a Flávio Bolsonaro, que também estava presente àquela cerimônia na noite de 13 de fevereiro.

Hoje já se têm provas de que os documentos que chegaram à imprensa saíram da empresa Fibria Celulose, também alvo de análise fiscal, que, inadvertidamente, teve acesso a relatório fiscal sobre Gilmar e Guiomar Mendes. Mas o episódio deu azo à narrativa conspiratória de que a Receita Federal atuava por "encomenda" de outros órgãos de poder para pressionar autoridades da República, criando um ambiente favorável ao surgimento de propostas para desfigurar e enfraquecer um dos mais eficientes e republicanos órgãos de Estado do país.

Nesse vácuo muito bem dilatado, articulou-se a introdução de uma emenda "jabuti" na medida provisória 870, proibindo os auditores de fiscalizarem casos envolvendo crimes correlatos à sonegação, como lavagem de dinheiro e corrupção, bem como vedando o compartilhamento de informações entre a Receita Federal e o Ministério Público sem prévia autorização judicial, o que burocratizaria, retardaria e em muitos dos casos inviabilizaria qualquer tipo de investigação, agravando a impunidade que assola o país.

A proposta não prosperou porque houve forte reação dos auditores fiscais, que denunciaram a manobra para a opinião pública. Apesar de vencida a batalha, algumas lideranças partidárias no Congresso Nacional, não por acaso envoltos em processos fiscais e penais, voltaram a investir contra a Receita Federal, tentando incluir o texto da "emenda da mordaça" em outro projeto de lei.

Por conta do vazamento, ainda não explicado nem assumido pela Fibria, dois auditores fiscais foram indevidamente afastados de suas funções e todas as fiscalizações envolvendo agentes públicos, incluindo pessoas ligadas aos próprios ministros do STF, foram suspensas.

Ao mesmo tempo, a Receita Federal passou a ser alvo de investidas intimidatórias de Bruno Dantas, ministro do TCU, que intimou o órgão a fornecer nome e matrícula de todos os auditores que acessaram dados fiscais de altas autoridades públicas, cônjuges e familiares, nos últimos 5 anos. O TCU enviou à Receita uma lista de CPFs, no intuito de identificar quem acessara dados fiscais daqueles contribuintes "especiais".

A relação continha o grupo denominado de pessoas politicamente expostas (PPE), a quem os tratados internacionais determinam maior vigilância do Fisco, maior rigor sobre suas movimentações financeiras, por estarem mais expostas, em razão do cargo que ocupam, ao cometimento de ilícitos financeiros. A ordem do TCU vinha na direção contrária, fazendo das PPEs uma espécie de lista VIP, constrangendo aqueles que têm o dever de fiscalizá-las e colocando os auditores fiscais numa posição desconfortável de suspeição perante a opinião pública.

Todas essas medidas repercutiram mal na comunidade internacional. Os auditores fiscais denunciaram a situação ao GAFI e à OCDE, que cobraram explicações das autoridades brasileiras. A arbitrariedade do TCU foi barrada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendendo a um mandado de segurança impetrado pelo Sindifisco Nacional. Na sequência, Alexandre de Moraes voltou atrás da decisão que afastara auditores fiscais do exercício de suas funções e o plenário do Supremo refutou a tese da proibição do compartilhamento de informações entre Receita Federal e outros órgãos.

Se a Receita Federal segurou o tranco e sobreviveu à tormenta de 2019, o enredo para 2020 pode ser outro. A LOA do próximo exercício impõe ao órgão um corte de 36% sobre o orçamento de 2019 (de 2,8 para 1,8 bilhões de reais), o mesmo valor nominal de 12 anos atrás. Nesse caso, não se pode culpar o Congresso. O corte foi proposto pelo próprio Ministério da Economia: uma aposta que tem tudo para dar errado. Sufocar a máquina arrecadadora federal em plena crise fiscal é algo que nem os mais heterodoxos fariam. Com um corpo funcional muito reduzido e abandonando investimentos, estamos diante de um redesenho drástico da Receita Federal, que pode pôr em xeque não só a sobrevivência da instituição como todo o aparato de repressão à sonegação e à corrupção no Brasil.

*Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco)

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