Decide, mas não muda: STF e o Estado de Coisas Inconstitucional


A decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal sobre a ilicitude e indignidade estrutural do sistema penitenciário brasileiro foi uma grande decepção. Mais ainda, uma decepção com toques de engodo. Essa afirmação pode ser surpreendente tendo em vista que o STF deferiu cautelarmente a ADP 347 para declarar o "Estado de Coisas Inconstitucional" das prisões brasileira. Esse resultado estrondoso, porém, mascara que, nos detalhes, qualquer traço de mudança real foi apagado pelos ministros do Supremo. Na prática, nada muda.

Por Supremo em Pauta

Para um diagnóstico mais preciso, é preciso ter em mente que se trata da primeira grande ação judicial de intervenção estrutural sobre o sistema penitenciário brasileiro. Outras decisões relevantes já haviam sido tomadas pelo STF, como a impossibilidade de vedar a progressão de regime em crime hediondo ou, mais recentemente, reconhecimento de que o Judiciário pode exigir reformas em presídios sem ofensa à Separação de Poderes. Porém, este seria o primeiro caso em que o Judiciário demandaria do Poder Executivo e outras instâncias uma articulação estrutural e profunda a respeito do tema, visando implementar mudanças eficientes em médio e longo prazo. Na petição inicial, o PSOL requereu ao STF o deferimento de oito cautelares. A despeito de como foram organizadas, podemos repensá-las da seguinte maneira:

 

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Ao longo de todo o julgamento foram realizadas assertivas fortes por todos os ministros, com apelos ao Estado Democrático de Direito, à Dignidade Humana e à situação de tortura a que são submetidos os presos em todo o Brasil. Porém, ao final, as cautelares deferidas dizem respeito apenas às audiências de custódia e ao descontingenciamento das verbas do FUNPEN.

Nenhuma destas medidas é realmente nova: as audiências de custódia já estavam em processo de implementação pelos tribunais estaduais e as verbas do FUNPEN sofrem mais com a ausência de projetos articulados do que com efetivo contingenciamento. A decisão inova ao estabelecer um prazo máximo de 90 dias para a realização de audiências de custódia e a mobilização das verbas do FUNPEN. Apenas um pouco de "cumpra-se a lei" em pontos laterais para a solução do desastre que é o sistema penitenciário brasileiro. Avançam, mas muito pouco.

Entretanto, não foi acatada nenhuma medida cautelar voltada a lidar com as decisões judiciais de encarceramento, parte crucial do problema. Ministros como Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes - ambos com experiência significativa na presidência do CNJ - reconhecem na cultura punitiva do Judiciário a fonte primordial para a crescente superpopulação carcerária e, consequentemente, para o "Estado de coisas inconstitucional".

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Esse diagnóstico serviu de subsídio para outras falas assertivas, como a do Ministro Luiz Fux, de que o STF deveria dar diretrizes enfáticas aos demais magistrados do sistema Judiciário. Estas falas, porém, estão desacompanhadas de autoridade. Os ministros, ao se negarem de criar ou fazer valer qualquer mecanismo de controle sobre a atividade dos juízes, como a Reclamação direto ao tribunal ou a possibilidade de apreciar as liminares contra liminares negadas em habeas corpus, transformaram uma decisão judicial em um mero aconselhamento.

Em síntese, o Supremo reconhece que o Judiciário é parte do problema. Mas, ao não adotar medidas mais severas para a reversão das decisões de aprisionamento provisório, não faz parte da solução.

Ao deferir algumas cautelares sem conceder nenhuma daquelas dirigidas aos juízes, o potencial de mudança estrutural da decisão foi anulado. O Ministro Marco Aurélio alertou o Tribunal de que a decisão estaria esvaziada, sem sorte. Se algo mudou, foi o fato de que o STF perdeu a chance de criar seu próprio grande precedente de direitos humanos.

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*Originalmente postado no Jornal JOTA no dia 09/09/2015

Para um diagnóstico mais preciso, é preciso ter em mente que se trata da primeira grande ação judicial de intervenção estrutural sobre o sistema penitenciário brasileiro. Outras decisões relevantes já haviam sido tomadas pelo STF, como a impossibilidade de vedar a progressão de regime em crime hediondo ou, mais recentemente, reconhecimento de que o Judiciário pode exigir reformas em presídios sem ofensa à Separação de Poderes. Porém, este seria o primeiro caso em que o Judiciário demandaria do Poder Executivo e outras instâncias uma articulação estrutural e profunda a respeito do tema, visando implementar mudanças eficientes em médio e longo prazo. Na petição inicial, o PSOL requereu ao STF o deferimento de oito cautelares. A despeito de como foram organizadas, podemos repensá-las da seguinte maneira:

 

Ao longo de todo o julgamento foram realizadas assertivas fortes por todos os ministros, com apelos ao Estado Democrático de Direito, à Dignidade Humana e à situação de tortura a que são submetidos os presos em todo o Brasil. Porém, ao final, as cautelares deferidas dizem respeito apenas às audiências de custódia e ao descontingenciamento das verbas do FUNPEN.

Nenhuma destas medidas é realmente nova: as audiências de custódia já estavam em processo de implementação pelos tribunais estaduais e as verbas do FUNPEN sofrem mais com a ausência de projetos articulados do que com efetivo contingenciamento. A decisão inova ao estabelecer um prazo máximo de 90 dias para a realização de audiências de custódia e a mobilização das verbas do FUNPEN. Apenas um pouco de "cumpra-se a lei" em pontos laterais para a solução do desastre que é o sistema penitenciário brasileiro. Avançam, mas muito pouco.

Entretanto, não foi acatada nenhuma medida cautelar voltada a lidar com as decisões judiciais de encarceramento, parte crucial do problema. Ministros como Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes - ambos com experiência significativa na presidência do CNJ - reconhecem na cultura punitiva do Judiciário a fonte primordial para a crescente superpopulação carcerária e, consequentemente, para o "Estado de coisas inconstitucional".

Esse diagnóstico serviu de subsídio para outras falas assertivas, como a do Ministro Luiz Fux, de que o STF deveria dar diretrizes enfáticas aos demais magistrados do sistema Judiciário. Estas falas, porém, estão desacompanhadas de autoridade. Os ministros, ao se negarem de criar ou fazer valer qualquer mecanismo de controle sobre a atividade dos juízes, como a Reclamação direto ao tribunal ou a possibilidade de apreciar as liminares contra liminares negadas em habeas corpus, transformaram uma decisão judicial em um mero aconselhamento.

Em síntese, o Supremo reconhece que o Judiciário é parte do problema. Mas, ao não adotar medidas mais severas para a reversão das decisões de aprisionamento provisório, não faz parte da solução.

Ao deferir algumas cautelares sem conceder nenhuma daquelas dirigidas aos juízes, o potencial de mudança estrutural da decisão foi anulado. O Ministro Marco Aurélio alertou o Tribunal de que a decisão estaria esvaziada, sem sorte. Se algo mudou, foi o fato de que o STF perdeu a chance de criar seu próprio grande precedente de direitos humanos.

 

*Originalmente postado no Jornal JOTA no dia 09/09/2015

Para um diagnóstico mais preciso, é preciso ter em mente que se trata da primeira grande ação judicial de intervenção estrutural sobre o sistema penitenciário brasileiro. Outras decisões relevantes já haviam sido tomadas pelo STF, como a impossibilidade de vedar a progressão de regime em crime hediondo ou, mais recentemente, reconhecimento de que o Judiciário pode exigir reformas em presídios sem ofensa à Separação de Poderes. Porém, este seria o primeiro caso em que o Judiciário demandaria do Poder Executivo e outras instâncias uma articulação estrutural e profunda a respeito do tema, visando implementar mudanças eficientes em médio e longo prazo. Na petição inicial, o PSOL requereu ao STF o deferimento de oito cautelares. A despeito de como foram organizadas, podemos repensá-las da seguinte maneira:

 

Ao longo de todo o julgamento foram realizadas assertivas fortes por todos os ministros, com apelos ao Estado Democrático de Direito, à Dignidade Humana e à situação de tortura a que são submetidos os presos em todo o Brasil. Porém, ao final, as cautelares deferidas dizem respeito apenas às audiências de custódia e ao descontingenciamento das verbas do FUNPEN.

Nenhuma destas medidas é realmente nova: as audiências de custódia já estavam em processo de implementação pelos tribunais estaduais e as verbas do FUNPEN sofrem mais com a ausência de projetos articulados do que com efetivo contingenciamento. A decisão inova ao estabelecer um prazo máximo de 90 dias para a realização de audiências de custódia e a mobilização das verbas do FUNPEN. Apenas um pouco de "cumpra-se a lei" em pontos laterais para a solução do desastre que é o sistema penitenciário brasileiro. Avançam, mas muito pouco.

Entretanto, não foi acatada nenhuma medida cautelar voltada a lidar com as decisões judiciais de encarceramento, parte crucial do problema. Ministros como Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes - ambos com experiência significativa na presidência do CNJ - reconhecem na cultura punitiva do Judiciário a fonte primordial para a crescente superpopulação carcerária e, consequentemente, para o "Estado de coisas inconstitucional".

Esse diagnóstico serviu de subsídio para outras falas assertivas, como a do Ministro Luiz Fux, de que o STF deveria dar diretrizes enfáticas aos demais magistrados do sistema Judiciário. Estas falas, porém, estão desacompanhadas de autoridade. Os ministros, ao se negarem de criar ou fazer valer qualquer mecanismo de controle sobre a atividade dos juízes, como a Reclamação direto ao tribunal ou a possibilidade de apreciar as liminares contra liminares negadas em habeas corpus, transformaram uma decisão judicial em um mero aconselhamento.

Em síntese, o Supremo reconhece que o Judiciário é parte do problema. Mas, ao não adotar medidas mais severas para a reversão das decisões de aprisionamento provisório, não faz parte da solução.

Ao deferir algumas cautelares sem conceder nenhuma daquelas dirigidas aos juízes, o potencial de mudança estrutural da decisão foi anulado. O Ministro Marco Aurélio alertou o Tribunal de que a decisão estaria esvaziada, sem sorte. Se algo mudou, foi o fato de que o STF perdeu a chance de criar seu próprio grande precedente de direitos humanos.

 

*Originalmente postado no Jornal JOTA no dia 09/09/2015

Para um diagnóstico mais preciso, é preciso ter em mente que se trata da primeira grande ação judicial de intervenção estrutural sobre o sistema penitenciário brasileiro. Outras decisões relevantes já haviam sido tomadas pelo STF, como a impossibilidade de vedar a progressão de regime em crime hediondo ou, mais recentemente, reconhecimento de que o Judiciário pode exigir reformas em presídios sem ofensa à Separação de Poderes. Porém, este seria o primeiro caso em que o Judiciário demandaria do Poder Executivo e outras instâncias uma articulação estrutural e profunda a respeito do tema, visando implementar mudanças eficientes em médio e longo prazo. Na petição inicial, o PSOL requereu ao STF o deferimento de oito cautelares. A despeito de como foram organizadas, podemos repensá-las da seguinte maneira:

 

Ao longo de todo o julgamento foram realizadas assertivas fortes por todos os ministros, com apelos ao Estado Democrático de Direito, à Dignidade Humana e à situação de tortura a que são submetidos os presos em todo o Brasil. Porém, ao final, as cautelares deferidas dizem respeito apenas às audiências de custódia e ao descontingenciamento das verbas do FUNPEN.

Nenhuma destas medidas é realmente nova: as audiências de custódia já estavam em processo de implementação pelos tribunais estaduais e as verbas do FUNPEN sofrem mais com a ausência de projetos articulados do que com efetivo contingenciamento. A decisão inova ao estabelecer um prazo máximo de 90 dias para a realização de audiências de custódia e a mobilização das verbas do FUNPEN. Apenas um pouco de "cumpra-se a lei" em pontos laterais para a solução do desastre que é o sistema penitenciário brasileiro. Avançam, mas muito pouco.

Entretanto, não foi acatada nenhuma medida cautelar voltada a lidar com as decisões judiciais de encarceramento, parte crucial do problema. Ministros como Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes - ambos com experiência significativa na presidência do CNJ - reconhecem na cultura punitiva do Judiciário a fonte primordial para a crescente superpopulação carcerária e, consequentemente, para o "Estado de coisas inconstitucional".

Esse diagnóstico serviu de subsídio para outras falas assertivas, como a do Ministro Luiz Fux, de que o STF deveria dar diretrizes enfáticas aos demais magistrados do sistema Judiciário. Estas falas, porém, estão desacompanhadas de autoridade. Os ministros, ao se negarem de criar ou fazer valer qualquer mecanismo de controle sobre a atividade dos juízes, como a Reclamação direto ao tribunal ou a possibilidade de apreciar as liminares contra liminares negadas em habeas corpus, transformaram uma decisão judicial em um mero aconselhamento.

Em síntese, o Supremo reconhece que o Judiciário é parte do problema. Mas, ao não adotar medidas mais severas para a reversão das decisões de aprisionamento provisório, não faz parte da solução.

Ao deferir algumas cautelares sem conceder nenhuma daquelas dirigidas aos juízes, o potencial de mudança estrutural da decisão foi anulado. O Ministro Marco Aurélio alertou o Tribunal de que a decisão estaria esvaziada, sem sorte. Se algo mudou, foi o fato de que o STF perdeu a chance de criar seu próprio grande precedente de direitos humanos.

 

*Originalmente postado no Jornal JOTA no dia 09/09/2015

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