Brasil só tem jeito se mudar prioridades e enfrentar privilégios, dizem especialistas


Maílson da Nóbrega, Arminio Fraga, Ailton Krenak, Élida Graziane, Gustavo Loyola e outros notáveis apontam diagnósticos e soluções para resolver os principais problemas do País

Por Daniel Weterman
Atualização:

BRASÍLIA – O Brasil tem jeito. Essa é a resposta apontada por especialistas e “cabeças” notáveis que pensam o País. Mas não acaba por aí. A afirmação sempre vem acompanhada de condicionantes. O Brasil tem jeito se investir em educação de qualidade. O Brasil tem jeito, mas tem de enfrentar os privilégios de quem fica com muito dinheiro do orçamento. O Brasil tem jeito, porém, não fez o dever em áreas essenciais como segurança pública.

Na série de reportagens especiais Desigualdade – o Brasil tem jeito?, o Estadão mostrou que os municípios nunca receberam tanto dinheiro, mas a desigualdade se mantém no interior. As prefeituras aumentaram os gastos com funcionários sem resolver problemas básicos da população. Além disso, o orçamento do governo Lula reforça as distorções.

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Mas bons exemplos não faltam em municípios que resolveram investir o dinheiro público no combate à desigualdade. No aniversário de 35 anos da Constituição de 1988, o País avançou, mas ainda enfrenta o dilema de como financiar direitos.

Maílson da Nóbrega: ‘É preciso reduzir os gastos e dar um basta na marcha de prefeitos a Brasília’

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda Foto: Marilia Vasconcelos - 26/9/2021
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Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda (1988 a 1990): A preocupação com a desigualdade foi um dos pontos básicos que orientaram a Constituição. Só que a Constituição fez isso da pior maneira possível porque prevaleceu a ideia de que se reduz a desigualdade aumentando gasto. Não é o gasto público que impulsiona a economia, é a produtividade. O Brasil só vai voltar a crescer se atacar os fatores que hoje emperram a economia, e o principal deles é o problema fiscal. É preciso acabar com as vinculações de gastos na saúde e educação e dar um basta na marcha dos prefeitos a Brasília, que fazem pressão por mais dinheiro e se tornaram insaciáveis. Isso depende de reformas para restabelecer a capacidade de o Estado gerir o Orçamento, ações para melhorar a qualidade da educação e a criação de um ambiente concorrencial que inclua a inovação. Eu acho que o Brasil tem jeito. O País tem dado demonstrações de que é possível gerar crescimento com políticas bem orientadas. O grande exemplo é o agronegócio. O Brasil hoje supera os Estados Unidos na exportação de sete produtos e pode chegar a nove. Se isso tudo aconteceu em um país tão complicado como o Brasil, não há por que se pensar que não possa acontecer em outras áreas.

Arminio Fraga: ‘Sem encarar grandes questões, Brasil tem chance de dar bem errado’

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central Foto: Fabio Motta/Estadão
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Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999 a 2003): O que falta mesmo é prioridade. A Previdência e a folha de pagamento do setor público somam quase 80% do gasto, e fora isso têm os subsídios tributários. É um ponto totalmente fora da curva em qualquer país do planeta. Para fazer o debate para valer, o governo tem que ter a coragem de cutucar essas áreas, e eu não vejo nenhum sinal de que isso vai acontecer. Existem cenários em que o Brasil tem jeito, mas infelizmente existem cenários em que o Brasil se complica bastante ou então fica medíocre. Sem encarar essas grandes questões, não vai ter jeito para valer e vão se repetir os últimos 40 anos, em que a renda per capita cresceu mais ou menos igual à americana, ou seja, melhorou, mas não houve uma convergência para os padrões mais elevados do mundo. O Brasil tem chance de dar certo, mas também tem chance de dar bem errado.

Vilma Pinto: ‘Precisamos não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente’

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado Foto: Denis Ferreira Netto/ Estadão
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Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado: O Brasil tem jeito e estamos caminhando a passos lentos na direção correta. Tivemos avanços recentes em transferência de renda. Por outro lado, o País carece de melhores condições em diversos outros temas, como na questão tributária. O Brasil tem uma carga tributária elevada e uma desigualdade de renda ainda bastante elevada. Isso indica que não estamos usando de forma eficiente todos os nossos potenciais, seja em arrecadação, seja em provisão de políticas públicas. O Brasil precisa não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente. A discussão atual sobre os pisos constitucionais de saúde e educação precisa ir além. Tem que ir até a real necessidade investimento nessas áreas, como fazer isso de forma eficiente e gerar resultados melhores. Regra fiscal sozinha não faz verão, é preciso combinar com outros instrumentos de governança fiscal para alocação eficiente do gasto público.

Marcelo Neri: ‘Brasil implementou agenda de cidadania, mas não gerou prosperidade’

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV)  Foto: Fabio Motta/Estadão
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Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV): A falta de recursos não é a resposta da desigualdade no Brasil. O Brasil implementou uma agenda de cidadania após a Constituição, mas não gerou prosperidade. O País tem gasto recursos em saúde, educação e saneamento, mas a grande falha é como transformar o investimento em capital humano, nas pessoas, numa economia mais forte e inclusiva. Se a gente olhar a expectativa de vida, anos de estudo e pobreza, o Brasil teve um desempenho muito melhor nessas frentes do que teve na economia. Isso gera uma certa limitação do modelo. Você não consegue fazer de novo o que a Constituição faz porque bate nas restrições fiscais. O governo federal está menos atento ao custo-benefício de cada medida. O problema não é só a falta de transparência, mas a busca por onde o retorno social é maior está comprometido.

Élida Graziane: ‘Impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’’

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão
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Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo: Para reduzir a desigualdade, temos que colocar o planejamento como eixo de ordenação de prioridades do orçamento. É o ‘bê-á-bá’ da política pública. O orçamento não tem cumprido o comando constitucional em relação à redução das desigualdades sociais e regionais porque não é feita sistematicamente qualquer avaliação do impacto na desigualdade das opções alocativas estatais. Infelizmente, educação e saúde, os principais direitos sociais, terão seus pisos de custeio minorados em um momento que se esperava sua recuperação plena. Na falta de um claro e consistente planejamento, impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, que decididamente favorece os que já têm maior poder político e econômico, e do faroeste fiscal, em que todo mundo quer saquear os cofres públicos e quem tira a pistola primeiro acaba levando.

Ailton Krenak: ‘O Brasil precisa aprender a ser cidadão’

Ailton Krenak, líder indígena e escritor Foto: Neto Gonçalves/Companhia das Letras

Ailton Krenak, líder indígena, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL): Tudo tem jeito. É mais ou menos como no provérbio: a vida sempre vale a pena quando a alma não é pequena. No Brasil, as pessoas nem sabem quais são seus direitos. É por isso que temos gente trabalhando em condições de escravidão nos fundos de fazenda, nos latifúndios, às vezes até nas cidades, dentro de fábricas, sendo tratadas como animais. Um país que tem uma Constituição e respeita a Constituição não pode deixar seus cidadãos serem rebaixados a uma animalidade. Com a abolição, o Império despachou para as estradas milhões de negros com suas famílias para viver na miséria. Mais tarde, fez o mesmo com os indígenas. A Constituição está se impondo, derrubamos o marco temporal, ficou claro que esses artifícios não colam, que existe uma cidadania resiliente e capaz de disputar o poder político também. Não é só emprego, salário e renda, é tomar decisão, é ser cidadão. Nós não somos escravos, não. A melhor campanha que podíamos fazer no Brasil não é pela modernização, é pela educação da cidadania, e aí depois alfabetiza. O Brasil precisa aprender a ser cidadão.

Paulo Bijos: ‘Respostas virão com avaliação de políticas públicas e revisão dos gastos’

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento: É preciso reconhecer que a reconstrução orçamentária e de investimentos é um processo paulatino. As respostas virão à medida que a agenda de avaliação de políticas públicas e a revisão dos gastos evoluir. Às vezes, você pode ter o mesmo montante de recursos para uma política pública, mas ele ser utilizado de uma melhor forma em prol da redução da desigualdade. Se a avaliação concluir que uma determinada política não cumpre esse papel, ela pode ceder espaço para que uma nova política pública ocupe esse espaço. É muito difícil precisar o prazo. Se pensarmos em mudança geracional, investimentos maciços em educação tendem a trazer uma justiça mais imediata e mudanças também no longo prazo. Sem dúvida, o Brasil tem jeito. Eu sou muito realista, mas sou otimista. Não tem por que acreditar que o País está predestinado a não dar certo. O Brasil pode dar certo e depende do nosso trabalho.

Gustavo Loyola: ‘Educação no Brasil ajuda a perpetuar desigualdade’

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central (1992-1993 e 1995-1997): Não há como combater a desigualdade de uma maneira sustentável sem investimento em educação. Não é que o Brasil gaste pouco em educação. Gastamos muito e a educação não chega a uma qualidade que deveria, principalmente nas classes de renda mais baixa. No fundo, nosso sistema educacional ajuda a perpetuar a desigualdade, na medida em que as crianças que vêm de famílias com renda mais alta têm uma educação melhor do que crianças que vêm de famílias menos favorecidas. O grande problema não foi enfrentado. Muita gente no Brasil acredita que, pondo o governo para investir, isso vai reduzir a desigualdade. Ledo engano. Muitas vezes, os investimentos acabam gerando desigualdade e beneficiando famílias ricas. Por exemplo: o governo pega um dinheiro que poderia aplicar em escola e constrói aeroporto.

Marta Arretche: ‘Governo não tem resposta para segurança pública’

Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da USP Foto: Denny Cesare/Estadão

Marta Arretche, professora Titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP): A gente tem que acreditar que o Brasil tem jeito. Nossa perspectiva depende de com quem a gente se compara. Se compara com a Finlândia, aí não dá. Se olharmos para o Brasil de 50 anos atrás, nós avançamos muito. Na questão social, o grande desafio é como financiar os compromissos da Constituição. Você tem que corrigir distorções pelo lado do gasto, porque tem setores que se apropriam de uma parcela excepcionalmente elevada, e tem que resolver o problema da tributação, porque há setores que contribuem muito menos do que os outros. Em ministérios-chave, na Saúde, no Desenvolvimento Social, na Educação e na Fazenda, o presidente Lula colocou gente comprometida com a redução da desigualdade. Na questão da segurança pública, a esquerda e o governo do PT não têm uma resposta.

Lauro Gonzalez: ‘Problemas na segurança pública e polarização política são obstáculos’

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foto: @FGV via Youtube

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV): O Pix promoveu uma mudança positiva para as classes mais baixas porque o custo da transferência ficou menor. Na mesma direção, o auxílio emergencial da pandemia colocou muita gente dentro do sistema em um intervalo curto de tempo. Estamos no momento de lidar com a “uberização” e a precarização do mercado de trabalho. Experiências como a moeda social, com circulação de uma moeda digital e um programa de transferência de renda local, podem refletir melhor o que acontece em nível local e têm uma chance maior de fazer uma ponte para o desenvolvimento das pessoas. O Brasil tem jeito? Se a gente olhar vários tópicos desde 1994, o copo está meio cheio. O Brasil melhorou em educação, renda, habitação e inclusão financeira, mas tem outras questões, como segurança pública e a polarização política, que trazem obstáculos para o combate à desigualdade e à pobreza. Estamos em um momento complicado sob esse ponto de vista. Na questão política e econômica, é preciso haver um certo entendimento político para que as coisas sejam resolvidas.

BRASÍLIA – O Brasil tem jeito. Essa é a resposta apontada por especialistas e “cabeças” notáveis que pensam o País. Mas não acaba por aí. A afirmação sempre vem acompanhada de condicionantes. O Brasil tem jeito se investir em educação de qualidade. O Brasil tem jeito, mas tem de enfrentar os privilégios de quem fica com muito dinheiro do orçamento. O Brasil tem jeito, porém, não fez o dever em áreas essenciais como segurança pública.

Na série de reportagens especiais Desigualdade – o Brasil tem jeito?, o Estadão mostrou que os municípios nunca receberam tanto dinheiro, mas a desigualdade se mantém no interior. As prefeituras aumentaram os gastos com funcionários sem resolver problemas básicos da população. Além disso, o orçamento do governo Lula reforça as distorções.

Mas bons exemplos não faltam em municípios que resolveram investir o dinheiro público no combate à desigualdade. No aniversário de 35 anos da Constituição de 1988, o País avançou, mas ainda enfrenta o dilema de como financiar direitos.

Maílson da Nóbrega: ‘É preciso reduzir os gastos e dar um basta na marcha de prefeitos a Brasília’

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda Foto: Marilia Vasconcelos - 26/9/2021

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda (1988 a 1990): A preocupação com a desigualdade foi um dos pontos básicos que orientaram a Constituição. Só que a Constituição fez isso da pior maneira possível porque prevaleceu a ideia de que se reduz a desigualdade aumentando gasto. Não é o gasto público que impulsiona a economia, é a produtividade. O Brasil só vai voltar a crescer se atacar os fatores que hoje emperram a economia, e o principal deles é o problema fiscal. É preciso acabar com as vinculações de gastos na saúde e educação e dar um basta na marcha dos prefeitos a Brasília, que fazem pressão por mais dinheiro e se tornaram insaciáveis. Isso depende de reformas para restabelecer a capacidade de o Estado gerir o Orçamento, ações para melhorar a qualidade da educação e a criação de um ambiente concorrencial que inclua a inovação. Eu acho que o Brasil tem jeito. O País tem dado demonstrações de que é possível gerar crescimento com políticas bem orientadas. O grande exemplo é o agronegócio. O Brasil hoje supera os Estados Unidos na exportação de sete produtos e pode chegar a nove. Se isso tudo aconteceu em um país tão complicado como o Brasil, não há por que se pensar que não possa acontecer em outras áreas.

Arminio Fraga: ‘Sem encarar grandes questões, Brasil tem chance de dar bem errado’

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central Foto: Fabio Motta/Estadão

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999 a 2003): O que falta mesmo é prioridade. A Previdência e a folha de pagamento do setor público somam quase 80% do gasto, e fora isso têm os subsídios tributários. É um ponto totalmente fora da curva em qualquer país do planeta. Para fazer o debate para valer, o governo tem que ter a coragem de cutucar essas áreas, e eu não vejo nenhum sinal de que isso vai acontecer. Existem cenários em que o Brasil tem jeito, mas infelizmente existem cenários em que o Brasil se complica bastante ou então fica medíocre. Sem encarar essas grandes questões, não vai ter jeito para valer e vão se repetir os últimos 40 anos, em que a renda per capita cresceu mais ou menos igual à americana, ou seja, melhorou, mas não houve uma convergência para os padrões mais elevados do mundo. O Brasil tem chance de dar certo, mas também tem chance de dar bem errado.

Vilma Pinto: ‘Precisamos não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente’

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado Foto: Denis Ferreira Netto/ Estadão

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado: O Brasil tem jeito e estamos caminhando a passos lentos na direção correta. Tivemos avanços recentes em transferência de renda. Por outro lado, o País carece de melhores condições em diversos outros temas, como na questão tributária. O Brasil tem uma carga tributária elevada e uma desigualdade de renda ainda bastante elevada. Isso indica que não estamos usando de forma eficiente todos os nossos potenciais, seja em arrecadação, seja em provisão de políticas públicas. O Brasil precisa não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente. A discussão atual sobre os pisos constitucionais de saúde e educação precisa ir além. Tem que ir até a real necessidade investimento nessas áreas, como fazer isso de forma eficiente e gerar resultados melhores. Regra fiscal sozinha não faz verão, é preciso combinar com outros instrumentos de governança fiscal para alocação eficiente do gasto público.

Marcelo Neri: ‘Brasil implementou agenda de cidadania, mas não gerou prosperidade’

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV)  Foto: Fabio Motta/Estadão

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV): A falta de recursos não é a resposta da desigualdade no Brasil. O Brasil implementou uma agenda de cidadania após a Constituição, mas não gerou prosperidade. O País tem gasto recursos em saúde, educação e saneamento, mas a grande falha é como transformar o investimento em capital humano, nas pessoas, numa economia mais forte e inclusiva. Se a gente olhar a expectativa de vida, anos de estudo e pobreza, o Brasil teve um desempenho muito melhor nessas frentes do que teve na economia. Isso gera uma certa limitação do modelo. Você não consegue fazer de novo o que a Constituição faz porque bate nas restrições fiscais. O governo federal está menos atento ao custo-benefício de cada medida. O problema não é só a falta de transparência, mas a busca por onde o retorno social é maior está comprometido.

Élida Graziane: ‘Impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’’

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo: Para reduzir a desigualdade, temos que colocar o planejamento como eixo de ordenação de prioridades do orçamento. É o ‘bê-á-bá’ da política pública. O orçamento não tem cumprido o comando constitucional em relação à redução das desigualdades sociais e regionais porque não é feita sistematicamente qualquer avaliação do impacto na desigualdade das opções alocativas estatais. Infelizmente, educação e saúde, os principais direitos sociais, terão seus pisos de custeio minorados em um momento que se esperava sua recuperação plena. Na falta de um claro e consistente planejamento, impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, que decididamente favorece os que já têm maior poder político e econômico, e do faroeste fiscal, em que todo mundo quer saquear os cofres públicos e quem tira a pistola primeiro acaba levando.

Ailton Krenak: ‘O Brasil precisa aprender a ser cidadão’

Ailton Krenak, líder indígena e escritor Foto: Neto Gonçalves/Companhia das Letras

Ailton Krenak, líder indígena, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL): Tudo tem jeito. É mais ou menos como no provérbio: a vida sempre vale a pena quando a alma não é pequena. No Brasil, as pessoas nem sabem quais são seus direitos. É por isso que temos gente trabalhando em condições de escravidão nos fundos de fazenda, nos latifúndios, às vezes até nas cidades, dentro de fábricas, sendo tratadas como animais. Um país que tem uma Constituição e respeita a Constituição não pode deixar seus cidadãos serem rebaixados a uma animalidade. Com a abolição, o Império despachou para as estradas milhões de negros com suas famílias para viver na miséria. Mais tarde, fez o mesmo com os indígenas. A Constituição está se impondo, derrubamos o marco temporal, ficou claro que esses artifícios não colam, que existe uma cidadania resiliente e capaz de disputar o poder político também. Não é só emprego, salário e renda, é tomar decisão, é ser cidadão. Nós não somos escravos, não. A melhor campanha que podíamos fazer no Brasil não é pela modernização, é pela educação da cidadania, e aí depois alfabetiza. O Brasil precisa aprender a ser cidadão.

Paulo Bijos: ‘Respostas virão com avaliação de políticas públicas e revisão dos gastos’

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento: É preciso reconhecer que a reconstrução orçamentária e de investimentos é um processo paulatino. As respostas virão à medida que a agenda de avaliação de políticas públicas e a revisão dos gastos evoluir. Às vezes, você pode ter o mesmo montante de recursos para uma política pública, mas ele ser utilizado de uma melhor forma em prol da redução da desigualdade. Se a avaliação concluir que uma determinada política não cumpre esse papel, ela pode ceder espaço para que uma nova política pública ocupe esse espaço. É muito difícil precisar o prazo. Se pensarmos em mudança geracional, investimentos maciços em educação tendem a trazer uma justiça mais imediata e mudanças também no longo prazo. Sem dúvida, o Brasil tem jeito. Eu sou muito realista, mas sou otimista. Não tem por que acreditar que o País está predestinado a não dar certo. O Brasil pode dar certo e depende do nosso trabalho.

Gustavo Loyola: ‘Educação no Brasil ajuda a perpetuar desigualdade’

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central (1992-1993 e 1995-1997): Não há como combater a desigualdade de uma maneira sustentável sem investimento em educação. Não é que o Brasil gaste pouco em educação. Gastamos muito e a educação não chega a uma qualidade que deveria, principalmente nas classes de renda mais baixa. No fundo, nosso sistema educacional ajuda a perpetuar a desigualdade, na medida em que as crianças que vêm de famílias com renda mais alta têm uma educação melhor do que crianças que vêm de famílias menos favorecidas. O grande problema não foi enfrentado. Muita gente no Brasil acredita que, pondo o governo para investir, isso vai reduzir a desigualdade. Ledo engano. Muitas vezes, os investimentos acabam gerando desigualdade e beneficiando famílias ricas. Por exemplo: o governo pega um dinheiro que poderia aplicar em escola e constrói aeroporto.

Marta Arretche: ‘Governo não tem resposta para segurança pública’

Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da USP Foto: Denny Cesare/Estadão

Marta Arretche, professora Titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP): A gente tem que acreditar que o Brasil tem jeito. Nossa perspectiva depende de com quem a gente se compara. Se compara com a Finlândia, aí não dá. Se olharmos para o Brasil de 50 anos atrás, nós avançamos muito. Na questão social, o grande desafio é como financiar os compromissos da Constituição. Você tem que corrigir distorções pelo lado do gasto, porque tem setores que se apropriam de uma parcela excepcionalmente elevada, e tem que resolver o problema da tributação, porque há setores que contribuem muito menos do que os outros. Em ministérios-chave, na Saúde, no Desenvolvimento Social, na Educação e na Fazenda, o presidente Lula colocou gente comprometida com a redução da desigualdade. Na questão da segurança pública, a esquerda e o governo do PT não têm uma resposta.

Lauro Gonzalez: ‘Problemas na segurança pública e polarização política são obstáculos’

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foto: @FGV via Youtube

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV): O Pix promoveu uma mudança positiva para as classes mais baixas porque o custo da transferência ficou menor. Na mesma direção, o auxílio emergencial da pandemia colocou muita gente dentro do sistema em um intervalo curto de tempo. Estamos no momento de lidar com a “uberização” e a precarização do mercado de trabalho. Experiências como a moeda social, com circulação de uma moeda digital e um programa de transferência de renda local, podem refletir melhor o que acontece em nível local e têm uma chance maior de fazer uma ponte para o desenvolvimento das pessoas. O Brasil tem jeito? Se a gente olhar vários tópicos desde 1994, o copo está meio cheio. O Brasil melhorou em educação, renda, habitação e inclusão financeira, mas tem outras questões, como segurança pública e a polarização política, que trazem obstáculos para o combate à desigualdade e à pobreza. Estamos em um momento complicado sob esse ponto de vista. Na questão política e econômica, é preciso haver um certo entendimento político para que as coisas sejam resolvidas.

BRASÍLIA – O Brasil tem jeito. Essa é a resposta apontada por especialistas e “cabeças” notáveis que pensam o País. Mas não acaba por aí. A afirmação sempre vem acompanhada de condicionantes. O Brasil tem jeito se investir em educação de qualidade. O Brasil tem jeito, mas tem de enfrentar os privilégios de quem fica com muito dinheiro do orçamento. O Brasil tem jeito, porém, não fez o dever em áreas essenciais como segurança pública.

Na série de reportagens especiais Desigualdade – o Brasil tem jeito?, o Estadão mostrou que os municípios nunca receberam tanto dinheiro, mas a desigualdade se mantém no interior. As prefeituras aumentaram os gastos com funcionários sem resolver problemas básicos da população. Além disso, o orçamento do governo Lula reforça as distorções.

Mas bons exemplos não faltam em municípios que resolveram investir o dinheiro público no combate à desigualdade. No aniversário de 35 anos da Constituição de 1988, o País avançou, mas ainda enfrenta o dilema de como financiar direitos.

Maílson da Nóbrega: ‘É preciso reduzir os gastos e dar um basta na marcha de prefeitos a Brasília’

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda Foto: Marilia Vasconcelos - 26/9/2021

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda (1988 a 1990): A preocupação com a desigualdade foi um dos pontos básicos que orientaram a Constituição. Só que a Constituição fez isso da pior maneira possível porque prevaleceu a ideia de que se reduz a desigualdade aumentando gasto. Não é o gasto público que impulsiona a economia, é a produtividade. O Brasil só vai voltar a crescer se atacar os fatores que hoje emperram a economia, e o principal deles é o problema fiscal. É preciso acabar com as vinculações de gastos na saúde e educação e dar um basta na marcha dos prefeitos a Brasília, que fazem pressão por mais dinheiro e se tornaram insaciáveis. Isso depende de reformas para restabelecer a capacidade de o Estado gerir o Orçamento, ações para melhorar a qualidade da educação e a criação de um ambiente concorrencial que inclua a inovação. Eu acho que o Brasil tem jeito. O País tem dado demonstrações de que é possível gerar crescimento com políticas bem orientadas. O grande exemplo é o agronegócio. O Brasil hoje supera os Estados Unidos na exportação de sete produtos e pode chegar a nove. Se isso tudo aconteceu em um país tão complicado como o Brasil, não há por que se pensar que não possa acontecer em outras áreas.

Arminio Fraga: ‘Sem encarar grandes questões, Brasil tem chance de dar bem errado’

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central Foto: Fabio Motta/Estadão

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999 a 2003): O que falta mesmo é prioridade. A Previdência e a folha de pagamento do setor público somam quase 80% do gasto, e fora isso têm os subsídios tributários. É um ponto totalmente fora da curva em qualquer país do planeta. Para fazer o debate para valer, o governo tem que ter a coragem de cutucar essas áreas, e eu não vejo nenhum sinal de que isso vai acontecer. Existem cenários em que o Brasil tem jeito, mas infelizmente existem cenários em que o Brasil se complica bastante ou então fica medíocre. Sem encarar essas grandes questões, não vai ter jeito para valer e vão se repetir os últimos 40 anos, em que a renda per capita cresceu mais ou menos igual à americana, ou seja, melhorou, mas não houve uma convergência para os padrões mais elevados do mundo. O Brasil tem chance de dar certo, mas também tem chance de dar bem errado.

Vilma Pinto: ‘Precisamos não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente’

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado Foto: Denis Ferreira Netto/ Estadão

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado: O Brasil tem jeito e estamos caminhando a passos lentos na direção correta. Tivemos avanços recentes em transferência de renda. Por outro lado, o País carece de melhores condições em diversos outros temas, como na questão tributária. O Brasil tem uma carga tributária elevada e uma desigualdade de renda ainda bastante elevada. Isso indica que não estamos usando de forma eficiente todos os nossos potenciais, seja em arrecadação, seja em provisão de políticas públicas. O Brasil precisa não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente. A discussão atual sobre os pisos constitucionais de saúde e educação precisa ir além. Tem que ir até a real necessidade investimento nessas áreas, como fazer isso de forma eficiente e gerar resultados melhores. Regra fiscal sozinha não faz verão, é preciso combinar com outros instrumentos de governança fiscal para alocação eficiente do gasto público.

Marcelo Neri: ‘Brasil implementou agenda de cidadania, mas não gerou prosperidade’

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV)  Foto: Fabio Motta/Estadão

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV): A falta de recursos não é a resposta da desigualdade no Brasil. O Brasil implementou uma agenda de cidadania após a Constituição, mas não gerou prosperidade. O País tem gasto recursos em saúde, educação e saneamento, mas a grande falha é como transformar o investimento em capital humano, nas pessoas, numa economia mais forte e inclusiva. Se a gente olhar a expectativa de vida, anos de estudo e pobreza, o Brasil teve um desempenho muito melhor nessas frentes do que teve na economia. Isso gera uma certa limitação do modelo. Você não consegue fazer de novo o que a Constituição faz porque bate nas restrições fiscais. O governo federal está menos atento ao custo-benefício de cada medida. O problema não é só a falta de transparência, mas a busca por onde o retorno social é maior está comprometido.

Élida Graziane: ‘Impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’’

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo: Para reduzir a desigualdade, temos que colocar o planejamento como eixo de ordenação de prioridades do orçamento. É o ‘bê-á-bá’ da política pública. O orçamento não tem cumprido o comando constitucional em relação à redução das desigualdades sociais e regionais porque não é feita sistematicamente qualquer avaliação do impacto na desigualdade das opções alocativas estatais. Infelizmente, educação e saúde, os principais direitos sociais, terão seus pisos de custeio minorados em um momento que se esperava sua recuperação plena. Na falta de um claro e consistente planejamento, impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, que decididamente favorece os que já têm maior poder político e econômico, e do faroeste fiscal, em que todo mundo quer saquear os cofres públicos e quem tira a pistola primeiro acaba levando.

Ailton Krenak: ‘O Brasil precisa aprender a ser cidadão’

Ailton Krenak, líder indígena e escritor Foto: Neto Gonçalves/Companhia das Letras

Ailton Krenak, líder indígena, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL): Tudo tem jeito. É mais ou menos como no provérbio: a vida sempre vale a pena quando a alma não é pequena. No Brasil, as pessoas nem sabem quais são seus direitos. É por isso que temos gente trabalhando em condições de escravidão nos fundos de fazenda, nos latifúndios, às vezes até nas cidades, dentro de fábricas, sendo tratadas como animais. Um país que tem uma Constituição e respeita a Constituição não pode deixar seus cidadãos serem rebaixados a uma animalidade. Com a abolição, o Império despachou para as estradas milhões de negros com suas famílias para viver na miséria. Mais tarde, fez o mesmo com os indígenas. A Constituição está se impondo, derrubamos o marco temporal, ficou claro que esses artifícios não colam, que existe uma cidadania resiliente e capaz de disputar o poder político também. Não é só emprego, salário e renda, é tomar decisão, é ser cidadão. Nós não somos escravos, não. A melhor campanha que podíamos fazer no Brasil não é pela modernização, é pela educação da cidadania, e aí depois alfabetiza. O Brasil precisa aprender a ser cidadão.

Paulo Bijos: ‘Respostas virão com avaliação de políticas públicas e revisão dos gastos’

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento: É preciso reconhecer que a reconstrução orçamentária e de investimentos é um processo paulatino. As respostas virão à medida que a agenda de avaliação de políticas públicas e a revisão dos gastos evoluir. Às vezes, você pode ter o mesmo montante de recursos para uma política pública, mas ele ser utilizado de uma melhor forma em prol da redução da desigualdade. Se a avaliação concluir que uma determinada política não cumpre esse papel, ela pode ceder espaço para que uma nova política pública ocupe esse espaço. É muito difícil precisar o prazo. Se pensarmos em mudança geracional, investimentos maciços em educação tendem a trazer uma justiça mais imediata e mudanças também no longo prazo. Sem dúvida, o Brasil tem jeito. Eu sou muito realista, mas sou otimista. Não tem por que acreditar que o País está predestinado a não dar certo. O Brasil pode dar certo e depende do nosso trabalho.

Gustavo Loyola: ‘Educação no Brasil ajuda a perpetuar desigualdade’

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central (1992-1993 e 1995-1997): Não há como combater a desigualdade de uma maneira sustentável sem investimento em educação. Não é que o Brasil gaste pouco em educação. Gastamos muito e a educação não chega a uma qualidade que deveria, principalmente nas classes de renda mais baixa. No fundo, nosso sistema educacional ajuda a perpetuar a desigualdade, na medida em que as crianças que vêm de famílias com renda mais alta têm uma educação melhor do que crianças que vêm de famílias menos favorecidas. O grande problema não foi enfrentado. Muita gente no Brasil acredita que, pondo o governo para investir, isso vai reduzir a desigualdade. Ledo engano. Muitas vezes, os investimentos acabam gerando desigualdade e beneficiando famílias ricas. Por exemplo: o governo pega um dinheiro que poderia aplicar em escola e constrói aeroporto.

Marta Arretche: ‘Governo não tem resposta para segurança pública’

Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da USP Foto: Denny Cesare/Estadão

Marta Arretche, professora Titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP): A gente tem que acreditar que o Brasil tem jeito. Nossa perspectiva depende de com quem a gente se compara. Se compara com a Finlândia, aí não dá. Se olharmos para o Brasil de 50 anos atrás, nós avançamos muito. Na questão social, o grande desafio é como financiar os compromissos da Constituição. Você tem que corrigir distorções pelo lado do gasto, porque tem setores que se apropriam de uma parcela excepcionalmente elevada, e tem que resolver o problema da tributação, porque há setores que contribuem muito menos do que os outros. Em ministérios-chave, na Saúde, no Desenvolvimento Social, na Educação e na Fazenda, o presidente Lula colocou gente comprometida com a redução da desigualdade. Na questão da segurança pública, a esquerda e o governo do PT não têm uma resposta.

Lauro Gonzalez: ‘Problemas na segurança pública e polarização política são obstáculos’

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foto: @FGV via Youtube

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV): O Pix promoveu uma mudança positiva para as classes mais baixas porque o custo da transferência ficou menor. Na mesma direção, o auxílio emergencial da pandemia colocou muita gente dentro do sistema em um intervalo curto de tempo. Estamos no momento de lidar com a “uberização” e a precarização do mercado de trabalho. Experiências como a moeda social, com circulação de uma moeda digital e um programa de transferência de renda local, podem refletir melhor o que acontece em nível local e têm uma chance maior de fazer uma ponte para o desenvolvimento das pessoas. O Brasil tem jeito? Se a gente olhar vários tópicos desde 1994, o copo está meio cheio. O Brasil melhorou em educação, renda, habitação e inclusão financeira, mas tem outras questões, como segurança pública e a polarização política, que trazem obstáculos para o combate à desigualdade e à pobreza. Estamos em um momento complicado sob esse ponto de vista. Na questão política e econômica, é preciso haver um certo entendimento político para que as coisas sejam resolvidas.

BRASÍLIA – O Brasil tem jeito. Essa é a resposta apontada por especialistas e “cabeças” notáveis que pensam o País. Mas não acaba por aí. A afirmação sempre vem acompanhada de condicionantes. O Brasil tem jeito se investir em educação de qualidade. O Brasil tem jeito, mas tem de enfrentar os privilégios de quem fica com muito dinheiro do orçamento. O Brasil tem jeito, porém, não fez o dever em áreas essenciais como segurança pública.

Na série de reportagens especiais Desigualdade – o Brasil tem jeito?, o Estadão mostrou que os municípios nunca receberam tanto dinheiro, mas a desigualdade se mantém no interior. As prefeituras aumentaram os gastos com funcionários sem resolver problemas básicos da população. Além disso, o orçamento do governo Lula reforça as distorções.

Mas bons exemplos não faltam em municípios que resolveram investir o dinheiro público no combate à desigualdade. No aniversário de 35 anos da Constituição de 1988, o País avançou, mas ainda enfrenta o dilema de como financiar direitos.

Maílson da Nóbrega: ‘É preciso reduzir os gastos e dar um basta na marcha de prefeitos a Brasília’

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda Foto: Marilia Vasconcelos - 26/9/2021

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda (1988 a 1990): A preocupação com a desigualdade foi um dos pontos básicos que orientaram a Constituição. Só que a Constituição fez isso da pior maneira possível porque prevaleceu a ideia de que se reduz a desigualdade aumentando gasto. Não é o gasto público que impulsiona a economia, é a produtividade. O Brasil só vai voltar a crescer se atacar os fatores que hoje emperram a economia, e o principal deles é o problema fiscal. É preciso acabar com as vinculações de gastos na saúde e educação e dar um basta na marcha dos prefeitos a Brasília, que fazem pressão por mais dinheiro e se tornaram insaciáveis. Isso depende de reformas para restabelecer a capacidade de o Estado gerir o Orçamento, ações para melhorar a qualidade da educação e a criação de um ambiente concorrencial que inclua a inovação. Eu acho que o Brasil tem jeito. O País tem dado demonstrações de que é possível gerar crescimento com políticas bem orientadas. O grande exemplo é o agronegócio. O Brasil hoje supera os Estados Unidos na exportação de sete produtos e pode chegar a nove. Se isso tudo aconteceu em um país tão complicado como o Brasil, não há por que se pensar que não possa acontecer em outras áreas.

Arminio Fraga: ‘Sem encarar grandes questões, Brasil tem chance de dar bem errado’

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central Foto: Fabio Motta/Estadão

Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999 a 2003): O que falta mesmo é prioridade. A Previdência e a folha de pagamento do setor público somam quase 80% do gasto, e fora isso têm os subsídios tributários. É um ponto totalmente fora da curva em qualquer país do planeta. Para fazer o debate para valer, o governo tem que ter a coragem de cutucar essas áreas, e eu não vejo nenhum sinal de que isso vai acontecer. Existem cenários em que o Brasil tem jeito, mas infelizmente existem cenários em que o Brasil se complica bastante ou então fica medíocre. Sem encarar essas grandes questões, não vai ter jeito para valer e vão se repetir os últimos 40 anos, em que a renda per capita cresceu mais ou menos igual à americana, ou seja, melhorou, mas não houve uma convergência para os padrões mais elevados do mundo. O Brasil tem chance de dar certo, mas também tem chance de dar bem errado.

Vilma Pinto: ‘Precisamos não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente’

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado Foto: Denis Ferreira Netto/ Estadão

Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado: O Brasil tem jeito e estamos caminhando a passos lentos na direção correta. Tivemos avanços recentes em transferência de renda. Por outro lado, o País carece de melhores condições em diversos outros temas, como na questão tributária. O Brasil tem uma carga tributária elevada e uma desigualdade de renda ainda bastante elevada. Isso indica que não estamos usando de forma eficiente todos os nossos potenciais, seja em arrecadação, seja em provisão de políticas públicas. O Brasil precisa não apenas investir mais, mas gastar de forma eficiente. A discussão atual sobre os pisos constitucionais de saúde e educação precisa ir além. Tem que ir até a real necessidade investimento nessas áreas, como fazer isso de forma eficiente e gerar resultados melhores. Regra fiscal sozinha não faz verão, é preciso combinar com outros instrumentos de governança fiscal para alocação eficiente do gasto público.

Marcelo Neri: ‘Brasil implementou agenda de cidadania, mas não gerou prosperidade’

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV)  Foto: Fabio Motta/Estadão

Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV): A falta de recursos não é a resposta da desigualdade no Brasil. O Brasil implementou uma agenda de cidadania após a Constituição, mas não gerou prosperidade. O País tem gasto recursos em saúde, educação e saneamento, mas a grande falha é como transformar o investimento em capital humano, nas pessoas, numa economia mais forte e inclusiva. Se a gente olhar a expectativa de vida, anos de estudo e pobreza, o Brasil teve um desempenho muito melhor nessas frentes do que teve na economia. Isso gera uma certa limitação do modelo. Você não consegue fazer de novo o que a Constituição faz porque bate nas restrições fiscais. O governo federal está menos atento ao custo-benefício de cada medida. O problema não é só a falta de transparência, mas a busca por onde o retorno social é maior está comprometido.

Élida Graziane: ‘Impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’’

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão

Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo: Para reduzir a desigualdade, temos que colocar o planejamento como eixo de ordenação de prioridades do orçamento. É o ‘bê-á-bá’ da política pública. O orçamento não tem cumprido o comando constitucional em relação à redução das desigualdades sociais e regionais porque não é feita sistematicamente qualquer avaliação do impacto na desigualdade das opções alocativas estatais. Infelizmente, educação e saúde, os principais direitos sociais, terão seus pisos de custeio minorados em um momento que se esperava sua recuperação plena. Na falta de um claro e consistente planejamento, impera a lógica do ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, que decididamente favorece os que já têm maior poder político e econômico, e do faroeste fiscal, em que todo mundo quer saquear os cofres públicos e quem tira a pistola primeiro acaba levando.

Ailton Krenak: ‘O Brasil precisa aprender a ser cidadão’

Ailton Krenak, líder indígena e escritor Foto: Neto Gonçalves/Companhia das Letras

Ailton Krenak, líder indígena, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL): Tudo tem jeito. É mais ou menos como no provérbio: a vida sempre vale a pena quando a alma não é pequena. No Brasil, as pessoas nem sabem quais são seus direitos. É por isso que temos gente trabalhando em condições de escravidão nos fundos de fazenda, nos latifúndios, às vezes até nas cidades, dentro de fábricas, sendo tratadas como animais. Um país que tem uma Constituição e respeita a Constituição não pode deixar seus cidadãos serem rebaixados a uma animalidade. Com a abolição, o Império despachou para as estradas milhões de negros com suas famílias para viver na miséria. Mais tarde, fez o mesmo com os indígenas. A Constituição está se impondo, derrubamos o marco temporal, ficou claro que esses artifícios não colam, que existe uma cidadania resiliente e capaz de disputar o poder político também. Não é só emprego, salário e renda, é tomar decisão, é ser cidadão. Nós não somos escravos, não. A melhor campanha que podíamos fazer no Brasil não é pela modernização, é pela educação da cidadania, e aí depois alfabetiza. O Brasil precisa aprender a ser cidadão.

Paulo Bijos: ‘Respostas virão com avaliação de políticas públicas e revisão dos gastos’

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Paulo Bijos, secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento: É preciso reconhecer que a reconstrução orçamentária e de investimentos é um processo paulatino. As respostas virão à medida que a agenda de avaliação de políticas públicas e a revisão dos gastos evoluir. Às vezes, você pode ter o mesmo montante de recursos para uma política pública, mas ele ser utilizado de uma melhor forma em prol da redução da desigualdade. Se a avaliação concluir que uma determinada política não cumpre esse papel, ela pode ceder espaço para que uma nova política pública ocupe esse espaço. É muito difícil precisar o prazo. Se pensarmos em mudança geracional, investimentos maciços em educação tendem a trazer uma justiça mais imediata e mudanças também no longo prazo. Sem dúvida, o Brasil tem jeito. Eu sou muito realista, mas sou otimista. Não tem por que acreditar que o País está predestinado a não dar certo. O Brasil pode dar certo e depende do nosso trabalho.

Gustavo Loyola: ‘Educação no Brasil ajuda a perpetuar desigualdade’

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central (1992-1993 e 1995-1997): Não há como combater a desigualdade de uma maneira sustentável sem investimento em educação. Não é que o Brasil gaste pouco em educação. Gastamos muito e a educação não chega a uma qualidade que deveria, principalmente nas classes de renda mais baixa. No fundo, nosso sistema educacional ajuda a perpetuar a desigualdade, na medida em que as crianças que vêm de famílias com renda mais alta têm uma educação melhor do que crianças que vêm de famílias menos favorecidas. O grande problema não foi enfrentado. Muita gente no Brasil acredita que, pondo o governo para investir, isso vai reduzir a desigualdade. Ledo engano. Muitas vezes, os investimentos acabam gerando desigualdade e beneficiando famílias ricas. Por exemplo: o governo pega um dinheiro que poderia aplicar em escola e constrói aeroporto.

Marta Arretche: ‘Governo não tem resposta para segurança pública’

Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da USP Foto: Denny Cesare/Estadão

Marta Arretche, professora Titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP): A gente tem que acreditar que o Brasil tem jeito. Nossa perspectiva depende de com quem a gente se compara. Se compara com a Finlândia, aí não dá. Se olharmos para o Brasil de 50 anos atrás, nós avançamos muito. Na questão social, o grande desafio é como financiar os compromissos da Constituição. Você tem que corrigir distorções pelo lado do gasto, porque tem setores que se apropriam de uma parcela excepcionalmente elevada, e tem que resolver o problema da tributação, porque há setores que contribuem muito menos do que os outros. Em ministérios-chave, na Saúde, no Desenvolvimento Social, na Educação e na Fazenda, o presidente Lula colocou gente comprometida com a redução da desigualdade. Na questão da segurança pública, a esquerda e o governo do PT não têm uma resposta.

Lauro Gonzalez: ‘Problemas na segurança pública e polarização política são obstáculos’

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV). Foto: @FGV via Youtube

Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Microfinanças da Fundação Getulio Vargas (FGV): O Pix promoveu uma mudança positiva para as classes mais baixas porque o custo da transferência ficou menor. Na mesma direção, o auxílio emergencial da pandemia colocou muita gente dentro do sistema em um intervalo curto de tempo. Estamos no momento de lidar com a “uberização” e a precarização do mercado de trabalho. Experiências como a moeda social, com circulação de uma moeda digital e um programa de transferência de renda local, podem refletir melhor o que acontece em nível local e têm uma chance maior de fazer uma ponte para o desenvolvimento das pessoas. O Brasil tem jeito? Se a gente olhar vários tópicos desde 1994, o copo está meio cheio. O Brasil melhorou em educação, renda, habitação e inclusão financeira, mas tem outras questões, como segurança pública e a polarização política, que trazem obstáculos para o combate à desigualdade e à pobreza. Estamos em um momento complicado sob esse ponto de vista. Na questão política e econômica, é preciso haver um certo entendimento político para que as coisas sejam resolvidas.

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