“Eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa.” (Guimarães Rosa)

O inferno de Cunha


Algo convenceu os políticos de que só se governa pelo toma lá dá cá. Mas o jogo fisiológico, mais do que corromper, vicia – como bem entendeu o ex-presidente da Câmara.

Por Carlos Melo

Publicado no Caderno "Aliás,", de domingo 08.05.2016

Que dizer da situação em que a presidente da República perde o mandato, o da Câmara é afastado pelo Supremo (STF) e o do Senado é processado no mesmo Tribunal? Em que o vice - e provável futuro presidente - não tem a simpatia da crítica e nem a confiança do público, e onde os partidos desintegram-se e o Congresso é protagonista de momentos deprimentes? Dizer apenas que o sistema entrou em colapso e que é hora de refazer tudo.

Os sinais da configuração do colapso não são de hoje: há quase 10 anos José Dirceu morreu abraçado a Roberto Jefferson, assim como Dilma e Cunha podem ter dado um abraço de afogados. Numa vertiginosa queda, a autoestima do País chegou ao rés do chão, mas a conciliação desses fatores não foi praga, sorte, azar, coincidência, destino. Foi um processo estrutural repleto de vícios, erros e omissões da maior parte dos atores políticos, dos poderes e da sociedade, inclusive.

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Coalizões políticas para o bem governar existem, é claro, em todo o mundo. Desde que se inventou a divisão de poderes, Executivo e Legislativo negociam, e é bom que negociem - dividir o poder é mais saudável que concentrá-lo. Também o Judiciário existe como guardião de leis, regras, da Constituição. Numa sociedade saudável, a Suprema Corte é o "garante" do sistema e, naturalmente, aparece pouco. Raramente intervém na normalidade do conflito. A política é soberana.

Mas, hoje, com maior facilidade se sabe os nomes dos 11 ministros do Supremo do que a escalação da seleção de futebol. O país perdeu referências: a situação é grave na política, na Justiça - e até no futebol. A política esqueceu sua razão, a promessa que a justifica: a busca do bem-estar. Da felicidade, como apontou Aristóteles.

Por paradoxal que pareça, a descrença na política nasceu dos próprios políticos. A lógica do "dá cá toma lá" substituiu programas, projetos, o diálogo e a negociação. Numa palavra: a política. Algo convenceu os governantes de que é assim, sempre foi assim e que, portanto, será sempre essa a forma com que se governa. O jogo fisiológico não apenas corrompe, vicia. Faz crer que não há alternativa. E assim o presidencialismo de coalizão fixou-se no balcão.

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Claro, para que as engrenagens rodem com menor atrito alguma graxa será, eventualmente, necessária. O segredo está menos no princípio que na quantidade: o excesso paralisa o processo, empapuça e emperra definitivamente a máquina. Eduardo Cunha foi o operador que melhor compreendeu o sistema: tratou de conciliar interesses localizados na esfera do Estado: empresas, parlamentares - governos, eventualmente. Esqueceu, porém, que havia a sociedade. Não se preocupou com excessos.

Porém, para além do protagonismo apenas recente, é injusto dar-lhe exclusividade. Cunha foi - passado? -- apenas o primus inter pares. Mais nocivos foram os sucessivos governos renderem-se à lógica do preceito franciscano "é dando que se recebe". Assim fizeram por um mix razões: malandragem, putrefação, tolice e preguiça. O fato é que a lógica foi assimilada com indisfarçável naturalidade: seria mais barato comprar do que negociar com o Parlamento.

Os efeitos de longo prazo disso tudo são, hoje, mais que sabidos. Chegou-se ao paroxismo: enquanto os recursos, naturalmente, têm fim, a voracidade é infinitamente elástica. Quando tudo já foi dado, nada há a receber. Cobiça e luxúria são, com efeito, sentimentos tirânicos (Paulo Prado, Retrato do Brasil, 1927). O vício faz olhar para um inferno em que o diabo sorri. Foi mais ou menos isso.

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As tais pedaladas estão longe de ser o maior dos erros de Dilma Rousseff - e Dilma também não é o maior erro de Lula. O erro de ambos foi não perceber que, em velocidade de cruzeiro, em breve o processo colapsaria; o mico poderia acabar em suas mãos. E, até que a desgraça de Eduardo Cunha, nesta semana, se consumasse pelas mãos de Teori Zavascki, Michel Temer e seus operadores caminhavam pela mesma trilha: mais do mesmo. Limitando-se, no máximo, a um "reloading" do sistema, davam à luz um processo de dias contados, gestando um mico novo que, em breve, ficaria em suas mãos.

Faz sentido. Originário do mesmo sistema, também Michel Temer parece cultivar a crença de que "é assim e sempre assim será", mesmo no fundo do poço. Nas últimas semanas, o que se leu foram notícias de uma simples recarga à lógica que é essencialmente a mesma de sempre. Com efeito, a composição do Congresso é muito ruim. Não fosse a mão pesada de Teori, é possível que até mesmo o operador fosse invariável: Eduardo Cunha.

Às vezes apenas a realidade dura e crua é o que pode salvar: sem Cunha, o sistema colapsado ou se regenera ou derrete de vez. Logicamente, o outro vice predestinado - Waldir Maranhão (PP-MA) - não é apto a dar prosseguimento à obra do chefe. A coordenação do processo requer arte, embora a voracidade possa ser a mesma. Por outro lado, insistir num substituto à altura do anjo ora caído - um Cunha genérico -, será, possivelmente, outro erro: enche os pulmões de ar contaminado. Para não cair, a ponte para o futuro que Michel Temer planeja carecerá de outro tipo de argamassa.

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Carlos Melo, cientista politico. Professor do Insper

Publicado no Caderno "Aliás,", de domingo 08.05.2016

Que dizer da situação em que a presidente da República perde o mandato, o da Câmara é afastado pelo Supremo (STF) e o do Senado é processado no mesmo Tribunal? Em que o vice - e provável futuro presidente - não tem a simpatia da crítica e nem a confiança do público, e onde os partidos desintegram-se e o Congresso é protagonista de momentos deprimentes? Dizer apenas que o sistema entrou em colapso e que é hora de refazer tudo.

Os sinais da configuração do colapso não são de hoje: há quase 10 anos José Dirceu morreu abraçado a Roberto Jefferson, assim como Dilma e Cunha podem ter dado um abraço de afogados. Numa vertiginosa queda, a autoestima do País chegou ao rés do chão, mas a conciliação desses fatores não foi praga, sorte, azar, coincidência, destino. Foi um processo estrutural repleto de vícios, erros e omissões da maior parte dos atores políticos, dos poderes e da sociedade, inclusive.

Coalizões políticas para o bem governar existem, é claro, em todo o mundo. Desde que se inventou a divisão de poderes, Executivo e Legislativo negociam, e é bom que negociem - dividir o poder é mais saudável que concentrá-lo. Também o Judiciário existe como guardião de leis, regras, da Constituição. Numa sociedade saudável, a Suprema Corte é o "garante" do sistema e, naturalmente, aparece pouco. Raramente intervém na normalidade do conflito. A política é soberana.

Mas, hoje, com maior facilidade se sabe os nomes dos 11 ministros do Supremo do que a escalação da seleção de futebol. O país perdeu referências: a situação é grave na política, na Justiça - e até no futebol. A política esqueceu sua razão, a promessa que a justifica: a busca do bem-estar. Da felicidade, como apontou Aristóteles.

Por paradoxal que pareça, a descrença na política nasceu dos próprios políticos. A lógica do "dá cá toma lá" substituiu programas, projetos, o diálogo e a negociação. Numa palavra: a política. Algo convenceu os governantes de que é assim, sempre foi assim e que, portanto, será sempre essa a forma com que se governa. O jogo fisiológico não apenas corrompe, vicia. Faz crer que não há alternativa. E assim o presidencialismo de coalizão fixou-se no balcão.

Claro, para que as engrenagens rodem com menor atrito alguma graxa será, eventualmente, necessária. O segredo está menos no princípio que na quantidade: o excesso paralisa o processo, empapuça e emperra definitivamente a máquina. Eduardo Cunha foi o operador que melhor compreendeu o sistema: tratou de conciliar interesses localizados na esfera do Estado: empresas, parlamentares - governos, eventualmente. Esqueceu, porém, que havia a sociedade. Não se preocupou com excessos.

Porém, para além do protagonismo apenas recente, é injusto dar-lhe exclusividade. Cunha foi - passado? -- apenas o primus inter pares. Mais nocivos foram os sucessivos governos renderem-se à lógica do preceito franciscano "é dando que se recebe". Assim fizeram por um mix razões: malandragem, putrefação, tolice e preguiça. O fato é que a lógica foi assimilada com indisfarçável naturalidade: seria mais barato comprar do que negociar com o Parlamento.

Os efeitos de longo prazo disso tudo são, hoje, mais que sabidos. Chegou-se ao paroxismo: enquanto os recursos, naturalmente, têm fim, a voracidade é infinitamente elástica. Quando tudo já foi dado, nada há a receber. Cobiça e luxúria são, com efeito, sentimentos tirânicos (Paulo Prado, Retrato do Brasil, 1927). O vício faz olhar para um inferno em que o diabo sorri. Foi mais ou menos isso.

As tais pedaladas estão longe de ser o maior dos erros de Dilma Rousseff - e Dilma também não é o maior erro de Lula. O erro de ambos foi não perceber que, em velocidade de cruzeiro, em breve o processo colapsaria; o mico poderia acabar em suas mãos. E, até que a desgraça de Eduardo Cunha, nesta semana, se consumasse pelas mãos de Teori Zavascki, Michel Temer e seus operadores caminhavam pela mesma trilha: mais do mesmo. Limitando-se, no máximo, a um "reloading" do sistema, davam à luz um processo de dias contados, gestando um mico novo que, em breve, ficaria em suas mãos.

Faz sentido. Originário do mesmo sistema, também Michel Temer parece cultivar a crença de que "é assim e sempre assim será", mesmo no fundo do poço. Nas últimas semanas, o que se leu foram notícias de uma simples recarga à lógica que é essencialmente a mesma de sempre. Com efeito, a composição do Congresso é muito ruim. Não fosse a mão pesada de Teori, é possível que até mesmo o operador fosse invariável: Eduardo Cunha.

Às vezes apenas a realidade dura e crua é o que pode salvar: sem Cunha, o sistema colapsado ou se regenera ou derrete de vez. Logicamente, o outro vice predestinado - Waldir Maranhão (PP-MA) - não é apto a dar prosseguimento à obra do chefe. A coordenação do processo requer arte, embora a voracidade possa ser a mesma. Por outro lado, insistir num substituto à altura do anjo ora caído - um Cunha genérico -, será, possivelmente, outro erro: enche os pulmões de ar contaminado. Para não cair, a ponte para o futuro que Michel Temer planeja carecerá de outro tipo de argamassa.

Carlos Melo, cientista politico. Professor do Insper

Publicado no Caderno "Aliás,", de domingo 08.05.2016

Que dizer da situação em que a presidente da República perde o mandato, o da Câmara é afastado pelo Supremo (STF) e o do Senado é processado no mesmo Tribunal? Em que o vice - e provável futuro presidente - não tem a simpatia da crítica e nem a confiança do público, e onde os partidos desintegram-se e o Congresso é protagonista de momentos deprimentes? Dizer apenas que o sistema entrou em colapso e que é hora de refazer tudo.

Os sinais da configuração do colapso não são de hoje: há quase 10 anos José Dirceu morreu abraçado a Roberto Jefferson, assim como Dilma e Cunha podem ter dado um abraço de afogados. Numa vertiginosa queda, a autoestima do País chegou ao rés do chão, mas a conciliação desses fatores não foi praga, sorte, azar, coincidência, destino. Foi um processo estrutural repleto de vícios, erros e omissões da maior parte dos atores políticos, dos poderes e da sociedade, inclusive.

Coalizões políticas para o bem governar existem, é claro, em todo o mundo. Desde que se inventou a divisão de poderes, Executivo e Legislativo negociam, e é bom que negociem - dividir o poder é mais saudável que concentrá-lo. Também o Judiciário existe como guardião de leis, regras, da Constituição. Numa sociedade saudável, a Suprema Corte é o "garante" do sistema e, naturalmente, aparece pouco. Raramente intervém na normalidade do conflito. A política é soberana.

Mas, hoje, com maior facilidade se sabe os nomes dos 11 ministros do Supremo do que a escalação da seleção de futebol. O país perdeu referências: a situação é grave na política, na Justiça - e até no futebol. A política esqueceu sua razão, a promessa que a justifica: a busca do bem-estar. Da felicidade, como apontou Aristóteles.

Por paradoxal que pareça, a descrença na política nasceu dos próprios políticos. A lógica do "dá cá toma lá" substituiu programas, projetos, o diálogo e a negociação. Numa palavra: a política. Algo convenceu os governantes de que é assim, sempre foi assim e que, portanto, será sempre essa a forma com que se governa. O jogo fisiológico não apenas corrompe, vicia. Faz crer que não há alternativa. E assim o presidencialismo de coalizão fixou-se no balcão.

Claro, para que as engrenagens rodem com menor atrito alguma graxa será, eventualmente, necessária. O segredo está menos no princípio que na quantidade: o excesso paralisa o processo, empapuça e emperra definitivamente a máquina. Eduardo Cunha foi o operador que melhor compreendeu o sistema: tratou de conciliar interesses localizados na esfera do Estado: empresas, parlamentares - governos, eventualmente. Esqueceu, porém, que havia a sociedade. Não se preocupou com excessos.

Porém, para além do protagonismo apenas recente, é injusto dar-lhe exclusividade. Cunha foi - passado? -- apenas o primus inter pares. Mais nocivos foram os sucessivos governos renderem-se à lógica do preceito franciscano "é dando que se recebe". Assim fizeram por um mix razões: malandragem, putrefação, tolice e preguiça. O fato é que a lógica foi assimilada com indisfarçável naturalidade: seria mais barato comprar do que negociar com o Parlamento.

Os efeitos de longo prazo disso tudo são, hoje, mais que sabidos. Chegou-se ao paroxismo: enquanto os recursos, naturalmente, têm fim, a voracidade é infinitamente elástica. Quando tudo já foi dado, nada há a receber. Cobiça e luxúria são, com efeito, sentimentos tirânicos (Paulo Prado, Retrato do Brasil, 1927). O vício faz olhar para um inferno em que o diabo sorri. Foi mais ou menos isso.

As tais pedaladas estão longe de ser o maior dos erros de Dilma Rousseff - e Dilma também não é o maior erro de Lula. O erro de ambos foi não perceber que, em velocidade de cruzeiro, em breve o processo colapsaria; o mico poderia acabar em suas mãos. E, até que a desgraça de Eduardo Cunha, nesta semana, se consumasse pelas mãos de Teori Zavascki, Michel Temer e seus operadores caminhavam pela mesma trilha: mais do mesmo. Limitando-se, no máximo, a um "reloading" do sistema, davam à luz um processo de dias contados, gestando um mico novo que, em breve, ficaria em suas mãos.

Faz sentido. Originário do mesmo sistema, também Michel Temer parece cultivar a crença de que "é assim e sempre assim será", mesmo no fundo do poço. Nas últimas semanas, o que se leu foram notícias de uma simples recarga à lógica que é essencialmente a mesma de sempre. Com efeito, a composição do Congresso é muito ruim. Não fosse a mão pesada de Teori, é possível que até mesmo o operador fosse invariável: Eduardo Cunha.

Às vezes apenas a realidade dura e crua é o que pode salvar: sem Cunha, o sistema colapsado ou se regenera ou derrete de vez. Logicamente, o outro vice predestinado - Waldir Maranhão (PP-MA) - não é apto a dar prosseguimento à obra do chefe. A coordenação do processo requer arte, embora a voracidade possa ser a mesma. Por outro lado, insistir num substituto à altura do anjo ora caído - um Cunha genérico -, será, possivelmente, outro erro: enche os pulmões de ar contaminado. Para não cair, a ponte para o futuro que Michel Temer planeja carecerá de outro tipo de argamassa.

Carlos Melo, cientista politico. Professor do Insper

Publicado no Caderno "Aliás,", de domingo 08.05.2016

Que dizer da situação em que a presidente da República perde o mandato, o da Câmara é afastado pelo Supremo (STF) e o do Senado é processado no mesmo Tribunal? Em que o vice - e provável futuro presidente - não tem a simpatia da crítica e nem a confiança do público, e onde os partidos desintegram-se e o Congresso é protagonista de momentos deprimentes? Dizer apenas que o sistema entrou em colapso e que é hora de refazer tudo.

Os sinais da configuração do colapso não são de hoje: há quase 10 anos José Dirceu morreu abraçado a Roberto Jefferson, assim como Dilma e Cunha podem ter dado um abraço de afogados. Numa vertiginosa queda, a autoestima do País chegou ao rés do chão, mas a conciliação desses fatores não foi praga, sorte, azar, coincidência, destino. Foi um processo estrutural repleto de vícios, erros e omissões da maior parte dos atores políticos, dos poderes e da sociedade, inclusive.

Coalizões políticas para o bem governar existem, é claro, em todo o mundo. Desde que se inventou a divisão de poderes, Executivo e Legislativo negociam, e é bom que negociem - dividir o poder é mais saudável que concentrá-lo. Também o Judiciário existe como guardião de leis, regras, da Constituição. Numa sociedade saudável, a Suprema Corte é o "garante" do sistema e, naturalmente, aparece pouco. Raramente intervém na normalidade do conflito. A política é soberana.

Mas, hoje, com maior facilidade se sabe os nomes dos 11 ministros do Supremo do que a escalação da seleção de futebol. O país perdeu referências: a situação é grave na política, na Justiça - e até no futebol. A política esqueceu sua razão, a promessa que a justifica: a busca do bem-estar. Da felicidade, como apontou Aristóteles.

Por paradoxal que pareça, a descrença na política nasceu dos próprios políticos. A lógica do "dá cá toma lá" substituiu programas, projetos, o diálogo e a negociação. Numa palavra: a política. Algo convenceu os governantes de que é assim, sempre foi assim e que, portanto, será sempre essa a forma com que se governa. O jogo fisiológico não apenas corrompe, vicia. Faz crer que não há alternativa. E assim o presidencialismo de coalizão fixou-se no balcão.

Claro, para que as engrenagens rodem com menor atrito alguma graxa será, eventualmente, necessária. O segredo está menos no princípio que na quantidade: o excesso paralisa o processo, empapuça e emperra definitivamente a máquina. Eduardo Cunha foi o operador que melhor compreendeu o sistema: tratou de conciliar interesses localizados na esfera do Estado: empresas, parlamentares - governos, eventualmente. Esqueceu, porém, que havia a sociedade. Não se preocupou com excessos.

Porém, para além do protagonismo apenas recente, é injusto dar-lhe exclusividade. Cunha foi - passado? -- apenas o primus inter pares. Mais nocivos foram os sucessivos governos renderem-se à lógica do preceito franciscano "é dando que se recebe". Assim fizeram por um mix razões: malandragem, putrefação, tolice e preguiça. O fato é que a lógica foi assimilada com indisfarçável naturalidade: seria mais barato comprar do que negociar com o Parlamento.

Os efeitos de longo prazo disso tudo são, hoje, mais que sabidos. Chegou-se ao paroxismo: enquanto os recursos, naturalmente, têm fim, a voracidade é infinitamente elástica. Quando tudo já foi dado, nada há a receber. Cobiça e luxúria são, com efeito, sentimentos tirânicos (Paulo Prado, Retrato do Brasil, 1927). O vício faz olhar para um inferno em que o diabo sorri. Foi mais ou menos isso.

As tais pedaladas estão longe de ser o maior dos erros de Dilma Rousseff - e Dilma também não é o maior erro de Lula. O erro de ambos foi não perceber que, em velocidade de cruzeiro, em breve o processo colapsaria; o mico poderia acabar em suas mãos. E, até que a desgraça de Eduardo Cunha, nesta semana, se consumasse pelas mãos de Teori Zavascki, Michel Temer e seus operadores caminhavam pela mesma trilha: mais do mesmo. Limitando-se, no máximo, a um "reloading" do sistema, davam à luz um processo de dias contados, gestando um mico novo que, em breve, ficaria em suas mãos.

Faz sentido. Originário do mesmo sistema, também Michel Temer parece cultivar a crença de que "é assim e sempre assim será", mesmo no fundo do poço. Nas últimas semanas, o que se leu foram notícias de uma simples recarga à lógica que é essencialmente a mesma de sempre. Com efeito, a composição do Congresso é muito ruim. Não fosse a mão pesada de Teori, é possível que até mesmo o operador fosse invariável: Eduardo Cunha.

Às vezes apenas a realidade dura e crua é o que pode salvar: sem Cunha, o sistema colapsado ou se regenera ou derrete de vez. Logicamente, o outro vice predestinado - Waldir Maranhão (PP-MA) - não é apto a dar prosseguimento à obra do chefe. A coordenação do processo requer arte, embora a voracidade possa ser a mesma. Por outro lado, insistir num substituto à altura do anjo ora caído - um Cunha genérico -, será, possivelmente, outro erro: enche os pulmões de ar contaminado. Para não cair, a ponte para o futuro que Michel Temer planeja carecerá de outro tipo de argamassa.

Carlos Melo, cientista politico. Professor do Insper

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