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Crônica, política e derivações

Do intraduzível e da literatura como versão do mundo.

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

Do intraduzível e da literatura como versão do mundo.*

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Lyslei Nascimento ** entrevista Paulo Rosenbaum ***

O romance Navalhas pendentes, de Paulo Rosenbaum, é, sobretudo, uma armadilha que, entre citações, ironias e referências intertextuais, arma e desarma a leitura. A trama põe em perspectiva a sanidade do narrador e a linearidade da história. Complô, ilusão e farsa fazem do enredo um labirinto e fazem multiplicar realidades instáveis ou fantasias existenciais de um protagonista que, aparentemente, não merece muita credibilidade. Desde o início, o leitor sabe que está pisando em solo movediço, afinal, amnésia é uma das palavras-chave que, intermitentes, funcionam como faróis precários no nevoeiro. O narrador, Homero Arp Montefiore, tal qual o seu homônimo grego, faz precipitar as certezas por um vórtice e, se Goya tinha razão e o sono/sonho da razão produz monstros, tanto um quanto o outro assombram o personagem com lâminas que se inscrevem na narrativa, como signos denunciadores.

(Lyslei Nascimento)

 

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 Foto: Estadão

Como nasceu o romance Navalhas pendentes? 1 Poderia como ele foi elaborado?

Todo clínico é um cultor de micro-histórias. Comecei a escrever Navalhas pendentes em 2013, portanto, há quase dez anos. No início, era um projeto cujo enredo estava centrado num complô editorial. Homero Montefiore, um especialista amador com algum conhecimento na área de TI, migra para o mercado editorial. Mas o que Homero sempre sonhou era ser editor. Ele frequenta o mundo das letras com a esperança de ser um editor no futuro. No início, ele se torna um avaliador de originais e fica intrigado com a polissemia das palavras. A "multi-interpretabilidade" dos vocábulos estaria, assim, ligada a uma fraude e ao mistério de um autor sobre o qual pouco se sabia: Karel F. Ele é o principal autor e best-seller da casa editorial, no entanto sua identidade é mantida sob um sigilo que fica cada vez mais suspeito. Começa a integrar a editora "Filamentos", a qual, em tempo recorde, passa a ter em sua coleção mais best-sellers do que seria razoável para uma editora mediana. Os bem articulados editores Giaccomo Gentil e sua esposa Cleo, com a cumplicidade de Diana Kaminhoá e do hábil Jean Prada, operam a editora como uma indústria muito bem-sucedida. Homero suspeita de que haja uma manipulação gigantesca do mercado por trás da usina de sucessos editoriais sequenciais. Quem é Karel F. e qual seu papel na sua peculiar eficácia literária? Este é um resumo da trama.     Quando ouvi de Adin Steinsaltz que no vocabulário innui havia mais de cem palavras para designar "neve" fiquei fascinado e curioso pela informação. O gatilho é sempre uma idiossincrasia, é sempre um modo muito peculiar que cada uma tem de interpretar o mundo. Talvez, se fosse outra palavra ou outra expressão, não teria o efeito que "neve" teve para mim. A neve, propriamente dita, sempre teve alguma sorte de efeito estranho sobre mim. Já na infância, quando morei no U.K., enquanto minha família se abrigava, eu, aflitivamente, buscava a neve. Por quê? Não tenho a menor ideia, mas não me custa racionalizar. Porém, no Dicionário judaico de lendas e tradições, de Alan Unterman,[2] que descobri décadas depois de ser acometido com esta estranha metáfora obsedante da neve, existem duas referências interessantes e inusitadas sobre o seu significado. Por exemplo, há uma crença de que "rolar na neve" pode apressar a vinda do Messias. Como nas tradições da Hagadá, o racionalismo e a intelectualidade judaica tendem a desprezar os hábitos místicos torcendo o nariz para as tradições que são características de um judaísmo simbólico, menos formal, e mais popular. Os textos agádicos estão repletos desse tipo de histórias, crenças, lendas e superstições porque o imaginário é uma representação de D'us, que se espalha pela natureza e pelos costumes, não está restrita às leis e às regras do Tanach. Isso explica o que nos leva a ser atraídos de forma tão obsessiva por um fenômeno climático? Não. As idiossincrasias são fenômenos que escapam às análises e racionalizações e é isso que as torna tão interessantes. Nossas idiossincrasias não são sinônimos de fanatismo ou doença. Significam um momento no qual os símbolos e as sensibilidades superam a racionalidade, pois Homero também tem as suas. E a maioria delas não está condicionada por sua condição clínica especial.

O que mais o inquietou nesta trajetória? Porque trata-se ao mesmo tempo de um tema policial e criminal, mas sempre requer a elucidação de enigmas, como foi forjar seu romance?

O enigma não se restringe a literatura policial ou criminal. Ricardo Piglia escreveu "narra-se um crime, ou uma viagem, e o que mais?"3  Parece que o suspense foi reduzido à prática de uma contravenção, de ilicitude, ou de histórias macabras. Mas há nuances, há um suspense filosófico, aquele que se refere a como cada um decide sobre os rumos da própria vida. Nesse caso, o crime e o romance policial apenas agudizam o suspense filosófico. É como num leilão, temos que decidir na hora de vamos licitar ou deixar passar o item cobiçado: a oportunidade pode perder-se para sempre. O personagem Homero sofre dessa perturbação e só a enorme pressão cronológica de um crime à espreita, um fato intrigante que o domina que pode forçá-lo a agir. E a poesia, assim como a literatura, é mobilizadora, fala muito do homem em ação. Afinal estamos no mundo de Atizlut o mundo da ação. O enigma vem a calhar pois ele repete a apreensão sobre o destino e o futuro. A diferença entre o oráculo grego e o profeta judeu é sempre a diferença entre o vaticínio peremptório e a possibilidade relativa. Entre a certeza do desfecho e o aviso de que poderia ser diferente. Jonas e a Baleia são exemplos desta possibilidade assim como as condicionantes de D-us para se achar pelo menos dez justos nas cidades de Sodoma e Gomorra.

Esta é uma história que propõe um enigma, como você enxerga o perfil do leitor que é atraído por este gênero de literatura? Ou você não considera ou não se preocupa com a outra ponta, vale dizer, a relação entre emissor e o receptor? Qual tipo de leitor você gostaria de ter? Como se dá esta viagem até o leitor?

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Na verdade, tento criar e escrever sem me preocupar especificamente com um público-alvo. Gostaria, obviamente, como qualquer escritor, de ser lido por mais gente. A realização, (o acomplishment) do escritor só se realiza sob a leitura e apreciação crítica de sua obra. Isso significa que escrever não pode, ou não deveria ser, um ato diletante ou autossuficiente. Mas este é um fenômeno que deve ser analisado a posteriori do ato de escrever. Primeiro, há uma ideia, depois ela se desdobra. Talvez primeiro me ocorra uma cena, como Aristóteles escreveu, "a alma pensa através de imagens". No fundo, o escritor é um admirador inconsciente da provocação que Flaubert nos fez quando anunciou que escreveria um livro sobre o nada. O enredo, a história e até mesmo o estilo (apesar da frase de Camus de que o estilo é uma prova de falta de caráter do escritor "quando não há caráter, há estilo") são truques, autoenganos, ou álibis dos escritores. Desculpas que não resistem a um exame mais atento para a necessidade de escrever. Como a maioria dos escritores tenho vários livros descartados, contos em gavetas, poesias estocadas, no celular, em cadernos e espalhadas nos hard drivers dos computadores. Muitas jamais serão recuperadas pois os hackers têm prioridades e interesses bem mais lucrativos. São obras não completamente nascidas, nunca foram vistas, apreciadas ou criticadas. Isso é deveras frustrante. Mas, ao mesmo tempo, elas precisavam ser criadas independentemente de testemunhas. O escritor precisa escrever mesmo que ninguém o leia. Não é apenas um exercício catártico, é uma forma de construir a expressão e dar vida organizada aos personagens, que jamais falariam, nunca adquiririam voz se não fosse por este trabalho. O que fazer com todo este material escrito e jamais utilizado? Não tenho ideia e, mesmo assim, eu os guardo, vai saber.

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Qual é articulação que você faz entre o enigma e a tradição judaica? Refiro-me à tradição do pensamento e do comentário que sempre esteve associada ao enigma.A tradição talmúdica por exemplo, que privilegia a pergunta em detrimento da resposta. Trata-se do exercício de um rabinato-leigo, isto é, de escritores que escrevem e propõem enigmas no lugar de respostas peremptórias e absolutas?

Ótimo ponto. Talvez, não exatamente em detrimento da resposta, mas considerando que a resposta é sempre provisória, instável e pode ser sempre acordada do "sono das certezas". A indagação é o próprio suspense. E se? Não é apenas divagar sobre dúvidas e crises existenciais sob a forma da literatura, mas de rastrear e mapear outros caminhos para chegar às respostas. Trata-se de um suspense salutar na medida que permite que se reflita sobre a pergunta. Redarguir com outra pergunta não é somente um chiste com o qual se costuma caracterizar, leia-se, estereotipar a atitude judaica, mas uma forma de extrair o criativo no lugar do previsível. E para sondar o inusitado. É o poder gerador das interpretações. Essa liberdade hermenêutica só é possível com histórias não completamente elucidadas, ou terminadas. O conceito que o Zohar nos traz do tzizumzum, a imagem da contração-expansão da Criação, nunca termina, e isto se encontra na própria constituição do Cosmos desde o Big-Bang, ou seja, lá como quisermos chamar o evento inaugural. Steinsaltz considerou que o Talmud não ensina, gera sanidade. Por quê? Suponho que seja porque nos permite conservar a fé mesmo diante das gigantescas incertezas. Ou seja, por que este seria um livro inigualável?Porque nos mostra a polissemia de todos os temas e assuntos de uma forma não dogmática, não excludente. E um exercício de tolerância com as palavras e ideias pode ser um prenuncio de compreensão -- e não da  -- entre as culturas e as pessoas. A insanidade é o oposto disso: propor a eliminação das diferenças através de uma homogeneização dos costumes.

Na sua opinião o leitor é uma espécie de coautor? Acredita que eles, leitores, possam vir com seus arquivos e acervos pessoais e ir complementando as perguntas que você propõe para ele em sua escrita?

Exatamente. Sim, pois as imagens e as sensações instigadas pelas histórias só se completam, vale dizer se complementam no interior dos receptores. O que significa que muito do que o próprio autor ignora só se revela em uma dimensão mais completa através do que o leitor capturar através de suas lentes. As idiossincrasias do leitor se encontram e se cruzam dentro das linhas dos livros. Por isso o papel do escritor é também, e principalmente, levantar insinuações que não devem ser desfechos para dar margem à liberdade que o leitor precisa para encontrar seus próprios encaixes. O escritor precisa da contração para que o leitor respire. Para que encontre um espaço propício para sua expansão. Isso também envolve uma espécie de autorrestrição para que os personagens falem através de uma linguagem que o próprio autor ainda não consegue codificar completamente. Depende dos dialetos de que quem codifica a escrita. Dar voz às várias vozes que nos habitam é um ofício que se aproxima do doloroso pois significa simultaneamente que não ocupou todos os espaços. Isso vale para as descrições dos personagens, lugares e situações. Estes espaços em branco a serem preenchidos (fill in the blanks...) funciona como um convite à interação. O vago e o inconclusivo também.

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Se sua narrativa é uma narrativa de enigma cabe perguntar: o protagonista está sempre em dúvida se houve ou não um crime, correto? Então, que personagem é este que pode ser simultaneamente um detetive e supostamente o próprio autor dos crimes que ele se dispõe a investigar? E aí temos um aspecto simbólico e ancestral: como investigar um crime se você for o autor? Como ser juiz e réu?

A ideia dos heróis acidentais sempre foi uma ocorrência quase natural nos meus livros, aconteceu em "Verdade Lançada ao Solo" com o rabino Zult Talb que apresentava crises de ausência com vislumbres proféticos e em Céu subterrâneo 4 com os insights do psicólogo brasileiro Adam Mondale. O romance A verdade lançada ao solo 5 se passa em três tempos, o primeiro, o rabino Zult (inspirado na biografia de Schner Zalman) do século XIX precisa deixar instruções para seus descendentes sobre a época sombria que se avizinha. Isso só será descoberto três gerações depois com seu tataraneto, um psiquiatra que resolve fazer uma escalada nos alpes bernenses junto com um paciente. Ali descobre o significado profundo e inesperado do conceito místico e concreto da percepção da adesão a D-us, ou Dveikut. Já em Céu subterrâneo, o psicólogo brasileiro que ganha uma bolsa de estudos para escrever um ensaio e que, por acaso (e nada pode ser acaso, portanto nunca houve um herói acidental) depara com um negativo de polaroide surpreendente e que dá origem a sua jornada em Israel. Ela revela um dos enigmas encontrados em Bereshit (Gênesis). A trama remonta ao seu homônimo Adão, o primeiro homem que segunda a tradição judaica estaria sepultado junto a Chavá embaixo de um dos cenotápios em Macpelá, na cidade de Hebron. Sua descoberta mobiliza o Estado e seus agentes policiais, pois sua arqueologia involuntária acaba colocando em risco a segurança do País. Seu crime? Ter desvelado um segredo que não pode vir a público sem enormes riscos à desestruturação da sociedade israelense.Homero também tem uma função dúbia, seria ele um criminoso ou um herói que está antecipando uma grave ameaça à liberdade de pensamento? Ou seja, repete a tradição do "médico e monstro" que transcendendo as fórmulas reducionistas, é um apenas o reflexo simbólico da natureza dividida da psique, sempre oscilante, sempre submetida às ambiguidades. Como escreveu Sá de Miranda, "não posso ficar comigo nem fugir de mim".

Quais escritores que você lê e qual é a tradição ou família literária na qual o romance "Navalhas Pendentes" se inscreve? Seria na literatura universal de Kafka, que não é policial ou criminal?

Noto que castas literárias se formaram entre nós. Castas rígidas difíceis de serem rompidas. Elas são sustentadas por poderosos agentes que sufocam as novas vozes. E há muita patrulha ideológica, e mesmo censura. Um clamor injustificável por obras políticas prescritivas e datadas. Tento me recusar a me engajar nesse papel e prosseguir sem me render ao estado constrito da arte. Na verdade, não me identifico com quase nenhum dos escritores brasileiros atuais e não saberia dizer ao certo a qual filiação literária pertenço. Houve uma época que gostava das poesias do Jorge de Lima e de alguns romances de Machado de Assis. Com o tempo talvez tenha perdido alguns elos de identificação com estes autores. Não é o mesmo quando se trata da literatura latino-americana já que Jorge Luis Borges ainda me diz muito. Na poesia, as traduções para o português de Yehuda Amichai ainda trazem ideias e inspirações, assim como as obras de Willian Blake, Baudelaire, Rimbaud, Stephen Crane, Paul Celan. Ainda releio ocasionalmente Kafka, Isaac Bashevis Singer, Thomas Mann, James Joyce, Philip Roth e Paul Auster, e sempre que posso sempre retorno aos livros de Milan Kundera. Os livros do crítico Harold Bloom, dicionários de todos os tipos como American Heritage e o Thesaurus, assim como clássicos da filosofia, da história da medicina e da ciência também são textos que costumo manter por perto.

* Publicado na Revista Arquivo Maaravi  Vol. 16 Número 31.  2022. (Editoras Lyslei Nascimento UFMG e Susana Skura UBA.)

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**Professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Núcleo de Estudos Judaicos e bolsista do CNPq.

***Médico, escritor e Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo.

1 ROSENBAUM, Paulo. Navalhas pendentes. Belo Horizonte: Caravana, 2021.

2 UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Tradução: Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

3 PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Barcelona: Anagrama, 2001.

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4 ROSENBAUM, Paulo. Céu subterrâneo. São Paulo: Perspectiva, 2016.

5 ROSENBAUM, Paulo. A verdade lançada ao solo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

 

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