Nathalia Bruni, é aluna do 7.º semestre do curso de Administração Pública da FGV EAESP.
Reconhecer a existência de privilégios nos possibilita compreender as diferentes realidades que se manifestam nas formas de enfrentar a Covid-19. Com o cenário instaurado pela pandemia tornou-se latente, dentre outros fatores, a necessidade de reconhecimento de situações que, apesar de num contexto de normalidade não se tratarem de privilégios, tornam privilegiadas a condição de alguns grupos sociais frente a a extrema exclusão de outros. Isto porque, em uma sociedade com tantas assimetrias socioeconômicas - destacadas por vantagens simbólicas e materiais - com a crise humanitária imposta pela pandemia, acentuou-se a distância existente entre determinados grupos sociais na medida em que a Covid-19 não atinge todos da mesma forma e, por isso, escancara a falta de oportunidades e de acesso a serviços básicos por grande parte da população.
Em paralelo, discursos propagados por diferentes grupos sociais, instituições e meios de comunicação, aparentam não apenas acentuar a questão exposta, mas acaba focalizando a problemática num cenário permeado por uma guerra de informações que acaba por lançar ao escanteio debates essenciais e alavancadores na formulação de políticas que busquem amenizar o quadro da escassez de serviços de saúde demandados por grande parcela da população. Falsos debates em torno da necessidade de vacinação, das várias formas de tratamento e da prescrição de remédios, estão nesse contexto.
Cabe destacar que tal polarização se acentua com ações recorrentes - observadas na esfera pública, que naturalizam a censura, negam a ciência e se coloca em confronto com valores que vinham sendo historicamente construídos no país desde a redemocratização e que estavam calcados na diversidade e nos direitos das minorias e das populações vulneráveis.
Não obstante e tomando um caráter mais conceitual, valeria a pena traçar um paralelo com a violação de direitos fundamentais observados nesse cenário pandêmico atual. Isto porque, tendo sido construídos de maneira progressiva e em diferentes gerações - exemplificadas por fatores como o da liberdade, da igualdade e da coletividade, destaca-se que a saúde é um direito de todos e dever do Estado de modo que este último tenha como fim a consolidação de políticas que visem à redução do risco da doença e de outros agravos de modo a promover - bem como pregado pela Constituição, um acesso universal e igualitário de serviços de saúde. Logo, nos permitindo notar uma realidade oposta a esta na medida em que o privilégio se faz presente ao notarmos que poucos tem chance de exercer um direito que, intrinsecamente, é desenhado para todos.
No mais, diferentemente do que é definido pelo filósofo e jurista Ronald Dworkin, direitos fundamentais poderiam ser verdadeiros triunfos contra o poder exercido por determinadas instituições na medida em que serviriam como amenizadores de privilégios observados diariamente. E se fosse para exemplificar, bastaria olhar ao redor e se atentar:
De madrugada, o barulho das caçambas começa. É o lixeiro que veio buscar.
Logo cedo, a fila do ônibus é expressa. São as pessoas que chegam cedo para trabalhar.
No horário do almoço, a muvuca começa. São os garis que precisam limpar.
Repentinamente a troca de buzinas é controversa. É o IFood que veio entregar.
Ali pela tarde o patrão se estressa. Acha que a mulher que ali trabalha só quer descansar para essa mera gripe, não lhe afetar.
De noite então, a Zona Sul é uma festa: fora presidente? Os vizinhos não podem sonhar.
De fato, são tempos de reconhecimento. Reconhecimento de viver uma situação privilegiada em momentos de incertezas.