A política sem segredos

Opinião|Militares fizeram ‘glossário’ para entender o sindicalista Lula, que agora não quer remoer 64


Quando disputou a Presidência pela primeira vez em 1989, Serviço de Inteligência da Aeronáutica elaborou um Lula de A a Z com as ideias do petista. Documento registra que o então candidato dizia que não pediria licença para as Forças Armadas para governar

Por Francisco Leali

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conta os dias para o 31 de março chegar e passar logo. Na data deveriam ser lembrados os 60 anos do golpe militar, mas o petista busca reconciliação com os quartéis. Como o tema ainda é melindroso para parte da tropa, o presidente achou que seria uma boa ideia trocar o não dito de um lado pelo não dito do outro. Ficou combinado que as Forças Armadas, pelo menos oficialmente, nada falarão, e o governo, especialmente a Pasta dos Direitos Humanos, idem.

A data marca o início da ditadura que fechou o Congresso, calou a imprensa, cassou e caçou opositores, promoveu a tortura como método e mandou a democracia às favas. Também foi o regime que pôs o próprio Lula, então um sindicalista, na prisão.

O presidente Lula durante a campanha de 1989 quando disputou o cargo pela primeira vez e perdeu para Fernando Collor Foto: Monica Zarattini/Estadão
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Mas o hoje presidente parece preferir o silêncio. Como se não falar do assunto que ouriça a direita e indigna a esquerda resolvesse a questão. E ficamos todos acertados que não falar do passado, não lembrar do ocorrido será suficiente para pacificar as almas.

Ainda que o presidente não queira falar do passado, a memória está aí para nos lembrar do caminho que nos trouxe até aqui. Dos erros e acertos que cometemos. Das atrocidades que não podem ser festejadas, nem esquecidas.

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Quando disputou a Presidência pela primeira vez, o petista oscilava entre mordidas e acenos às Forças Armadas. Nos idos de 1989, a ditadura já tinha terminado e o presidente era José Sarney. Ainda assim, o serviço de inteligência militar considerou importante produzir um “glossário” para ajudar a caserna a entender quem era Lula.

No documento de 77 páginas da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica, há um Lula de A a Z, com destaque para o que o petista falava deles, os militares. Mas também sobre um monte de outras coisas: de Palestina a Nicarágua; de capitalismo a privatização de bancos; de drogas a homossexualidade.

Capa de glossário feito pelo serviço de inteligência da Aeronáutica em 1989 sobre ideias de Lula Foto: Reprodução / Arquivo Nacional
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Os autores do relatório explicam que, com o crescimento da popularidade de Lula e sendo ele um dos favoritos na disputa presidencial, “torna-se conveniente para os militares, genericamente, o conhecimento do ideário do líder maior do PT, acerca das Instituições castrenses, sua aplicação, destinação constitucional, organização, etc”. E acrescentam: “Julgamos de igual modo oportuno, neste trabalho, traçar uma abordagem mais ampla sobre o pensamento de “LULA” em outros campos (político, econômico e social), com o único objetivo de complementar o perfil desse político que, em uma década, ascendeu do anonimato à disputa, com chances efetivas, da suprema magistratura do país”.

A origem do petista é assim resumida no texto:

“O PARTIDO DOS TRABALHADORES, na verdade, uma ‘frente’ de tendências políticas – onde convivem, nem sempre harmonicamente, trotskystas, comunistas, socialistas, ativistas vinculados ao dito ‘clero progressista’, ‘terroristas’(...), etc - foi o berço que abrigou e, que, em uma década, lapidou o comportamento político de Lula. O líder sindical, carismático, adquiriu no PT, personalidade política e, liderando um aguerrido e ruidoso partido, alçou voos mais ousados, passando a influenciar, por seu comportamento peculiar e opiniões sem circunlóquios, considerável parcela da sociedade”.

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O relatório traz uma coletânea de frases públicas do petista reunidas pela arapongagem. O documento é memória. Registro do seu tempo. Tanto pela forma inusitada – um relatório de inteligência militar sobre candidato presidencial – como pelo conteúdo, com frases e declarações que vinham do contexto pós-ditadura. As declarações carregam visões de mundo que o petista ou deixou no passado ou carrega até hoje.

Trecho relatório da Aeronáutica com glossário sobre pensamento de Lula Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Logo na introdução, há aviso de não foram incluídos comentários ao lado das frases do petista por considerar que elas eram “auto-esclarecedoras”. O documento segue listando pérolas do sindicalista sobre os militares. Numa delas, em palestra nos Estados Unidos em 1989, o então candidato do PT previu que, considerando a formação na caserna, o primeiro general “democratizado” iria receber sua patente somente em 2026.

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Mas o Lula do século XXI é outra persona. Em seu terceiro mandato como presidente, tenta fabricar a conciliação entre seu governo e militares ditando um “calem-se”. Não foi assim em 2003, primeiro mandato do Lula. Naquele ano, o Exército fez publicar o livro “1964 – 31 de Março: o movimento revolucionário e sua história”. A publicação reproduz uma série de entrevistas de oficiais-generais revisitando a dita Revolução redentora. Já na introdução, o livro reclama da imprensa, diz que há em curso um movimento revanchista que falseia o passado e ironiza da indenização de perseguidos políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Um dos entrevistados é o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney, que declara: “Insistem em dizer que somos torturadores, matadores etc. Esqueceram-se de que nós salvamos o Brasil”. Lula é citado no prefácio como o candidato em 2002 que prometia ampliar as indenizações e rever a lei da Anistia para punir torturares.

Trecho da Ordem do Dia publicada no Informe do Exército em 2006 Foto: Reprodução / Estadão
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Nos anos que se seguiram no primeiro mandato de Lula, o Exército continuou lembrando do 31 de março com publicação da Ordem do Dia no Informex, informativo do Exército. Os textos eram milimetricamente calculados. Em 2006, por exemplo, a referência à data citava que o movimento tivera apoio da população.

Neste 2024, ao completar seis décadas da entronização de generais no cargo de presidente da República, Lula, ao que se sabe, teria recebido a promessa do ministro da Defesa, José Múcio, de que as Forças Armadas não se vangloriariam na data comemorativa. O jornalista Evandro Éboli, do Correio Braziliense, revelou que, do outro lado da Esplanada, a Pasta de Direitos Humanos foi avisada pelo Planalto para também não remoer o passado.

A receita soa dissonante num País que assistiu há pouco mais de um ano uma turba invadir a Praça dos Três Poderes clamando por intervenção militar para tirar o presidente eleito do posto. E a multidão raivosa não estava só. Há uma lista de oficiais generais sob investigação por planejar tentativa de golpe.

O glossário de Lula

Abaixo vão alguns trechos do glossário lulista com as indicações das fontes apontadas pelos arapongas no documento. A íntegra da brochura está no acervo do Arquivo Nacional, como esperado em tempos de democracia, mas também pode ser lida no final desta coluna:

Forças Armadas

“Eu não acredito que todo militar seja corrupto, que todo militar seja ditador, que todo general seja um torturador. Eu acredito que existe gente extraordinária em todos esses lugares, que não está comprometida com o capital multinacional. E essas pessoas estão dispostas a lutar para que o Brasil não seja entregue aos estrangeiros” (jornal O Povão, de Recife, 1980).

“Acredito que o Partidos dos Trabalhadores precisa aproveitar as eleições para tentar colocar as Forças Armadas no seu devido lugar. E o papel das Forças Armadas não é, efetivamente, a de achar que uma pessoa deve ou não levar (a vitória nas eleições) (...) O papel das Forças Armadas não é decidir quem pode tomar posse” (jornal O Trabalho, 1982).

Se formos morrer de medo dos militares, então ficaremos o resto da vida de braços cruzados” (jornal Correio Braziliense, 1984)

“O PT não vai pedir licença às Forças Armadas para governar o Brasil, porque a população tem que se conscientizar de que já se foi o tempo em que os militares decidiam tudo neste País” (Jornal do Brasil, 1989)

Drogas

“(...) um reacionário, para mim, tem o mesmo problema de personalidade, o mesmo vício de caráter de um cara que toma drogas” (revista Status, 1986)

Estatização

“Vou estatizar os bancos, o transporte, a educação, o aço, o petróleo e a energia. Como presidente, serei também, o chefe supremo das Forças Armadas e nessa condição vou democratizar o Exército” (Roda Viva, 1988)

Homossexualidade

“(...) o cara a que chamam de homossexual, no nosso meio a gente chama de veado, mesmo. Eu sou contra isso, e não sei se é uma questão psicológica ou o tipo de berço que a pessoa teve (...) e embora eu não concorde com isso, acho que têm o direito de existir, mesmo porque na minha opinião a culpa é da sociedade e não delas” (revista Homem, 1981)

Palestinos

Em primeiro lugar, eu gostaria de lembrar aos companheiros que devemos ser solidários com o povo palestino, que luta pela liberdade. (...) Nós não somo contra o povo judeu, mas contra o governo de Israel e o imperialismo, que são os responsáveis pela matança do povo palestino” (jornal O Trabalho, 1982)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conta os dias para o 31 de março chegar e passar logo. Na data deveriam ser lembrados os 60 anos do golpe militar, mas o petista busca reconciliação com os quartéis. Como o tema ainda é melindroso para parte da tropa, o presidente achou que seria uma boa ideia trocar o não dito de um lado pelo não dito do outro. Ficou combinado que as Forças Armadas, pelo menos oficialmente, nada falarão, e o governo, especialmente a Pasta dos Direitos Humanos, idem.

A data marca o início da ditadura que fechou o Congresso, calou a imprensa, cassou e caçou opositores, promoveu a tortura como método e mandou a democracia às favas. Também foi o regime que pôs o próprio Lula, então um sindicalista, na prisão.

O presidente Lula durante a campanha de 1989 quando disputou o cargo pela primeira vez e perdeu para Fernando Collor Foto: Monica Zarattini/Estadão

Mas o hoje presidente parece preferir o silêncio. Como se não falar do assunto que ouriça a direita e indigna a esquerda resolvesse a questão. E ficamos todos acertados que não falar do passado, não lembrar do ocorrido será suficiente para pacificar as almas.

Ainda que o presidente não queira falar do passado, a memória está aí para nos lembrar do caminho que nos trouxe até aqui. Dos erros e acertos que cometemos. Das atrocidades que não podem ser festejadas, nem esquecidas.

Quando disputou a Presidência pela primeira vez, o petista oscilava entre mordidas e acenos às Forças Armadas. Nos idos de 1989, a ditadura já tinha terminado e o presidente era José Sarney. Ainda assim, o serviço de inteligência militar considerou importante produzir um “glossário” para ajudar a caserna a entender quem era Lula.

No documento de 77 páginas da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica, há um Lula de A a Z, com destaque para o que o petista falava deles, os militares. Mas também sobre um monte de outras coisas: de Palestina a Nicarágua; de capitalismo a privatização de bancos; de drogas a homossexualidade.

Capa de glossário feito pelo serviço de inteligência da Aeronáutica em 1989 sobre ideias de Lula Foto: Reprodução / Arquivo Nacional

Os autores do relatório explicam que, com o crescimento da popularidade de Lula e sendo ele um dos favoritos na disputa presidencial, “torna-se conveniente para os militares, genericamente, o conhecimento do ideário do líder maior do PT, acerca das Instituições castrenses, sua aplicação, destinação constitucional, organização, etc”. E acrescentam: “Julgamos de igual modo oportuno, neste trabalho, traçar uma abordagem mais ampla sobre o pensamento de “LULA” em outros campos (político, econômico e social), com o único objetivo de complementar o perfil desse político que, em uma década, ascendeu do anonimato à disputa, com chances efetivas, da suprema magistratura do país”.

A origem do petista é assim resumida no texto:

“O PARTIDO DOS TRABALHADORES, na verdade, uma ‘frente’ de tendências políticas – onde convivem, nem sempre harmonicamente, trotskystas, comunistas, socialistas, ativistas vinculados ao dito ‘clero progressista’, ‘terroristas’(...), etc - foi o berço que abrigou e, que, em uma década, lapidou o comportamento político de Lula. O líder sindical, carismático, adquiriu no PT, personalidade política e, liderando um aguerrido e ruidoso partido, alçou voos mais ousados, passando a influenciar, por seu comportamento peculiar e opiniões sem circunlóquios, considerável parcela da sociedade”.

O relatório traz uma coletânea de frases públicas do petista reunidas pela arapongagem. O documento é memória. Registro do seu tempo. Tanto pela forma inusitada – um relatório de inteligência militar sobre candidato presidencial – como pelo conteúdo, com frases e declarações que vinham do contexto pós-ditadura. As declarações carregam visões de mundo que o petista ou deixou no passado ou carrega até hoje.

Trecho relatório da Aeronáutica com glossário sobre pensamento de Lula Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Logo na introdução, há aviso de não foram incluídos comentários ao lado das frases do petista por considerar que elas eram “auto-esclarecedoras”. O documento segue listando pérolas do sindicalista sobre os militares. Numa delas, em palestra nos Estados Unidos em 1989, o então candidato do PT previu que, considerando a formação na caserna, o primeiro general “democratizado” iria receber sua patente somente em 2026.

Mas o Lula do século XXI é outra persona. Em seu terceiro mandato como presidente, tenta fabricar a conciliação entre seu governo e militares ditando um “calem-se”. Não foi assim em 2003, primeiro mandato do Lula. Naquele ano, o Exército fez publicar o livro “1964 – 31 de Março: o movimento revolucionário e sua história”. A publicação reproduz uma série de entrevistas de oficiais-generais revisitando a dita Revolução redentora. Já na introdução, o livro reclama da imprensa, diz que há em curso um movimento revanchista que falseia o passado e ironiza da indenização de perseguidos políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Um dos entrevistados é o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney, que declara: “Insistem em dizer que somos torturadores, matadores etc. Esqueceram-se de que nós salvamos o Brasil”. Lula é citado no prefácio como o candidato em 2002 que prometia ampliar as indenizações e rever a lei da Anistia para punir torturares.

Trecho da Ordem do Dia publicada no Informe do Exército em 2006 Foto: Reprodução / Estadão

Nos anos que se seguiram no primeiro mandato de Lula, o Exército continuou lembrando do 31 de março com publicação da Ordem do Dia no Informex, informativo do Exército. Os textos eram milimetricamente calculados. Em 2006, por exemplo, a referência à data citava que o movimento tivera apoio da população.

Neste 2024, ao completar seis décadas da entronização de generais no cargo de presidente da República, Lula, ao que se sabe, teria recebido a promessa do ministro da Defesa, José Múcio, de que as Forças Armadas não se vangloriariam na data comemorativa. O jornalista Evandro Éboli, do Correio Braziliense, revelou que, do outro lado da Esplanada, a Pasta de Direitos Humanos foi avisada pelo Planalto para também não remoer o passado.

A receita soa dissonante num País que assistiu há pouco mais de um ano uma turba invadir a Praça dos Três Poderes clamando por intervenção militar para tirar o presidente eleito do posto. E a multidão raivosa não estava só. Há uma lista de oficiais generais sob investigação por planejar tentativa de golpe.

O glossário de Lula

Abaixo vão alguns trechos do glossário lulista com as indicações das fontes apontadas pelos arapongas no documento. A íntegra da brochura está no acervo do Arquivo Nacional, como esperado em tempos de democracia, mas também pode ser lida no final desta coluna:

Forças Armadas

“Eu não acredito que todo militar seja corrupto, que todo militar seja ditador, que todo general seja um torturador. Eu acredito que existe gente extraordinária em todos esses lugares, que não está comprometida com o capital multinacional. E essas pessoas estão dispostas a lutar para que o Brasil não seja entregue aos estrangeiros” (jornal O Povão, de Recife, 1980).

“Acredito que o Partidos dos Trabalhadores precisa aproveitar as eleições para tentar colocar as Forças Armadas no seu devido lugar. E o papel das Forças Armadas não é, efetivamente, a de achar que uma pessoa deve ou não levar (a vitória nas eleições) (...) O papel das Forças Armadas não é decidir quem pode tomar posse” (jornal O Trabalho, 1982).

Se formos morrer de medo dos militares, então ficaremos o resto da vida de braços cruzados” (jornal Correio Braziliense, 1984)

“O PT não vai pedir licença às Forças Armadas para governar o Brasil, porque a população tem que se conscientizar de que já se foi o tempo em que os militares decidiam tudo neste País” (Jornal do Brasil, 1989)

Drogas

“(...) um reacionário, para mim, tem o mesmo problema de personalidade, o mesmo vício de caráter de um cara que toma drogas” (revista Status, 1986)

Estatização

“Vou estatizar os bancos, o transporte, a educação, o aço, o petróleo e a energia. Como presidente, serei também, o chefe supremo das Forças Armadas e nessa condição vou democratizar o Exército” (Roda Viva, 1988)

Homossexualidade

“(...) o cara a que chamam de homossexual, no nosso meio a gente chama de veado, mesmo. Eu sou contra isso, e não sei se é uma questão psicológica ou o tipo de berço que a pessoa teve (...) e embora eu não concorde com isso, acho que têm o direito de existir, mesmo porque na minha opinião a culpa é da sociedade e não delas” (revista Homem, 1981)

Palestinos

Em primeiro lugar, eu gostaria de lembrar aos companheiros que devemos ser solidários com o povo palestino, que luta pela liberdade. (...) Nós não somo contra o povo judeu, mas contra o governo de Israel e o imperialismo, que são os responsáveis pela matança do povo palestino” (jornal O Trabalho, 1982)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conta os dias para o 31 de março chegar e passar logo. Na data deveriam ser lembrados os 60 anos do golpe militar, mas o petista busca reconciliação com os quartéis. Como o tema ainda é melindroso para parte da tropa, o presidente achou que seria uma boa ideia trocar o não dito de um lado pelo não dito do outro. Ficou combinado que as Forças Armadas, pelo menos oficialmente, nada falarão, e o governo, especialmente a Pasta dos Direitos Humanos, idem.

A data marca o início da ditadura que fechou o Congresso, calou a imprensa, cassou e caçou opositores, promoveu a tortura como método e mandou a democracia às favas. Também foi o regime que pôs o próprio Lula, então um sindicalista, na prisão.

O presidente Lula durante a campanha de 1989 quando disputou o cargo pela primeira vez e perdeu para Fernando Collor Foto: Monica Zarattini/Estadão

Mas o hoje presidente parece preferir o silêncio. Como se não falar do assunto que ouriça a direita e indigna a esquerda resolvesse a questão. E ficamos todos acertados que não falar do passado, não lembrar do ocorrido será suficiente para pacificar as almas.

Ainda que o presidente não queira falar do passado, a memória está aí para nos lembrar do caminho que nos trouxe até aqui. Dos erros e acertos que cometemos. Das atrocidades que não podem ser festejadas, nem esquecidas.

Quando disputou a Presidência pela primeira vez, o petista oscilava entre mordidas e acenos às Forças Armadas. Nos idos de 1989, a ditadura já tinha terminado e o presidente era José Sarney. Ainda assim, o serviço de inteligência militar considerou importante produzir um “glossário” para ajudar a caserna a entender quem era Lula.

No documento de 77 páginas da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica, há um Lula de A a Z, com destaque para o que o petista falava deles, os militares. Mas também sobre um monte de outras coisas: de Palestina a Nicarágua; de capitalismo a privatização de bancos; de drogas a homossexualidade.

Capa de glossário feito pelo serviço de inteligência da Aeronáutica em 1989 sobre ideias de Lula Foto: Reprodução / Arquivo Nacional

Os autores do relatório explicam que, com o crescimento da popularidade de Lula e sendo ele um dos favoritos na disputa presidencial, “torna-se conveniente para os militares, genericamente, o conhecimento do ideário do líder maior do PT, acerca das Instituições castrenses, sua aplicação, destinação constitucional, organização, etc”. E acrescentam: “Julgamos de igual modo oportuno, neste trabalho, traçar uma abordagem mais ampla sobre o pensamento de “LULA” em outros campos (político, econômico e social), com o único objetivo de complementar o perfil desse político que, em uma década, ascendeu do anonimato à disputa, com chances efetivas, da suprema magistratura do país”.

A origem do petista é assim resumida no texto:

“O PARTIDO DOS TRABALHADORES, na verdade, uma ‘frente’ de tendências políticas – onde convivem, nem sempre harmonicamente, trotskystas, comunistas, socialistas, ativistas vinculados ao dito ‘clero progressista’, ‘terroristas’(...), etc - foi o berço que abrigou e, que, em uma década, lapidou o comportamento político de Lula. O líder sindical, carismático, adquiriu no PT, personalidade política e, liderando um aguerrido e ruidoso partido, alçou voos mais ousados, passando a influenciar, por seu comportamento peculiar e opiniões sem circunlóquios, considerável parcela da sociedade”.

O relatório traz uma coletânea de frases públicas do petista reunidas pela arapongagem. O documento é memória. Registro do seu tempo. Tanto pela forma inusitada – um relatório de inteligência militar sobre candidato presidencial – como pelo conteúdo, com frases e declarações que vinham do contexto pós-ditadura. As declarações carregam visões de mundo que o petista ou deixou no passado ou carrega até hoje.

Trecho relatório da Aeronáutica com glossário sobre pensamento de Lula Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Logo na introdução, há aviso de não foram incluídos comentários ao lado das frases do petista por considerar que elas eram “auto-esclarecedoras”. O documento segue listando pérolas do sindicalista sobre os militares. Numa delas, em palestra nos Estados Unidos em 1989, o então candidato do PT previu que, considerando a formação na caserna, o primeiro general “democratizado” iria receber sua patente somente em 2026.

Mas o Lula do século XXI é outra persona. Em seu terceiro mandato como presidente, tenta fabricar a conciliação entre seu governo e militares ditando um “calem-se”. Não foi assim em 2003, primeiro mandato do Lula. Naquele ano, o Exército fez publicar o livro “1964 – 31 de Março: o movimento revolucionário e sua história”. A publicação reproduz uma série de entrevistas de oficiais-generais revisitando a dita Revolução redentora. Já na introdução, o livro reclama da imprensa, diz que há em curso um movimento revanchista que falseia o passado e ironiza da indenização de perseguidos políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Um dos entrevistados é o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney, que declara: “Insistem em dizer que somos torturadores, matadores etc. Esqueceram-se de que nós salvamos o Brasil”. Lula é citado no prefácio como o candidato em 2002 que prometia ampliar as indenizações e rever a lei da Anistia para punir torturares.

Trecho da Ordem do Dia publicada no Informe do Exército em 2006 Foto: Reprodução / Estadão

Nos anos que se seguiram no primeiro mandato de Lula, o Exército continuou lembrando do 31 de março com publicação da Ordem do Dia no Informex, informativo do Exército. Os textos eram milimetricamente calculados. Em 2006, por exemplo, a referência à data citava que o movimento tivera apoio da população.

Neste 2024, ao completar seis décadas da entronização de generais no cargo de presidente da República, Lula, ao que se sabe, teria recebido a promessa do ministro da Defesa, José Múcio, de que as Forças Armadas não se vangloriariam na data comemorativa. O jornalista Evandro Éboli, do Correio Braziliense, revelou que, do outro lado da Esplanada, a Pasta de Direitos Humanos foi avisada pelo Planalto para também não remoer o passado.

A receita soa dissonante num País que assistiu há pouco mais de um ano uma turba invadir a Praça dos Três Poderes clamando por intervenção militar para tirar o presidente eleito do posto. E a multidão raivosa não estava só. Há uma lista de oficiais generais sob investigação por planejar tentativa de golpe.

O glossário de Lula

Abaixo vão alguns trechos do glossário lulista com as indicações das fontes apontadas pelos arapongas no documento. A íntegra da brochura está no acervo do Arquivo Nacional, como esperado em tempos de democracia, mas também pode ser lida no final desta coluna:

Forças Armadas

“Eu não acredito que todo militar seja corrupto, que todo militar seja ditador, que todo general seja um torturador. Eu acredito que existe gente extraordinária em todos esses lugares, que não está comprometida com o capital multinacional. E essas pessoas estão dispostas a lutar para que o Brasil não seja entregue aos estrangeiros” (jornal O Povão, de Recife, 1980).

“Acredito que o Partidos dos Trabalhadores precisa aproveitar as eleições para tentar colocar as Forças Armadas no seu devido lugar. E o papel das Forças Armadas não é, efetivamente, a de achar que uma pessoa deve ou não levar (a vitória nas eleições) (...) O papel das Forças Armadas não é decidir quem pode tomar posse” (jornal O Trabalho, 1982).

Se formos morrer de medo dos militares, então ficaremos o resto da vida de braços cruzados” (jornal Correio Braziliense, 1984)

“O PT não vai pedir licença às Forças Armadas para governar o Brasil, porque a população tem que se conscientizar de que já se foi o tempo em que os militares decidiam tudo neste País” (Jornal do Brasil, 1989)

Drogas

“(...) um reacionário, para mim, tem o mesmo problema de personalidade, o mesmo vício de caráter de um cara que toma drogas” (revista Status, 1986)

Estatização

“Vou estatizar os bancos, o transporte, a educação, o aço, o petróleo e a energia. Como presidente, serei também, o chefe supremo das Forças Armadas e nessa condição vou democratizar o Exército” (Roda Viva, 1988)

Homossexualidade

“(...) o cara a que chamam de homossexual, no nosso meio a gente chama de veado, mesmo. Eu sou contra isso, e não sei se é uma questão psicológica ou o tipo de berço que a pessoa teve (...) e embora eu não concorde com isso, acho que têm o direito de existir, mesmo porque na minha opinião a culpa é da sociedade e não delas” (revista Homem, 1981)

Palestinos

Em primeiro lugar, eu gostaria de lembrar aos companheiros que devemos ser solidários com o povo palestino, que luta pela liberdade. (...) Nós não somo contra o povo judeu, mas contra o governo de Israel e o imperialismo, que são os responsáveis pela matança do povo palestino” (jornal O Trabalho, 1982)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conta os dias para o 31 de março chegar e passar logo. Na data deveriam ser lembrados os 60 anos do golpe militar, mas o petista busca reconciliação com os quartéis. Como o tema ainda é melindroso para parte da tropa, o presidente achou que seria uma boa ideia trocar o não dito de um lado pelo não dito do outro. Ficou combinado que as Forças Armadas, pelo menos oficialmente, nada falarão, e o governo, especialmente a Pasta dos Direitos Humanos, idem.

A data marca o início da ditadura que fechou o Congresso, calou a imprensa, cassou e caçou opositores, promoveu a tortura como método e mandou a democracia às favas. Também foi o regime que pôs o próprio Lula, então um sindicalista, na prisão.

O presidente Lula durante a campanha de 1989 quando disputou o cargo pela primeira vez e perdeu para Fernando Collor Foto: Monica Zarattini/Estadão

Mas o hoje presidente parece preferir o silêncio. Como se não falar do assunto que ouriça a direita e indigna a esquerda resolvesse a questão. E ficamos todos acertados que não falar do passado, não lembrar do ocorrido será suficiente para pacificar as almas.

Ainda que o presidente não queira falar do passado, a memória está aí para nos lembrar do caminho que nos trouxe até aqui. Dos erros e acertos que cometemos. Das atrocidades que não podem ser festejadas, nem esquecidas.

Quando disputou a Presidência pela primeira vez, o petista oscilava entre mordidas e acenos às Forças Armadas. Nos idos de 1989, a ditadura já tinha terminado e o presidente era José Sarney. Ainda assim, o serviço de inteligência militar considerou importante produzir um “glossário” para ajudar a caserna a entender quem era Lula.

No documento de 77 páginas da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica, há um Lula de A a Z, com destaque para o que o petista falava deles, os militares. Mas também sobre um monte de outras coisas: de Palestina a Nicarágua; de capitalismo a privatização de bancos; de drogas a homossexualidade.

Capa de glossário feito pelo serviço de inteligência da Aeronáutica em 1989 sobre ideias de Lula Foto: Reprodução / Arquivo Nacional

Os autores do relatório explicam que, com o crescimento da popularidade de Lula e sendo ele um dos favoritos na disputa presidencial, “torna-se conveniente para os militares, genericamente, o conhecimento do ideário do líder maior do PT, acerca das Instituições castrenses, sua aplicação, destinação constitucional, organização, etc”. E acrescentam: “Julgamos de igual modo oportuno, neste trabalho, traçar uma abordagem mais ampla sobre o pensamento de “LULA” em outros campos (político, econômico e social), com o único objetivo de complementar o perfil desse político que, em uma década, ascendeu do anonimato à disputa, com chances efetivas, da suprema magistratura do país”.

A origem do petista é assim resumida no texto:

“O PARTIDO DOS TRABALHADORES, na verdade, uma ‘frente’ de tendências políticas – onde convivem, nem sempre harmonicamente, trotskystas, comunistas, socialistas, ativistas vinculados ao dito ‘clero progressista’, ‘terroristas’(...), etc - foi o berço que abrigou e, que, em uma década, lapidou o comportamento político de Lula. O líder sindical, carismático, adquiriu no PT, personalidade política e, liderando um aguerrido e ruidoso partido, alçou voos mais ousados, passando a influenciar, por seu comportamento peculiar e opiniões sem circunlóquios, considerável parcela da sociedade”.

O relatório traz uma coletânea de frases públicas do petista reunidas pela arapongagem. O documento é memória. Registro do seu tempo. Tanto pela forma inusitada – um relatório de inteligência militar sobre candidato presidencial – como pelo conteúdo, com frases e declarações que vinham do contexto pós-ditadura. As declarações carregam visões de mundo que o petista ou deixou no passado ou carrega até hoje.

Trecho relatório da Aeronáutica com glossário sobre pensamento de Lula Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

Logo na introdução, há aviso de não foram incluídos comentários ao lado das frases do petista por considerar que elas eram “auto-esclarecedoras”. O documento segue listando pérolas do sindicalista sobre os militares. Numa delas, em palestra nos Estados Unidos em 1989, o então candidato do PT previu que, considerando a formação na caserna, o primeiro general “democratizado” iria receber sua patente somente em 2026.

Mas o Lula do século XXI é outra persona. Em seu terceiro mandato como presidente, tenta fabricar a conciliação entre seu governo e militares ditando um “calem-se”. Não foi assim em 2003, primeiro mandato do Lula. Naquele ano, o Exército fez publicar o livro “1964 – 31 de Março: o movimento revolucionário e sua história”. A publicação reproduz uma série de entrevistas de oficiais-generais revisitando a dita Revolução redentora. Já na introdução, o livro reclama da imprensa, diz que há em curso um movimento revanchista que falseia o passado e ironiza da indenização de perseguidos políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Um dos entrevistados é o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney, que declara: “Insistem em dizer que somos torturadores, matadores etc. Esqueceram-se de que nós salvamos o Brasil”. Lula é citado no prefácio como o candidato em 2002 que prometia ampliar as indenizações e rever a lei da Anistia para punir torturares.

Trecho da Ordem do Dia publicada no Informe do Exército em 2006 Foto: Reprodução / Estadão

Nos anos que se seguiram no primeiro mandato de Lula, o Exército continuou lembrando do 31 de março com publicação da Ordem do Dia no Informex, informativo do Exército. Os textos eram milimetricamente calculados. Em 2006, por exemplo, a referência à data citava que o movimento tivera apoio da população.

Neste 2024, ao completar seis décadas da entronização de generais no cargo de presidente da República, Lula, ao que se sabe, teria recebido a promessa do ministro da Defesa, José Múcio, de que as Forças Armadas não se vangloriariam na data comemorativa. O jornalista Evandro Éboli, do Correio Braziliense, revelou que, do outro lado da Esplanada, a Pasta de Direitos Humanos foi avisada pelo Planalto para também não remoer o passado.

A receita soa dissonante num País que assistiu há pouco mais de um ano uma turba invadir a Praça dos Três Poderes clamando por intervenção militar para tirar o presidente eleito do posto. E a multidão raivosa não estava só. Há uma lista de oficiais generais sob investigação por planejar tentativa de golpe.

O glossário de Lula

Abaixo vão alguns trechos do glossário lulista com as indicações das fontes apontadas pelos arapongas no documento. A íntegra da brochura está no acervo do Arquivo Nacional, como esperado em tempos de democracia, mas também pode ser lida no final desta coluna:

Forças Armadas

“Eu não acredito que todo militar seja corrupto, que todo militar seja ditador, que todo general seja um torturador. Eu acredito que existe gente extraordinária em todos esses lugares, que não está comprometida com o capital multinacional. E essas pessoas estão dispostas a lutar para que o Brasil não seja entregue aos estrangeiros” (jornal O Povão, de Recife, 1980).

“Acredito que o Partidos dos Trabalhadores precisa aproveitar as eleições para tentar colocar as Forças Armadas no seu devido lugar. E o papel das Forças Armadas não é, efetivamente, a de achar que uma pessoa deve ou não levar (a vitória nas eleições) (...) O papel das Forças Armadas não é decidir quem pode tomar posse” (jornal O Trabalho, 1982).

Se formos morrer de medo dos militares, então ficaremos o resto da vida de braços cruzados” (jornal Correio Braziliense, 1984)

“O PT não vai pedir licença às Forças Armadas para governar o Brasil, porque a população tem que se conscientizar de que já se foi o tempo em que os militares decidiam tudo neste País” (Jornal do Brasil, 1989)

Drogas

“(...) um reacionário, para mim, tem o mesmo problema de personalidade, o mesmo vício de caráter de um cara que toma drogas” (revista Status, 1986)

Estatização

“Vou estatizar os bancos, o transporte, a educação, o aço, o petróleo e a energia. Como presidente, serei também, o chefe supremo das Forças Armadas e nessa condição vou democratizar o Exército” (Roda Viva, 1988)

Homossexualidade

“(...) o cara a que chamam de homossexual, no nosso meio a gente chama de veado, mesmo. Eu sou contra isso, e não sei se é uma questão psicológica ou o tipo de berço que a pessoa teve (...) e embora eu não concorde com isso, acho que têm o direito de existir, mesmo porque na minha opinião a culpa é da sociedade e não delas” (revista Homem, 1981)

Palestinos

Em primeiro lugar, eu gostaria de lembrar aos companheiros que devemos ser solidários com o povo palestino, que luta pela liberdade. (...) Nós não somo contra o povo judeu, mas contra o governo de Israel e o imperialismo, que são os responsáveis pela matança do povo palestino” (jornal O Trabalho, 1982)

Opinião por Francisco Leali

Coordenador na Sucursal do Estadão em Brasília. Jornalista, Mestre em Comunicação e pesquisador especializado em transparência pública. Escreve às sextas-feiras.

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