A tão aguardada vacina contra a maior pandemia das últimas décadas nem chegou e já causa polêmica quanto à sua obrigatoriedade. Entre disputas políticas e convicções pessoais, há quem não veja a hora de ser vacinado, e outros que não querem se submeter ao procedimento. Diante de tantos argumentos expostos pelos dois lados, provavelmente caberá ao Supremo Tribunal Federal responder: é legítimo o Estado obrigar o indivíduo a se vacinar contra a covid-19?
Independentemente de leis ou decretos, que podem ser facilmente alterados, é essencial recorrer aos fundamentos do direito e seus princípios fundamentais, estes imutáveis. Há um nítido conflito entre a liberdade individual de quem não deseja se vacinar e o interesse coletivo, caso seja comprovado que a vacinação em massa é o único meio de combate à pandemia. Sendo assim, o Estado deverá decidir qual política de saúde deve ser adotada para buscar a máxima imunização e restaurar a normalidade com maior brevidade.
Alguns fatores devem ser considerados para confirmar a predominância do interesse coletivo: a efetividade da vacina, a probabilidade de redução drástica do índice de contágio e os riscos de uma parcela da população não estar imunizada. Se houver a necessidade de imunização de um percentual mínimo de pessoas, em determinada localização, isso é um sinal de que a individualidade pode ser relativizada para atingir o objetivo comum.
Um dos pensadores mais influentes do pensamento liberal foi John Stuart Mill. O autor é referência nos estudos sobre a liberdade individual e a legitimidade do Estado para obrigar uma pessoa a fazer ou deixar de fazer algo contra sua vontade. Mill desenvolveu o denominado princípio do dano (harm principle), segundo o qual, em breves palavras, o Estado só pode passar por cima da vontade do indivíduo se seu comportamento afetar interesses de outros indivíduos.
Gerald Dworkin, um os principais estudiosos da doutrina de Mill, em seus artigos sobre paternalismo estatal, reconhece que, por motivos utilitaristas, um cidadão pode ser compelido a aceitar certas imposições se sua recusa puder afetar a coletividade. Entre os exemplos citados, está o uso obrigatório de capacete pelos motociclistas e cinto de segurança em veículos automotores. Sem utilizar esses equipamentos, aumenta a probabilidade de resultado mais gravoso em eventual acidente, o que acarreta maiores custos ao sistema público de saúde. Portanto, o ideal seria o Estado exigir que cada um que desejasse ignorar o capacete e o cinto tivesse plano de saúde e desistisse do atendimento gratuito. Acontece que essa exigência é impraticável, o que legitima a obrigatoriedade do uso de equipamentos de segurança.
O argumento utilitarista reforça a necessidade da obrigatoriedade da vacinação. As pessoas que não desejam se vacinar estão mais vulneráveis a contrair e transmitir o vírus. Sendo assim, para impedir a propagação da doença, o Estado poderia restringir certos direitos, como proibir viagens de avião ou ônibus ou impor que apenas crianças com pais vacinados pudessem frequentar escolas. Entretanto, essa estratégia é praticamente impossível; por essa razão, já que não se pode controlar a circulação total de pessoas, estas devem se submeter a regras estipuladas, ainda que contra sua vontade, para preservar o bem comum.
No caso de uma pandemia, há nítido interesse coletivo em sua erradicação. Motivos não faltam: ocupação excessiva de leitos hospitalares, grande probabilidade de morte de pessoas pertencentes aos grupos de risco, necessidade de isolamento e distanciamento social, o que compromete as atividades rotineiras, especialmente a economia. Acrescenta-se, ainda, a saúde mental das pessoas confinadas, o receio do desemprego, a distância dos familiares e amigos. Enfim, se há pessoas que preferem a continuidade da pandemia, sua representação é pífia perante aqueles que almejam seu fim.
A eficácia comprovada da imunização para cessar a pandemia, mesmo que o vírus não seja erradicado, é fundamento suficiente para impor a obrigação de tomar a vacina. O método científico ainda é o meio mais confiável de obtenção de conhecimento e os resultados comprovados de pesquisas, de acordo com as regras estabelecidas pela comunidade científica, só podem ser refutados por estudos com o mesmo grau de credibilidade. O ideal é a adoção de uma política de saúde pública de harmonia entre os entes da federação (União, Estados e Municípios), com planejamento adequado, livre de viés político. Não obstante, os atritos já demonstrados parecem levar o problema para a responsabilidade do Poder Judiciário.
*João Paulo Martinelli, professor titular do IBMEC-SP. Doutor em Direito pela USP. Advogado e consultor jurídico