Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Opinião|O caso do ‘tio Paulo’ e os pitbulls de Saquarema: clamor social continua guiando decretos de prisão

PUBLICIDADE

convidados
Atualização:

Neste mês de abril, a pauta midiática se dividiu entre dois casos, ambos ocorridos no Rio de Janeiro.

PUBLICIDADE

O primeiro, da escritora brutalmente atacada por três cães da raça pitbull em Saquarema, na região dos lagos do Estado. Os animais pertenciam a uma família vizinha e, ao escaparem da residência, investiram contra a mulher de 73 anos, provocando ferimentos gravíssimos que mais tarde resultaram na amputação de um de seus braços.

Já o segundo, envolve a cabeleireira que, fazendo as vezes de cuidadora, acompanhou um idoso aparentando inconsciência a uma agência bancária em Bangu, na zona oeste da capital fluminense, e tentou auxiliá-lo a assinar papéis de um empréstimo. Estranhando a situação, funcionárias do banco verificaram que o sexagenário, que ficaria nacionalmente conhecido como “tio Paulo”, estava na verdade morto.

O que há de comum entre os dois casos? Fora a ampla cobertura midiática, ambos tiveram as prisões dos respectivos suspeitos cercadas de polêmicas.

No caso do ataque dos cães, os tutores dos animais – pai, filho e enteada – acabaram presos por outros crimes que não o de lesão corporal. É que muito embora o pai tenha comparecido à delegacia logo após o incidente para prestar esclarecimentos e o registro de ocorrência tenha constado “a inexistência de situação flagrancial”, com a repercussão do caso, policiais retornam ao local e deram voz de prisão aos três familiares pela suposta prática dos crimes de maus tratos a animais e de adulteração de veículo automotor. Ou seja, a prisão em flagrante não decorreu do ataque em si, mas de supostos delitos revelados após o episódio e não relacionados a este.

Publicidade

O corpo do idoso Paulo Roberto Braga, de 68 anos, o tio Paulo, foi enterrado no dia 20 de abril no Cemitério de Campo Grande, no Rio. Foto: REPRODUCAO/TV GLOBO

Todavia, na audiência de custódia, a prisão em flagrante, já controvertida, foi transformada em preventiva sob o fundamento de que a liberdade dos acusados colocava em risco a ordem pública justamente porque haveria notícia de que não era a primeira vez que os animais atacavam transeuntes! Ou seja, misturou-se a prisão em flagrante por maus tratos e adulteração de veículo com as lesões corporais causadas pelos animais, fatos completamente distintos.

De toda forma, como os cães já haviam sido apreendidos por determinação da polícia, não havia razão para manter seus tutores presos, já que não havia mais como estes exporem terceiros a risco.

Ora, se os cães já estavam apreendidos, em que medida a liberdade dos três familiares representaria algum perigo à sociedade? Quais seriam as atitudes – ou omissões – dos donos que poderiam permitir novos ataques? Qual seria a efetividade preventiva da prisão?

Como bem ressaltado pelo Desembargador Gilmar Augusto Teixeira, ao acertadamente conceder a liminar em habeas corpus e colocar a família em liberdade, “não se tem presente o periculum libertatis invocado na decisão do primeiro grau, ante a perda temporária da tutela dos animais”.

No caso, adequadas e suficientes as medidas cautelares alternativas impostas pelo Desembargador, como a “manutenção da perda temporária da tutela dos animais apreendidos” e a “proibição de aquisição de outros animais domésticos até o julgamento do mérito do presente HC.”

Publicidade

No caso do “tio Paulo”, a cabeleireira foi presa em flagrante pelos crimes de tentativa de furto qualificado (mediante fraude) e vilipêndio a cadáver.

PUBLICIDADE

Na audiência de custódia, a defesa requereu a liberdade provisória e, subsidiariamente, a prisão domiciliar, tendo em vista que a suspeita possui filha portadora de deficiência.

Todavia, a prisão em flagrante foi convertida em preventiva como “medida de garantia da ordem pública” sob a alegação de que “crimes como esse comprometem a segurança da cidade do Rio de Janeiro” e “com vistas ao restabelecimento da paz social”.

“Tio Paulo” estava morto. E de “morte morrida”, não tendo sua cuidadora qualquer aparente relação com o óbito, e isto estava atestado nos autos e foi reconhecido pela decisão judicial.

Assim, novamente, questiona-se: em que medida a liberdade de uma mulher, mãe, cabelereira, sem antecedentes, investigada por um crime tentado, praticado sem violência ou grave ameaça, representaria risco à “segurança da cidade do Rio de Janeiro”? Parece lógico e intuitivo que o “restabelecimento da paz social” dos cariocas passe pela repressão a outro tipo de criminalidade, que não a supostamente praticada pela cuidadora do idoso.

Publicidade

De toda forma, longe de resguardar a ordem pública, o que vemos, nos dois casos, são prisões decretadas e mantidas para atender o velho conhecido “clamor social”, que se faz ouvir pela cobertura não só da mídia tradicional, mas, também, que as redes sociais dedicam a episódios funestos como este.

Diz-se velho conhecido porque, até cerca de 20 a 30 anos atrás, antes de ser sepultado por precedentes da lavra de eminentes Ministros como Sepúlveda Pertence, Celso de Mello e Marco Aurélio, o clamor social era explicitamente invocado como fundamento para prisão preventiva num sem-número de casos.

Hoje, vê-se ainda seu espectro, mas agora travestido de “ordem pública”, a determinar o encarceramento de pessoas sem qualquer periculosidade aparente, suspeitos de crimes tentados ou de menor potencial ofensivo, apenas porque causadores de furor e alarido na imprensa e nas redes sociais.

Não é demais lembrar a modificação introduzida pelo Pacote Anticrime ao art. 312 do CPP, acrescentando como requisito obrigatório para a prisão preventiva a demonstração concreta do perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, o que não foi demonstrado em qualquer dos casos.

Os motivos autorizadores para a prisão preventiva estão, todos eles, previstos no art. 312 do CPP e dentre eles não se encontram considerações abstratas sobre a gravidade do crime e nem sobre a paz social.

Publicidade

O Poder Judiciário não se presta a atender clamores sociais gerados por casos midiáticos. Até porque, o que se nota, é que, em tais casos, a situação de perigo não existe de fato, sendo a prisão utilizada apenas para satisfazer o sentimento de justiça de “tribunais da internet”.

O que a sociedade espera do Poder Judiciário é que este cumpra sua função, isto é, aplique a Constituição Federal e as leis, prendendo e soltando unicamente de acordo com os ditames postos no ordenamento jurídico do país.

Reconfortante saber, todavia, que, em pelo menos um dos casos, houve corajosa decisão a trazer racionalidade à justiça criminal e a analisar os fatos sob o prisma da lei. Aguarda-se que o outro episódio também possa merecer igual tratamento.

Convidados deste artigo

Foto do autor Daniel Romeiro
Daniel Romeirosaiba mais
Foto do autor Isabela Guaritá Sabino
Isabela Guaritá Sabinosaiba mais

Daniel Romeiro
Advogado criminalista em Brasília
Conteúdo

As informações e opiniões formadas neste artigo são de responsabilidade única do autor.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.