O que Super Mario tem a nos ensinar


No domingo que passou, levei meus filhos - Miguel, 6, e Samuel, 10 - para um evento na Saraiva Mega Store do Shopping Center Norte. A promessa é que lá estaria o sujeito que dubla o personagem "Super Mario" nos joguinhos da Nintendo, pelos quais meus meninos são doidos. Não dava para negar-lhes a chance de ver de perto o cara que mais se aproxima do herói deles. Mas a coisa toda foi um pesadelo antropológico muito didático.

Havia várias crianças na fila, claro, mas a maioria absoluta era de adolescentes e adultos. Muitos deles estavam com o Nintendo 3DS na mão, exibindo aquela que é a mais avançada bugiganga desta semana (como se sabe, as coisas ficam obsoletas na mesma velocidade com que os meninos superam as fases dos joguinhos). Outros usavam o ridículo chapéu do Mario e cantavam a chatíssima musiquinha do herói, e eles discutiam entre si intermináveis detalhes sobre moedinhas suspensas no ar e cogumelos malvados.

A fila durou seis horas, ao final das quais a "organização" do evento disse que só quem tinha o tal joguinho poderia entrar. Como Miguel e Samuel são dois "sem-joguinho", eles exerceram o jus esperniandi e abriram o berreiro. Depois de muita discussão, os "organizadores" permitiram que os meninos entrassem. Eis que, porém, meus filhos saíram de lá de dentro, uns dois minutos depois, como se não tivesse havido nenhum estresse nem irritação. Pelo contrário: traziam no rosto um sorriso imenso de júbilo, como se o autógrafo da "voz" do Mário, que eles obtiveram, fosse um troféu inigualável. Eu já estava preparado para emplacar um discurso contra a febre dos videogames e seus efeitos funestos sobre o bom senso das pessoas, e blábláblá, mas aquilo me desmontou. Miguel e Samuel estavam genuinamente felizes.

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À noite, mal dormi, pensando no que vi e tentando achar uma explicação para tudo aquilo.

No dia seguinte, tudo fez um baita sentido. Fui assistir na USP a uma aula sobre Hannah Arendt, proferida pelos ótimos professores alemães Julia Schulze Wessel e Rainer Schmidt. Discutimos o esvaziamento da razão sob o totalitarismo, que, entre outras coisas, elimina a capacidade de julgamento, de distinguir o certo do errado. Para Arendt, o nazismo só conseguiu levar esse projeto adiante, numa sociedade sofisticada como a alemã, graças à "coordenação" (Gleichschaltung), isto é, o mecanismo em que pessoas e instituições se alinharam com o objetivo de cumprir os desejos do Führer. Esse sistema, alimentado pela propaganda incessante dos "valores" nazistas, conseguiu a proeza de eliminar a responsabilidade pessoal sobre qualquer ato. A fantasia da retórica de Hitler substituiu o real, e nesse mundo de fanáticos não havia mais necessidade de pensar.

Mutatis mutandis, é possível aplicar essa teoria ao fenômeno que testemunhei no Center Norte. Aquela multidão de adultos fantasiados de encanador italiano parece ter perdido sua capacidade de raciocinar sobre seus atos e, no limite, de viver no mundo real e enfrentar suas contradições. Não é apenas a propaganda que explica esse fenômeno, mas a própria característica do Mario. O jogo "resolve" os impasses da vida por meio da simples supressão da competição - o "desafio" do Mario é apenas somar o maior número possível de pontos e vencer fases. Ou seja: o jogador não tem de derrotar ninguém e, portanto, não se vê confrontado com situações de conflito, que são aquelas que ajudam a consolidar valores. Ter esse tipo de atividade como algo central na vida cotidiana - e me parece que esse é precisamente o caso da maioria dos "Marios" que se espremeram na Saraiva naquelas roupas patéticas - é sintomático de um importante esvaziamento moral.

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Não estou aqui a dizer que os fãs de Mario são equivalentes às gangues nazistas, mesmo porque meus filhos estão entre eles. Mas o excesso que testemunhei naquela aglomeração de adultos fanáticos, que estavam lá só para ouvir a voz de um sujeito de bigodinho, mostra uma inquietante renúncia ao intelecto - que, por sua vez, indica uma inclinação óbvia para a negação da realidade, primeiríssimo passo para a construção ideológica do totalitarismo.

No domingo que passou, levei meus filhos - Miguel, 6, e Samuel, 10 - para um evento na Saraiva Mega Store do Shopping Center Norte. A promessa é que lá estaria o sujeito que dubla o personagem "Super Mario" nos joguinhos da Nintendo, pelos quais meus meninos são doidos. Não dava para negar-lhes a chance de ver de perto o cara que mais se aproxima do herói deles. Mas a coisa toda foi um pesadelo antropológico muito didático.

Havia várias crianças na fila, claro, mas a maioria absoluta era de adolescentes e adultos. Muitos deles estavam com o Nintendo 3DS na mão, exibindo aquela que é a mais avançada bugiganga desta semana (como se sabe, as coisas ficam obsoletas na mesma velocidade com que os meninos superam as fases dos joguinhos). Outros usavam o ridículo chapéu do Mario e cantavam a chatíssima musiquinha do herói, e eles discutiam entre si intermináveis detalhes sobre moedinhas suspensas no ar e cogumelos malvados.

A fila durou seis horas, ao final das quais a "organização" do evento disse que só quem tinha o tal joguinho poderia entrar. Como Miguel e Samuel são dois "sem-joguinho", eles exerceram o jus esperniandi e abriram o berreiro. Depois de muita discussão, os "organizadores" permitiram que os meninos entrassem. Eis que, porém, meus filhos saíram de lá de dentro, uns dois minutos depois, como se não tivesse havido nenhum estresse nem irritação. Pelo contrário: traziam no rosto um sorriso imenso de júbilo, como se o autógrafo da "voz" do Mário, que eles obtiveram, fosse um troféu inigualável. Eu já estava preparado para emplacar um discurso contra a febre dos videogames e seus efeitos funestos sobre o bom senso das pessoas, e blábláblá, mas aquilo me desmontou. Miguel e Samuel estavam genuinamente felizes.

À noite, mal dormi, pensando no que vi e tentando achar uma explicação para tudo aquilo.

No dia seguinte, tudo fez um baita sentido. Fui assistir na USP a uma aula sobre Hannah Arendt, proferida pelos ótimos professores alemães Julia Schulze Wessel e Rainer Schmidt. Discutimos o esvaziamento da razão sob o totalitarismo, que, entre outras coisas, elimina a capacidade de julgamento, de distinguir o certo do errado. Para Arendt, o nazismo só conseguiu levar esse projeto adiante, numa sociedade sofisticada como a alemã, graças à "coordenação" (Gleichschaltung), isto é, o mecanismo em que pessoas e instituições se alinharam com o objetivo de cumprir os desejos do Führer. Esse sistema, alimentado pela propaganda incessante dos "valores" nazistas, conseguiu a proeza de eliminar a responsabilidade pessoal sobre qualquer ato. A fantasia da retórica de Hitler substituiu o real, e nesse mundo de fanáticos não havia mais necessidade de pensar.

Mutatis mutandis, é possível aplicar essa teoria ao fenômeno que testemunhei no Center Norte. Aquela multidão de adultos fantasiados de encanador italiano parece ter perdido sua capacidade de raciocinar sobre seus atos e, no limite, de viver no mundo real e enfrentar suas contradições. Não é apenas a propaganda que explica esse fenômeno, mas a própria característica do Mario. O jogo "resolve" os impasses da vida por meio da simples supressão da competição - o "desafio" do Mario é apenas somar o maior número possível de pontos e vencer fases. Ou seja: o jogador não tem de derrotar ninguém e, portanto, não se vê confrontado com situações de conflito, que são aquelas que ajudam a consolidar valores. Ter esse tipo de atividade como algo central na vida cotidiana - e me parece que esse é precisamente o caso da maioria dos "Marios" que se espremeram na Saraiva naquelas roupas patéticas - é sintomático de um importante esvaziamento moral.

Não estou aqui a dizer que os fãs de Mario são equivalentes às gangues nazistas, mesmo porque meus filhos estão entre eles. Mas o excesso que testemunhei naquela aglomeração de adultos fanáticos, que estavam lá só para ouvir a voz de um sujeito de bigodinho, mostra uma inquietante renúncia ao intelecto - que, por sua vez, indica uma inclinação óbvia para a negação da realidade, primeiríssimo passo para a construção ideológica do totalitarismo.

No domingo que passou, levei meus filhos - Miguel, 6, e Samuel, 10 - para um evento na Saraiva Mega Store do Shopping Center Norte. A promessa é que lá estaria o sujeito que dubla o personagem "Super Mario" nos joguinhos da Nintendo, pelos quais meus meninos são doidos. Não dava para negar-lhes a chance de ver de perto o cara que mais se aproxima do herói deles. Mas a coisa toda foi um pesadelo antropológico muito didático.

Havia várias crianças na fila, claro, mas a maioria absoluta era de adolescentes e adultos. Muitos deles estavam com o Nintendo 3DS na mão, exibindo aquela que é a mais avançada bugiganga desta semana (como se sabe, as coisas ficam obsoletas na mesma velocidade com que os meninos superam as fases dos joguinhos). Outros usavam o ridículo chapéu do Mario e cantavam a chatíssima musiquinha do herói, e eles discutiam entre si intermináveis detalhes sobre moedinhas suspensas no ar e cogumelos malvados.

A fila durou seis horas, ao final das quais a "organização" do evento disse que só quem tinha o tal joguinho poderia entrar. Como Miguel e Samuel são dois "sem-joguinho", eles exerceram o jus esperniandi e abriram o berreiro. Depois de muita discussão, os "organizadores" permitiram que os meninos entrassem. Eis que, porém, meus filhos saíram de lá de dentro, uns dois minutos depois, como se não tivesse havido nenhum estresse nem irritação. Pelo contrário: traziam no rosto um sorriso imenso de júbilo, como se o autógrafo da "voz" do Mário, que eles obtiveram, fosse um troféu inigualável. Eu já estava preparado para emplacar um discurso contra a febre dos videogames e seus efeitos funestos sobre o bom senso das pessoas, e blábláblá, mas aquilo me desmontou. Miguel e Samuel estavam genuinamente felizes.

À noite, mal dormi, pensando no que vi e tentando achar uma explicação para tudo aquilo.

No dia seguinte, tudo fez um baita sentido. Fui assistir na USP a uma aula sobre Hannah Arendt, proferida pelos ótimos professores alemães Julia Schulze Wessel e Rainer Schmidt. Discutimos o esvaziamento da razão sob o totalitarismo, que, entre outras coisas, elimina a capacidade de julgamento, de distinguir o certo do errado. Para Arendt, o nazismo só conseguiu levar esse projeto adiante, numa sociedade sofisticada como a alemã, graças à "coordenação" (Gleichschaltung), isto é, o mecanismo em que pessoas e instituições se alinharam com o objetivo de cumprir os desejos do Führer. Esse sistema, alimentado pela propaganda incessante dos "valores" nazistas, conseguiu a proeza de eliminar a responsabilidade pessoal sobre qualquer ato. A fantasia da retórica de Hitler substituiu o real, e nesse mundo de fanáticos não havia mais necessidade de pensar.

Mutatis mutandis, é possível aplicar essa teoria ao fenômeno que testemunhei no Center Norte. Aquela multidão de adultos fantasiados de encanador italiano parece ter perdido sua capacidade de raciocinar sobre seus atos e, no limite, de viver no mundo real e enfrentar suas contradições. Não é apenas a propaganda que explica esse fenômeno, mas a própria característica do Mario. O jogo "resolve" os impasses da vida por meio da simples supressão da competição - o "desafio" do Mario é apenas somar o maior número possível de pontos e vencer fases. Ou seja: o jogador não tem de derrotar ninguém e, portanto, não se vê confrontado com situações de conflito, que são aquelas que ajudam a consolidar valores. Ter esse tipo de atividade como algo central na vida cotidiana - e me parece que esse é precisamente o caso da maioria dos "Marios" que se espremeram na Saraiva naquelas roupas patéticas - é sintomático de um importante esvaziamento moral.

Não estou aqui a dizer que os fãs de Mario são equivalentes às gangues nazistas, mesmo porque meus filhos estão entre eles. Mas o excesso que testemunhei naquela aglomeração de adultos fanáticos, que estavam lá só para ouvir a voz de um sujeito de bigodinho, mostra uma inquietante renúncia ao intelecto - que, por sua vez, indica uma inclinação óbvia para a negação da realidade, primeiríssimo passo para a construção ideológica do totalitarismo.

No domingo que passou, levei meus filhos - Miguel, 6, e Samuel, 10 - para um evento na Saraiva Mega Store do Shopping Center Norte. A promessa é que lá estaria o sujeito que dubla o personagem "Super Mario" nos joguinhos da Nintendo, pelos quais meus meninos são doidos. Não dava para negar-lhes a chance de ver de perto o cara que mais se aproxima do herói deles. Mas a coisa toda foi um pesadelo antropológico muito didático.

Havia várias crianças na fila, claro, mas a maioria absoluta era de adolescentes e adultos. Muitos deles estavam com o Nintendo 3DS na mão, exibindo aquela que é a mais avançada bugiganga desta semana (como se sabe, as coisas ficam obsoletas na mesma velocidade com que os meninos superam as fases dos joguinhos). Outros usavam o ridículo chapéu do Mario e cantavam a chatíssima musiquinha do herói, e eles discutiam entre si intermináveis detalhes sobre moedinhas suspensas no ar e cogumelos malvados.

A fila durou seis horas, ao final das quais a "organização" do evento disse que só quem tinha o tal joguinho poderia entrar. Como Miguel e Samuel são dois "sem-joguinho", eles exerceram o jus esperniandi e abriram o berreiro. Depois de muita discussão, os "organizadores" permitiram que os meninos entrassem. Eis que, porém, meus filhos saíram de lá de dentro, uns dois minutos depois, como se não tivesse havido nenhum estresse nem irritação. Pelo contrário: traziam no rosto um sorriso imenso de júbilo, como se o autógrafo da "voz" do Mário, que eles obtiveram, fosse um troféu inigualável. Eu já estava preparado para emplacar um discurso contra a febre dos videogames e seus efeitos funestos sobre o bom senso das pessoas, e blábláblá, mas aquilo me desmontou. Miguel e Samuel estavam genuinamente felizes.

À noite, mal dormi, pensando no que vi e tentando achar uma explicação para tudo aquilo.

No dia seguinte, tudo fez um baita sentido. Fui assistir na USP a uma aula sobre Hannah Arendt, proferida pelos ótimos professores alemães Julia Schulze Wessel e Rainer Schmidt. Discutimos o esvaziamento da razão sob o totalitarismo, que, entre outras coisas, elimina a capacidade de julgamento, de distinguir o certo do errado. Para Arendt, o nazismo só conseguiu levar esse projeto adiante, numa sociedade sofisticada como a alemã, graças à "coordenação" (Gleichschaltung), isto é, o mecanismo em que pessoas e instituições se alinharam com o objetivo de cumprir os desejos do Führer. Esse sistema, alimentado pela propaganda incessante dos "valores" nazistas, conseguiu a proeza de eliminar a responsabilidade pessoal sobre qualquer ato. A fantasia da retórica de Hitler substituiu o real, e nesse mundo de fanáticos não havia mais necessidade de pensar.

Mutatis mutandis, é possível aplicar essa teoria ao fenômeno que testemunhei no Center Norte. Aquela multidão de adultos fantasiados de encanador italiano parece ter perdido sua capacidade de raciocinar sobre seus atos e, no limite, de viver no mundo real e enfrentar suas contradições. Não é apenas a propaganda que explica esse fenômeno, mas a própria característica do Mario. O jogo "resolve" os impasses da vida por meio da simples supressão da competição - o "desafio" do Mario é apenas somar o maior número possível de pontos e vencer fases. Ou seja: o jogador não tem de derrotar ninguém e, portanto, não se vê confrontado com situações de conflito, que são aquelas que ajudam a consolidar valores. Ter esse tipo de atividade como algo central na vida cotidiana - e me parece que esse é precisamente o caso da maioria dos "Marios" que se espremeram na Saraiva naquelas roupas patéticas - é sintomático de um importante esvaziamento moral.

Não estou aqui a dizer que os fãs de Mario são equivalentes às gangues nazistas, mesmo porque meus filhos estão entre eles. Mas o excesso que testemunhei naquela aglomeração de adultos fanáticos, que estavam lá só para ouvir a voz de um sujeito de bigodinho, mostra uma inquietante renúncia ao intelecto - que, por sua vez, indica uma inclinação óbvia para a negação da realidade, primeiríssimo passo para a construção ideológica do totalitarismo.

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