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Responsabilidades internacionais e internas do governo federal na fronteira com a Venezuela


Por Kai Michael Kenkel
Kai Michael Kenkel. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Quem está mais afortunado que seu vizinho deve construir no seu quintal não um muro mais alto, mas uma mesa mais longa". O ditado resume a lógica que rege as obrigações dos Estados face aos refugiados, codificado na Convenção dos Refugiados em 1951.

À luz dos acontecimentos atuais em Pacaraima/RR e outros lugares fronteiriços com a Venezuela, vale lembrar que o Brasil ratificou a Convenção, cujas diversas disposições assim estão em vigor em seu território. Entre essas tem-se a obrigação de acolher, ainda que temporariamente, toda pessoa cuja vida ou cujos direitos básicos se encontram sob ameaça no seu país de origem. Este direito independe de origem e identidade. Independe, também, das condições absolutas de quem está acolhendo-a, baseando se na relativa estabilidade do país acolhedor.

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Segundo relatado neste mesmo jornal (Jamil Chade, 10 de agosto), são mais de 2,2 milhões de venezuelanos que deixaram seu país - talvez o maior movimento migratório a curto prazo na história do continente. Esta situação testa ao extremo as capacidades dos Estados mais afetados: 900 mil venezuelanos estão na Colômbia, quase 600 mil no Equador, e 380.000 no Peru.

E o Brasil? Justifica-se, no caso do gigante continental, o uso da palavra crise e o convite à exceção que este termo carrega? Do total de 2,2 milhões de refugiados, são entre 60.000 e 70.000 mil que tentaram sua sorte no Brasil. Diga-se claramente: com menos que um quarto da sua população e um terço de seu PIB, a Colômbia abriga doze vezes o número de refugiados que o Brasil aceitou.

A assimetria só cresce no caso dos vizinhos menores. Ainda mais a nível internacional, considerando os refugiados sírios: Turquia 3,5 milhões; Líbano 2,2 milhões (um terço da população total do país, com um PIB per capita semelhante); Jordânia 1,3 milhões (um sexto da população, com metade do PIB per capita).

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Salta aos olhos que o fator determinante deste quadro, longe de ser a capacidade material dos países anfitriões, reside nas suas escolhas políticas. Na interseção das questões de identidade, soberania e segurança, a designação de um fenômeno como ameaça ou crise nunca deixa de ser uma escolha consciente que serve finalidades políticas concretas. No Brasil não é diferente.

Um olhar para a Alemanha é ilustrativo. O governo de Angela Merkel escolheu, na contramão de seus parceiros europeus, abrir as portas para um milhão de refugiados em 2016. No chão dos fatos, o custo desta medida representou menos que 1% do poderoso PIB germânico, e contabiliza pouco mais que 1% da população. Os requerentes de asilo na Alemanha apresentam uma taxa de criminalidade menor que a da população estabelecida, e os sírios, uma taxa de escolaridade, inclusive de pós-graduação, maior que a da população alemã, já entre as mais altas do globo. Ressalta-se que esta relação se reproduz, mutatis mutandis, entre os refugiados no Brasil.

Estes fatos não impediram que o fluxo migratório fosse recebido por uma parte significativa da população alemã como ameaça identitária e econômica. Isso se reflete na subida do partido xenófobo AfD, que alcançou quase 13% nas eleições parlamentares federais de 2017 - fato inédito para um partido de extrema-direita na Alemanha pós-guerra. O sucesso desse recurso ao populismo étnico-nacionalista se deve parcialmente à falha do governo Merkel em difundir os fatos reais e suas políticas de integração. Igualmente faltou a conscientização sobre as incontornáveis obrigações jurídicas internacionais da Alemanha para com os refugiados.

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O ponto relevante para o Brasil é o seguinte: é tarefa inerente ao Governo Federal articular efetivamente as responsabilidades internacionais do País e as necessidades internas dos cidadãos brasileiros. As imagens dessa semana demonstram que a precariedade da infraestrutura pública - já para os residentes regulares - das regiões fronteiriças brasileiras é tão inegável quanto a gravidade da situação dos migrantes. Face aos desafios enfrentados em Pacaraima, Brasiléia, e tantos outros bastiões limítrofes, a pergunta "quem cuida dos brasileiros" é legítima - embora não nos isente da responsabilidade de cuidar igualmente dos vizinhos em situação emergencial.

Quem deve cuidar de ambos são os governantes eleitos da nação brasileira, sobretudo a nível federal. É sua atribuição não só prover às autoridades subordinadas os meios de responder dignamente a todos os necessitados, locais e estrangeiros, mas de articular uma resposta política coerente ao fenômeno geral - sempre mais premente e crescente - da migração. Neste sentido, a atual preferência para soluções fardadas e de curto prazo arrisca de ser contraprodutiva.

Apesar de possuir expertise mais do que ampla na sociedade civil e na academia, em termos de políticas públicas, o Brasil ainda carece de uma resposta concertada e de longo prazo a esse desafio, à altura da sua invejável história de abertura e generosidade com os imigrantes.

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Saído da atual paralise eleitoral, caberá urgentemente ao novo governo elaborar uma Política Nacional de Migração coerente, capaz de tirar as estruturas cruciais como o CONARE da precariedade, suprir as necessidades básicas tanto dos refugiados quanto dos municípios de primeiro contato, assegurar a divisão de trabalho entre as unidades federais através de um plano de internalização e redistribuição dos refugiados, e aprimorar a legislação vigente.

A patente urgência local não deve ofuscar a relativa situação de calma vivida pelo Brasil a nível nacional e global na questão migratória. É desta forma que se defenderá a democracia e a abertura brasileira contra um solo fértil para populismo, abuso e narrativas de ameaça. O recebimento digno dos necessitados que enxergam na bandeira verde-amarela o aconchego da segurança não é questão de esquerda ou direita, mas de dignidade comum à humanidade, e sobretudo de que Brasil queremos ser.

* Kai Michael Kenkel é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, imigrante, e filho de refugiado

Kai Michael Kenkel. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Quem está mais afortunado que seu vizinho deve construir no seu quintal não um muro mais alto, mas uma mesa mais longa". O ditado resume a lógica que rege as obrigações dos Estados face aos refugiados, codificado na Convenção dos Refugiados em 1951.

À luz dos acontecimentos atuais em Pacaraima/RR e outros lugares fronteiriços com a Venezuela, vale lembrar que o Brasil ratificou a Convenção, cujas diversas disposições assim estão em vigor em seu território. Entre essas tem-se a obrigação de acolher, ainda que temporariamente, toda pessoa cuja vida ou cujos direitos básicos se encontram sob ameaça no seu país de origem. Este direito independe de origem e identidade. Independe, também, das condições absolutas de quem está acolhendo-a, baseando se na relativa estabilidade do país acolhedor.

Segundo relatado neste mesmo jornal (Jamil Chade, 10 de agosto), são mais de 2,2 milhões de venezuelanos que deixaram seu país - talvez o maior movimento migratório a curto prazo na história do continente. Esta situação testa ao extremo as capacidades dos Estados mais afetados: 900 mil venezuelanos estão na Colômbia, quase 600 mil no Equador, e 380.000 no Peru.

E o Brasil? Justifica-se, no caso do gigante continental, o uso da palavra crise e o convite à exceção que este termo carrega? Do total de 2,2 milhões de refugiados, são entre 60.000 e 70.000 mil que tentaram sua sorte no Brasil. Diga-se claramente: com menos que um quarto da sua população e um terço de seu PIB, a Colômbia abriga doze vezes o número de refugiados que o Brasil aceitou.

A assimetria só cresce no caso dos vizinhos menores. Ainda mais a nível internacional, considerando os refugiados sírios: Turquia 3,5 milhões; Líbano 2,2 milhões (um terço da população total do país, com um PIB per capita semelhante); Jordânia 1,3 milhões (um sexto da população, com metade do PIB per capita).

Salta aos olhos que o fator determinante deste quadro, longe de ser a capacidade material dos países anfitriões, reside nas suas escolhas políticas. Na interseção das questões de identidade, soberania e segurança, a designação de um fenômeno como ameaça ou crise nunca deixa de ser uma escolha consciente que serve finalidades políticas concretas. No Brasil não é diferente.

Um olhar para a Alemanha é ilustrativo. O governo de Angela Merkel escolheu, na contramão de seus parceiros europeus, abrir as portas para um milhão de refugiados em 2016. No chão dos fatos, o custo desta medida representou menos que 1% do poderoso PIB germânico, e contabiliza pouco mais que 1% da população. Os requerentes de asilo na Alemanha apresentam uma taxa de criminalidade menor que a da população estabelecida, e os sírios, uma taxa de escolaridade, inclusive de pós-graduação, maior que a da população alemã, já entre as mais altas do globo. Ressalta-se que esta relação se reproduz, mutatis mutandis, entre os refugiados no Brasil.

Estes fatos não impediram que o fluxo migratório fosse recebido por uma parte significativa da população alemã como ameaça identitária e econômica. Isso se reflete na subida do partido xenófobo AfD, que alcançou quase 13% nas eleições parlamentares federais de 2017 - fato inédito para um partido de extrema-direita na Alemanha pós-guerra. O sucesso desse recurso ao populismo étnico-nacionalista se deve parcialmente à falha do governo Merkel em difundir os fatos reais e suas políticas de integração. Igualmente faltou a conscientização sobre as incontornáveis obrigações jurídicas internacionais da Alemanha para com os refugiados.

O ponto relevante para o Brasil é o seguinte: é tarefa inerente ao Governo Federal articular efetivamente as responsabilidades internacionais do País e as necessidades internas dos cidadãos brasileiros. As imagens dessa semana demonstram que a precariedade da infraestrutura pública - já para os residentes regulares - das regiões fronteiriças brasileiras é tão inegável quanto a gravidade da situação dos migrantes. Face aos desafios enfrentados em Pacaraima, Brasiléia, e tantos outros bastiões limítrofes, a pergunta "quem cuida dos brasileiros" é legítima - embora não nos isente da responsabilidade de cuidar igualmente dos vizinhos em situação emergencial.

Quem deve cuidar de ambos são os governantes eleitos da nação brasileira, sobretudo a nível federal. É sua atribuição não só prover às autoridades subordinadas os meios de responder dignamente a todos os necessitados, locais e estrangeiros, mas de articular uma resposta política coerente ao fenômeno geral - sempre mais premente e crescente - da migração. Neste sentido, a atual preferência para soluções fardadas e de curto prazo arrisca de ser contraprodutiva.

Apesar de possuir expertise mais do que ampla na sociedade civil e na academia, em termos de políticas públicas, o Brasil ainda carece de uma resposta concertada e de longo prazo a esse desafio, à altura da sua invejável história de abertura e generosidade com os imigrantes.

Saído da atual paralise eleitoral, caberá urgentemente ao novo governo elaborar uma Política Nacional de Migração coerente, capaz de tirar as estruturas cruciais como o CONARE da precariedade, suprir as necessidades básicas tanto dos refugiados quanto dos municípios de primeiro contato, assegurar a divisão de trabalho entre as unidades federais através de um plano de internalização e redistribuição dos refugiados, e aprimorar a legislação vigente.

A patente urgência local não deve ofuscar a relativa situação de calma vivida pelo Brasil a nível nacional e global na questão migratória. É desta forma que se defenderá a democracia e a abertura brasileira contra um solo fértil para populismo, abuso e narrativas de ameaça. O recebimento digno dos necessitados que enxergam na bandeira verde-amarela o aconchego da segurança não é questão de esquerda ou direita, mas de dignidade comum à humanidade, e sobretudo de que Brasil queremos ser.

* Kai Michael Kenkel é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, imigrante, e filho de refugiado

Kai Michael Kenkel. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Quem está mais afortunado que seu vizinho deve construir no seu quintal não um muro mais alto, mas uma mesa mais longa". O ditado resume a lógica que rege as obrigações dos Estados face aos refugiados, codificado na Convenção dos Refugiados em 1951.

À luz dos acontecimentos atuais em Pacaraima/RR e outros lugares fronteiriços com a Venezuela, vale lembrar que o Brasil ratificou a Convenção, cujas diversas disposições assim estão em vigor em seu território. Entre essas tem-se a obrigação de acolher, ainda que temporariamente, toda pessoa cuja vida ou cujos direitos básicos se encontram sob ameaça no seu país de origem. Este direito independe de origem e identidade. Independe, também, das condições absolutas de quem está acolhendo-a, baseando se na relativa estabilidade do país acolhedor.

Segundo relatado neste mesmo jornal (Jamil Chade, 10 de agosto), são mais de 2,2 milhões de venezuelanos que deixaram seu país - talvez o maior movimento migratório a curto prazo na história do continente. Esta situação testa ao extremo as capacidades dos Estados mais afetados: 900 mil venezuelanos estão na Colômbia, quase 600 mil no Equador, e 380.000 no Peru.

E o Brasil? Justifica-se, no caso do gigante continental, o uso da palavra crise e o convite à exceção que este termo carrega? Do total de 2,2 milhões de refugiados, são entre 60.000 e 70.000 mil que tentaram sua sorte no Brasil. Diga-se claramente: com menos que um quarto da sua população e um terço de seu PIB, a Colômbia abriga doze vezes o número de refugiados que o Brasil aceitou.

A assimetria só cresce no caso dos vizinhos menores. Ainda mais a nível internacional, considerando os refugiados sírios: Turquia 3,5 milhões; Líbano 2,2 milhões (um terço da população total do país, com um PIB per capita semelhante); Jordânia 1,3 milhões (um sexto da população, com metade do PIB per capita).

Salta aos olhos que o fator determinante deste quadro, longe de ser a capacidade material dos países anfitriões, reside nas suas escolhas políticas. Na interseção das questões de identidade, soberania e segurança, a designação de um fenômeno como ameaça ou crise nunca deixa de ser uma escolha consciente que serve finalidades políticas concretas. No Brasil não é diferente.

Um olhar para a Alemanha é ilustrativo. O governo de Angela Merkel escolheu, na contramão de seus parceiros europeus, abrir as portas para um milhão de refugiados em 2016. No chão dos fatos, o custo desta medida representou menos que 1% do poderoso PIB germânico, e contabiliza pouco mais que 1% da população. Os requerentes de asilo na Alemanha apresentam uma taxa de criminalidade menor que a da população estabelecida, e os sírios, uma taxa de escolaridade, inclusive de pós-graduação, maior que a da população alemã, já entre as mais altas do globo. Ressalta-se que esta relação se reproduz, mutatis mutandis, entre os refugiados no Brasil.

Estes fatos não impediram que o fluxo migratório fosse recebido por uma parte significativa da população alemã como ameaça identitária e econômica. Isso se reflete na subida do partido xenófobo AfD, que alcançou quase 13% nas eleições parlamentares federais de 2017 - fato inédito para um partido de extrema-direita na Alemanha pós-guerra. O sucesso desse recurso ao populismo étnico-nacionalista se deve parcialmente à falha do governo Merkel em difundir os fatos reais e suas políticas de integração. Igualmente faltou a conscientização sobre as incontornáveis obrigações jurídicas internacionais da Alemanha para com os refugiados.

O ponto relevante para o Brasil é o seguinte: é tarefa inerente ao Governo Federal articular efetivamente as responsabilidades internacionais do País e as necessidades internas dos cidadãos brasileiros. As imagens dessa semana demonstram que a precariedade da infraestrutura pública - já para os residentes regulares - das regiões fronteiriças brasileiras é tão inegável quanto a gravidade da situação dos migrantes. Face aos desafios enfrentados em Pacaraima, Brasiléia, e tantos outros bastiões limítrofes, a pergunta "quem cuida dos brasileiros" é legítima - embora não nos isente da responsabilidade de cuidar igualmente dos vizinhos em situação emergencial.

Quem deve cuidar de ambos são os governantes eleitos da nação brasileira, sobretudo a nível federal. É sua atribuição não só prover às autoridades subordinadas os meios de responder dignamente a todos os necessitados, locais e estrangeiros, mas de articular uma resposta política coerente ao fenômeno geral - sempre mais premente e crescente - da migração. Neste sentido, a atual preferência para soluções fardadas e de curto prazo arrisca de ser contraprodutiva.

Apesar de possuir expertise mais do que ampla na sociedade civil e na academia, em termos de políticas públicas, o Brasil ainda carece de uma resposta concertada e de longo prazo a esse desafio, à altura da sua invejável história de abertura e generosidade com os imigrantes.

Saído da atual paralise eleitoral, caberá urgentemente ao novo governo elaborar uma Política Nacional de Migração coerente, capaz de tirar as estruturas cruciais como o CONARE da precariedade, suprir as necessidades básicas tanto dos refugiados quanto dos municípios de primeiro contato, assegurar a divisão de trabalho entre as unidades federais através de um plano de internalização e redistribuição dos refugiados, e aprimorar a legislação vigente.

A patente urgência local não deve ofuscar a relativa situação de calma vivida pelo Brasil a nível nacional e global na questão migratória. É desta forma que se defenderá a democracia e a abertura brasileira contra um solo fértil para populismo, abuso e narrativas de ameaça. O recebimento digno dos necessitados que enxergam na bandeira verde-amarela o aconchego da segurança não é questão de esquerda ou direita, mas de dignidade comum à humanidade, e sobretudo de que Brasil queremos ser.

* Kai Michael Kenkel é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, imigrante, e filho de refugiado

Kai Michael Kenkel. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

"Quem está mais afortunado que seu vizinho deve construir no seu quintal não um muro mais alto, mas uma mesa mais longa". O ditado resume a lógica que rege as obrigações dos Estados face aos refugiados, codificado na Convenção dos Refugiados em 1951.

À luz dos acontecimentos atuais em Pacaraima/RR e outros lugares fronteiriços com a Venezuela, vale lembrar que o Brasil ratificou a Convenção, cujas diversas disposições assim estão em vigor em seu território. Entre essas tem-se a obrigação de acolher, ainda que temporariamente, toda pessoa cuja vida ou cujos direitos básicos se encontram sob ameaça no seu país de origem. Este direito independe de origem e identidade. Independe, também, das condições absolutas de quem está acolhendo-a, baseando se na relativa estabilidade do país acolhedor.

Segundo relatado neste mesmo jornal (Jamil Chade, 10 de agosto), são mais de 2,2 milhões de venezuelanos que deixaram seu país - talvez o maior movimento migratório a curto prazo na história do continente. Esta situação testa ao extremo as capacidades dos Estados mais afetados: 900 mil venezuelanos estão na Colômbia, quase 600 mil no Equador, e 380.000 no Peru.

E o Brasil? Justifica-se, no caso do gigante continental, o uso da palavra crise e o convite à exceção que este termo carrega? Do total de 2,2 milhões de refugiados, são entre 60.000 e 70.000 mil que tentaram sua sorte no Brasil. Diga-se claramente: com menos que um quarto da sua população e um terço de seu PIB, a Colômbia abriga doze vezes o número de refugiados que o Brasil aceitou.

A assimetria só cresce no caso dos vizinhos menores. Ainda mais a nível internacional, considerando os refugiados sírios: Turquia 3,5 milhões; Líbano 2,2 milhões (um terço da população total do país, com um PIB per capita semelhante); Jordânia 1,3 milhões (um sexto da população, com metade do PIB per capita).

Salta aos olhos que o fator determinante deste quadro, longe de ser a capacidade material dos países anfitriões, reside nas suas escolhas políticas. Na interseção das questões de identidade, soberania e segurança, a designação de um fenômeno como ameaça ou crise nunca deixa de ser uma escolha consciente que serve finalidades políticas concretas. No Brasil não é diferente.

Um olhar para a Alemanha é ilustrativo. O governo de Angela Merkel escolheu, na contramão de seus parceiros europeus, abrir as portas para um milhão de refugiados em 2016. No chão dos fatos, o custo desta medida representou menos que 1% do poderoso PIB germânico, e contabiliza pouco mais que 1% da população. Os requerentes de asilo na Alemanha apresentam uma taxa de criminalidade menor que a da população estabelecida, e os sírios, uma taxa de escolaridade, inclusive de pós-graduação, maior que a da população alemã, já entre as mais altas do globo. Ressalta-se que esta relação se reproduz, mutatis mutandis, entre os refugiados no Brasil.

Estes fatos não impediram que o fluxo migratório fosse recebido por uma parte significativa da população alemã como ameaça identitária e econômica. Isso se reflete na subida do partido xenófobo AfD, que alcançou quase 13% nas eleições parlamentares federais de 2017 - fato inédito para um partido de extrema-direita na Alemanha pós-guerra. O sucesso desse recurso ao populismo étnico-nacionalista se deve parcialmente à falha do governo Merkel em difundir os fatos reais e suas políticas de integração. Igualmente faltou a conscientização sobre as incontornáveis obrigações jurídicas internacionais da Alemanha para com os refugiados.

O ponto relevante para o Brasil é o seguinte: é tarefa inerente ao Governo Federal articular efetivamente as responsabilidades internacionais do País e as necessidades internas dos cidadãos brasileiros. As imagens dessa semana demonstram que a precariedade da infraestrutura pública - já para os residentes regulares - das regiões fronteiriças brasileiras é tão inegável quanto a gravidade da situação dos migrantes. Face aos desafios enfrentados em Pacaraima, Brasiléia, e tantos outros bastiões limítrofes, a pergunta "quem cuida dos brasileiros" é legítima - embora não nos isente da responsabilidade de cuidar igualmente dos vizinhos em situação emergencial.

Quem deve cuidar de ambos são os governantes eleitos da nação brasileira, sobretudo a nível federal. É sua atribuição não só prover às autoridades subordinadas os meios de responder dignamente a todos os necessitados, locais e estrangeiros, mas de articular uma resposta política coerente ao fenômeno geral - sempre mais premente e crescente - da migração. Neste sentido, a atual preferência para soluções fardadas e de curto prazo arrisca de ser contraprodutiva.

Apesar de possuir expertise mais do que ampla na sociedade civil e na academia, em termos de políticas públicas, o Brasil ainda carece de uma resposta concertada e de longo prazo a esse desafio, à altura da sua invejável história de abertura e generosidade com os imigrantes.

Saído da atual paralise eleitoral, caberá urgentemente ao novo governo elaborar uma Política Nacional de Migração coerente, capaz de tirar as estruturas cruciais como o CONARE da precariedade, suprir as necessidades básicas tanto dos refugiados quanto dos municípios de primeiro contato, assegurar a divisão de trabalho entre as unidades federais através de um plano de internalização e redistribuição dos refugiados, e aprimorar a legislação vigente.

A patente urgência local não deve ofuscar a relativa situação de calma vivida pelo Brasil a nível nacional e global na questão migratória. É desta forma que se defenderá a democracia e a abertura brasileira contra um solo fértil para populismo, abuso e narrativas de ameaça. O recebimento digno dos necessitados que enxergam na bandeira verde-amarela o aconchego da segurança não é questão de esquerda ou direita, mas de dignidade comum à humanidade, e sobretudo de que Brasil queremos ser.

* Kai Michael Kenkel é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, imigrante, e filho de refugiado

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