A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento histórico da Revolução Francesa, em seu artigo 12, consagra a força pública de segurança como garantia dos direitos do cidadão, regrada por valores deontológicos: La garantie des droits de l'Homme et du citoyen nécessite une force publique; cette force est donc instituée pour l'avantage de tous, et non pour l'utilité particulière de ceux auxquels elle est confiée. (A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos e não para uso particular daqueles a quem é confiada).
Nesta linha de pensamento e ressaltando que a atividade policial é essencial à manutenção da segurança e da paz social, o Supremo Tribunal Federal decidiu por 7 votos a 3 que aqueles que atuam diretamente na área da segurança pública não podem exercer o direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade. Esta decisão alcança todas as forças policiais civis, federais, militares e rodoviárias, o corpo de bombeiros, os guardas municipais e os agentes penitenciários.
Este cerceamento ao direito de reivindicação baseou-se no argumento de que, mesmo quando colocados sob péssimas condições de trabalho, os policiais devem continuar servindo ao valor jurídico superior da Segurança Pública. Concluiu a Corte ser obrigatória a participação do "Poder Público em mediação instaurada pelos órgãos classistas das carreiras de segurança pública, nos termos do art. 165 do CPC, para vocalização dos interesses da categoria".
A greve é um instrumento de pressão coletiva, limitado, agora, apenas às outras categorias de servidores públicos e trabalhadores. Embora esta decisão do Supremo retire dos policiais o direito de greve, isto é feito em razão da importância das atividades dos profissionais da segurança pública, as quais são completamente diferenciadas das de outros profissionais, dada a sua imprescindibilidade para o funcionamento do Estado, cuja paralisação gera enormes transtornos à sociedade e levaria a situação anárquica. Reflexamente a decisão valoriza o trabalho do policial, por colocá-lo em outra posição.
Assim, inquestionavelmente os profissionais de segurança pública se encontram em situação análoga à dos servidores das carreiras militares e, por isso, resta cristalino que devem receber o mesmo tratamento dessa categoria no tocante ao contexto da reforma do sistema previdenciário. A grande questão é que a proposta de emenda constitucional 287, apresentada pelo Governo Federal, elimina do texto constitucional a previsão da aposentadoria por risco, que agasalhava os policiais, ignorando-se as particularidades dessas carreiras, dentre as quais expectativa menor de vida, além dos riscos inerentes à profissão.
Caso aprovada a reforma da previdência nos moldes propostos pelo governo, um policial somente poderá se aposentar aos 65 anos de idade se estiver contribuindo para a previdência desde os seus 16 anos, isto é, a maioria continuará em atividade até seus 75 anos, cientes de que poucos alcançarão essa idade, afinal a expectativa de vida do policial brasileiro é de 60 anos, enquanto que a da população em geral é de 75,5 anos.
Nos países desenvolvidos, em que a expectativa de vida é maior para a população em geral e as condições de trabalho na área da segurança pública são certamente melhores do que as condições enfrentadas pelos policiais brasileiros, com menores índices de violência e maiores investimentos em treinamento e equipamentos, o profissional da segurança pública se aposenta em média com 25 anos de serviço, portanto, sem exageros, o Brasil será o pior país do mundo para se trabalhar na área da segurança pública, um verdadeiro retrocesso, já que a garantia dos direitos do cidadão estará a cargo de policiais na terceira idade, sem saúde e sem condições físicas e psicológicas para enfrentar os desafios desgastantes da profissão.
É necessário lembrar que o policial pode ser acionado a qualquer hora do dia e da noite, sem receber nenhuma compensação para tanto, o que por si só já é um fator grave de estresse. Assim, não existe uma rotina de trabalho e o policial é alijado do convívio com sua família diuturnamente, pois tem que estar sempre pronto para ser acionado para plantões, sobreavisos e operações policiais ou mesmo para concluir diligências em andamento que simplesmente não podem ser interrompidas como se houvesse um turno de serviço.
A título de exemplo, na tão admirada instituição Polícia Federal, os policiais são acionados várias vezes na semana para integrarem equipes dessas operações que os brasileiros tanto admiram, mas a maioria das pessoas não tem ideia do quanto a vida pessoal desse policial é impactada, com elevado desgaste físico e psicológico, obviamente muito maior do que em outra profissão que não seja relacionada à segurança pública. Não por acaso, a Organização Internacional do Trabalho reconhece a atividade policial como a profissão mais estressante do mundo.
O policial presta o juramento de proteger a vida, integridade física e patrimônio de todos, inclusive com o sacrifício da própria vida, se necessário. Além disso, mesmo em seu horário de descanso, principalmente nos grandes centros urbanos, o policial está submetido a um risco muito maior de investidas de criminosos pelo simples fato de ser policial, com o dever de agir durante as vinte e quatro horas do dia, quando se vê diante de uma ocorrência, e, para tanto, sob constante estado de alerta, investido do poder estatal do uso da força. Suas decisões muitas vezes devem ser tomadas em segundos, sob análise dos princípios da legalidade, da necessidade, da proporcionalidade e da conveniência, cujas consequências afetarão não só sua vida profissional e pessoal como também a vida e liberdade de outras pessoas.
Infelizmente os investimentos governamentais em segurança pública não estão sendo suficientes para municiar estes profissionais com os recursos e equipamentos necessários, nem com treinamento contínuo. Além disso não estão sendo abertos concursos públicos para preenchimento dos cargos vagos, o que gera sobrecarga de trabalho àqueles que estão em atividade e cuja demanda é crescente, num país com elevados e alarmantes índices de criminalidade e de violência.
Somente em 2014, 26 anos após a promulgação da Constituição Federal, as mulheres policiais obtiveram o reconhecimento justo da redução no tempo de contribuição para aposentadoria policial, em extensão dos direitos femininos garantidos às demais trabalhadoras e servidoras, na devida proporção. Foram mais de 10 anos de discussão e defesa no parlamento para que esse direito fosse reconhecido, mobilizando policiais de todo o país, direito que não está sendo respeitado pela reforma da previdência.
Não bastassem todas as dificuldades graves que circundam o cotidiano dos policiais e demais integrantes da segurança pública, a categoria se encontra mobilizada em estado de alerta no aguardo da apresentação e leitura do parecer do relator da PEC 287/2016 na Comissão Especial da Câmara, a cargo do Deputado Federal Arthur Maia, prevista para o dia 18 de abril, que deverá ser votada na sequência. Tem-se conhecimento da existência de cerca de uma quinzena de emendas apresentadas pelos Deputados na referida comissão, que tratam da manutenção no texto constitucional do tratamento devido da atividade de risco desses profissionais, o que revela a preocupação dos representantes do povo com aqueles que colocam sua vida em risco para proteção da sociedade e cumprimento dos deveres do Estado em garantia aos direitos dos cidadãos.
Por fim, o reconhecimento da natureza sui generis das carreiras de segurança pública pelo próprio Supremo Tribunal Federal confirma o que vem sendo reivindicado pela categoria no sentido da manutenção do regime de risco e tratamento adequado do regramento da #aposentadoriapolicial. Foi justamente por conta do caráter peculiar da atividade policial que o Supremo Tribunal Federal entendeu ser impossível compatibilizar o exercício do direito de greve por parte do braço armado do Estado com a garantia da segurança, da ordem pública e da paz social.
Assim, resta patente a diferenciação entre as atividades dos profissionais da segurança pública e as dos demais profissionais contemplados na reforma da previdência, notadamente em razão do risco inerente à profissão, da incompatibilidade entre a idade avançada e o enfrentamento diário da criminalidade e da vedação absoluta do direito de greve, justificando-se plenamente o tratamento diferenciado a ser dispensado a esses profissionais no âmbito dessa reforma.
*Tania Fernanda Prado Pereira. Delegada de Polícia Federal em São Paulo. Mestre em Segurança Pública na Universidade Jean Moulin, em Lyon, na França. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo. Diretora Regional da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal Regional em São Paulo (ADPF-SP), que compõe a União dos Policiais do Brasil.
Fabrício de Souza Costa. Delegado de Polícia Federal em São Paulo. Mestre em Direito da Sociedade da Informação pela FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Especialista em Direito Constitucional e Político pela FMU - Faculdades Metropolitanas Unidas. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Assessor Especial da Diretoria Regional da ADPF-SP.
Edson Fábio Garutti Moreira. Delegado de Polícia Federal. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Graduado em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes. Vice-Diretor Regional da ADPF-SP.