Durante algum tempo, enquanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, mantinha Sergio Moro no Ministério e Paulo Guedes não corria riscos, acreditei que ele havia sido eleito por seus apoiadores a qualquer custo, mas a maioria dos votos seria devida à onda antipetista e ao apoio à Lava Jato. Isso me dava à convicção de que ele seria obrigado a conviver, até a tentativa de se reeleger em 2022, com o ex-juiz e o economista da linha de Chicago no primeiro escalão da própria administração. Minha análise estava contaminada por uma visão crítica parcial e pouco inteligente de que seria insignificante a parcela do eleitorado de viúvas do regime tecnocrático e militar que foi dono absoluto do poder durante o maior período de exceção ao longo de toda a República.
Eu estava redondamente enganado e dou minha mão à palmatória simbolicamente, como dava fisicamente nos tempos em que estudava com uma amiga de minha mãe, professora, dona Nenudes, antes de começar o primário no Grupo Escolar Jovelina Gomes, em Uiraúna, no sertão da Paraíba, em meados e final dos anos 50. Quando assistia às manifestações de rua em 2013 contra o desastre administrativo de nossa insana República, na Avenida Paulista, e pelo impeachment de Dilma Rousseff, do PT, em 2016, desdenhava da pífia participação dos que pregavam a volta dos militares ao poder, relegada aos espaços menos ocupados da massa reunida.
Agora, contudo, a realidade se impõe e urge ter humildade para perceber, enfim, que o capitão reformado numa combinação "mandrake" com os comandantes das Forças Armadas para evitar que a pecha de indisciplinado e terrorista que iria recair sobre ele prejudicasse a imagem "gloriosa" que os fardados tinham, e têm, de si próprios. Em de seu livro O Cadete e o Capitão, sobre a vida de Bolsonaro na caserna, o grande repórter Luiz Maklouf Carvalho relatou o episódio mais vergonhoso da História da nada gloriosa "justiça militar" em todos os tempos. O capitão, obcecado pela ambição de ganhar mais, assinou um artigo no semanário Veja sobre os baixos soldos, tornando-se, com isso, um herói da baixa oficialidade e um elemento perigoso para o alto oficialato. Passou a manter contato com a repórter Cássia Maria, a quem contou seu plano terrorista de explodir bombas em quartéis e na adutora do Rio Guandu, no Rio de Janeiro, onde morava. Fê-lo sob garantia de anonimato e, em confiança, entregou à repórter um croqui de próprio punho do projeto. A repórter quebrou o compromisso e deu nome aos bois, baseada na ética humanista que ele não admitia: não havia sentido em manter o anonimato de autores de um atentado em que vidas humanas corriam risco.
O livro de Maklouf é indispensável para o conhecimento dessa faceta do protagonista do caos sanitário, político e econômico que o Brasil enfrenta agora. Quem não puder ir à livraria comprá-lo pode encontrar no YouTube duas excelentes entrevistas em que o autor narra com precisão e graça o momento capital da obra, qual seja, o julgamento do atual presidente pelo Superior Tribunal Militar (STM). Condenado nas instâncias administrativas iniciais por 3 a 0, saiu da prisão administrativa para enfrentar a alta corte e ganhar por 9 a 4. O incrível é que o resultado foi fundamentado nos mesmos quatro laudos grafotécnicos de seu desenho. No primeiro julgamento ele foi condenado porque dois laudos confirmaram que o gráfico era dele e os outros dois eram "inconclusivos". Ou seja, 2 a 0. Os ministros do STM, entretanto, acolheram sua tese absurda, em defesa de próprio punho, de que os dois laudos inconclusivos o favoreciam. Portanto: 2 a 2. E ele foi anistiado por nove ministros nomeados durante o regime militar a quatro indicados após a redemocratização. Por trás disso havia um acordo de "cavalheiros" de que ele sairia da Força pela porta dos fundos, mas sem tugir nem mugir.
A absolvição jogou-o na militância política, em que instalou seu posto avançado de "viúva da ditadura", não a de 1964, mas a instaurada após o endurecimento de 1968. Em dois anos como vereador no Rio e 28 na Câmara dos Deputados, pendurou na parede de seu gabinete de legislador a fotografia de todos os generais que ocuparam o poder na ditadura. Com um discurso de extrema direita, contra o aborto e a favor da mais dura repressão policial, elogiou o miliciano Adriano da Nóbrega da tribuna depois de acompanhar no tribunal pessoalmente o julgamento deste sob a acusação de homicídio de um guardador de carros. Elogiou o golpe do coronel Hugo Chávez, na Venezuela, em entrevista ao Estado, mantendo sempre a mesma retórica armamentista e a favor da repressão. No voto a favor do impeachment da petista Dilma Rousseff, manifestou de forma candente sua admiração pelo torturador-símbolo da repressão: o coronel Brilhante Ustra.
Na semana passada, recebeu e homenageou no gabinete da Presidência da República o tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura, vulgo Major Curió, encarregado pelo governo federal de gerir o fabuloso garimpo de Serra Pelada, em Marabá, no Pará. A antiga vila de garimpeiros é hoje uma cidade batizada em sua homenagem, Curionópolis. Estive em Serra Pelada e do próprio ouvi o relato circunstanciado sobre os cinco militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que ele fez questão de executar pessoalmente, gabando-se ao encenar os momentos de desespero e agonia vividos por suas vítimas desarmadas. Esses espetáculos de humor macabro faziam grande sucesso entre homens que, como o próprio Bolsonaro e seu pai, sonhavam com a conquista máxima de "bamburrar" ouro na Torre de Babel em que foi desmontada a montanha que virou lago.
Meu colega no Jornal do Brasil Hugo Studart, professor da Universidade de Brasília (UnB), fez uma pesquisa detalhada da guerrilha do PCdoB no Araguaia e no livro Borboletas e Lobisomens descreveu minuciosamente algumas das execuções que o então capitão Curió fez com as próprias mãos e pistola. Foi o caso de Antônio Theodoro de Castro, o Raul. Na narrativa de Studart, o capitão dirigiu-se àquele e lhe disse: "Nem adiantou ser valentão, pois vai morrer como cachorro" (gíria usada pelos militares referindo-se a delatores que serviam de guia às tropas na selva). E como Laurenti Beria, o carrasco de Stalin que fazia questão de atirar na nuca de dissidentes do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), disparou à queima-roupa na cabeça do guerrilheiro. A outro, com codinome Simão, perguntou: "Você gosta da floresta? "Gosto" "Então, fique nela". Antes de morrer, a vítima deu um berro de terror, ouvido à distância.
Para quem não conhece a história em profundidade talvez seja difícil entender como esse tipo de relato de horror pode agradar pessoas comuns. A verdade é que o golpe militar de 1964 teve muito apoio de uma parte da elite e da classe média, que participou de uma "marcha de Deus pela família" contra o governo de João Goulart, que assumiu a Presidência depois que Jânio Quadros tentou dar um golpe e renunciou, frustrando seu eleitorado conservador e anticomunista.
Os anos 1970 foram a época do chamado "milagre econômico" e a repressão política também propiciou uma segurança maior aos cidadãos comuns que não se envolviam com política, principalmente com a aventura dos grupos armados de esquerda que queriam derrubar o regime sem armas nem apoio popular. Muitos pais passaram para seus filhos essa visão nostálgica, presente até hoje, de uma época de paz social sem agitação sindical e em que policiais como Sérgio Fleury matavam esquerdistas e também participavam de grupos de extermínio de bandidos comuns.
O capitão Cavalão dos tempos da caserna é caudatário dessa nostalgia e isso lhe garante os 30% de eleitores fiéis que pouco ligaram para a demissão de Moro e nada se perturbarão com a eventual retirada de Guedes do Ministério. Ou da ministra Tereza Cristina, da Agricultura, que é a avalista do agronegócio, que mantém o Brasil na crise econômica.
Isso lhe dá aval para negociar a alma com os fisiológicos do Centrão e se entregar à tutela de Roberto Jefferson, corrupto condenado e apenado no mensalão e alcaguete de seus companheiros de bando. E a certeza de que já está no segundo turno da eleição de 2020, de preferência contra Lula. A ponto de dizer, como o fez neste fim de semana a um crítico de seu governo que o abordou: "Ficarei no governo até 2027".
Isso, é claro, vai depender da dimensão do caos social que vem aí, misturando a pandemia com a inércia de um presidente mandrião, que, em plena e assustadora crise, passeia de jet ski no Lago de Paranoá, como se estivesse num fim de semana de paz e prosperidade de sua fantasia.
*Jornalista, poeta e escritor