Chegada

A primeira impressão é a que fica - para trás. O que não significa que devemos evitar as conclusões apressadas: elas podem não dizer nada sobre o objeto observado, mas talvez ajudem a compreendermos nosso olhar. Não sei bem onde quero chegar com esse raciocínio - talvez seja só consequência das horas mal dormidas de viagem... Enfim, vamos a elas, as primeiras impressões.

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Por Redação
Atualização:

Da porta do avião até a estrada para Poughkeepsie, travei contato com quatro pessoas: nenhuma delas era americana. O guarda da imigração tinha sotaque indiano. A moça que organizava a fila puxava pro hispânico. Um policial pediu à moça ao meu lado "los documentos de ellas" e o moço que cuidava da cancela do estacionamento desejou-nos um bom dia com seu inglês vindo de algum CCAA para lá de Bagdá. Dick Cheney e seus amigos realmente têm razões para ficar desesperados. Que peguem em armas, que façam milícias de fronteiras, Texas Rangers, Vigilantes: nós vamo invadir sua praia!

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Do aeroporto JFK até a pacata Poughkeepsie é uma hora e meia de carro por bosques e florestas. Acho que nunca usei essa palavra, "pacata", mas se não for para falar de uma cidadezinha arborizada, onde patos passeiam com seus patinhos num lago e perus selvagens bicam pelo acostamento, então quando?

Um dos maiores perigos para o viajante ávido por compreensão é sair velejando nas tentadoras águas do determinismo geográfico. Dizer que o sertanejo é forte como o cacto e o esquimó é frio como a neve e a mulata é quente como o meio-dia em Copacabana é a forma mais fácil de falar bobagem. Mas, diabos, como não se deslumbrar com a simples organização de um bosque ao norte de NY e não achar que aquilo ali tem a ver com A Democracia na América? Como não acreditar que, nos Estados Unidos, cada árvore tem direito à sua existência enquanto indivíduo e que se o álamo ao lado meter seus galhos no carvalho ali de trás, poderá ser processado pela comissão de bosques do condado? É tudo tão organizado. Parecem florestas planejadas. Bonitas, bucólicas, tão diferentes daquela confusão apaixonada da Mata Atlântica onde você não sabe onde termina a trepadeira e começa o mangue, e o público, o privado, as ervas daninhas e os manacás se entrelaçam numa carnuda conurbação.

* * *

Para quem cresceu no terceiro mundo, nas décadas de oitenta e noventa, viajar pelos Estados Unidos é uma espécie de déja vu. É como voltar para uma infância que vivemos por tabela. A paisagem da maioria de nossos filmes, programas de TV, livrinhos infantis, etc, etc, etc, é essa. Você olha pra fora da janela do carro e pensa "olha ali o bosque em que Eliot levou o ET. Olha ali a marmota do Bill Murray. Olha ali o capim de onde voavam os patos naquele jogo do Nintendo, Duck Hunt. Olha ali os patos do Duck Hunt!" Dezenove milhões de horas de televisão ao longo da vida imprimem no cérebro do sujeito a sensação de que esse é o mundo real. E que esses postos de gasolina, essas highways, essas concessionárias que vendem carros com os preços pintados nos parabrisas sob bandeirolas de festa junina e esse texugo atravessando a estrada são os cenários e personagens do mundo real, e que nós, pobres cucarachas, vivemos numa cópia mal-feita da Matrix, com nossos Bob's, Reedrags, Le Chevals e os gambás que mais parecem ratazanas. E aí você entende porque olha pela janela em São Paulo e vê, na varandica do apartamento no décimo andar do enorme prédio ao lado (um por andar, seis suítes, doze vagas na garagem) três pinheiros plantados no canteiro, tentando dublar nossa paisagem exuberante e subdesenvolvida. Jardins americanos: versão brasileira, Álamo! Agora vou ao supermercado, com uma cópia de A democracia na América, de Tocqueville, debaixo do braço, ver quantos tipos de cereais matinais eles vendem lá e que lições podemos tirar a respeito. Hasta luego, hermanos.

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