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Crônica, política e derivações

Qual é a duração de uma vela?  

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

Qual é a duração de uma vela?

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Meu avô, sobrevivente da Shoah, costumava citar uma estrofe, depois repetida pelo meu pai. Ambos afirmavam que o mundo só conheceria a grande paz se e quando uma velha profecia tivesse lugar: "quando todos forem culpados ou todos forem inocentes". Para além da metáfora, sabemos quão inverossímil soa a hipótese. Mas é fundamental buscar algum sentido nas palavras, mesmo quando elas soam estranhas ou aparentam ser um conjunto de argumentos nonsense.

O significado está possivelmente em aceitar a imperfeição. Em saber que temos que agir num mundo defectivo que estará sempre inacabado. Significa atuar hoje, no presente, como a única possibilidade empírica de interferir na realidade. Para tanto, é preciso aceitar que a luta mais árdua é contra o mundo das idealizações. Parece um contrassenso, mas pensem bem. A expectativa da perfeição é irreal.Um planeta impecável é, na linguagem dos hindus, o grande maia. Uma ilusão. E a ilusão pode significar doença e sofrimento mental. A moléstia costuma ludibriar a percepção humana com a promessa de que somente a perfeição é aceitável. Mas estamos muito longe de qualquer perspectiva de viver em um mundo idílico. Ainda hoje aprendi com um grande amigo português judeu-cristão, o NV, que precisamos do desafio e que a oscilação precisa ser compreendida como um êxito.

Por isso mesmo talvez tenhamos sido pedagogicamente expulsos pelo Altíssimo da inércia de um jardim paradisíaco. Um terreno onde mais nada precisava ser feito. Foi preciso aprender a viver do que é perecível. Em meio às oscilações e incertezas. Não, isso não é perder a esperança. É redimensioná-la. Isto é, até atingir a grande paz, teremos que conviver e aceitar pequenas tréguas, armistícios oscilantes, pacificações parciais, avanços mínimos, justiça em solavancos, além de assimetrias e fragmentos de bem-estar em meio a um mar de desconforto.

Isso dito, hoje deveria ser um dia especial, uma infindável vela acesa pelo Yom Ha Shoah, (o dia das vítimas do holocausto) para lembrar os 6.250 milhões de judeus assassinados pelo regime nazista (250 mil após a derrota oficial do III Reich), mas eis que a lembrança do holocausto foi obnubilada pelos sufocantes novos momentos de perseguição e ataques contra os judeus dentro e fora do Oriente Médio.

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Dos campi universitários em New York às multidões londrinas cantando com naturalidade slogans de extermínio. Gente comum ostentando símbolos abertamente favoráveis aos grupos jihadistas, organizações que sabidamente pregam o extermínio. Não é exatamente neonazismo, ainda que a intolerância e o racismo rivalizem com o partido que nasceu de rufiões bêbados nos bares de Munique.

Há muitas evidências de que tais multidões não nasceram "orgânicas". Fazem parte de um movimento global, generalizado, orquestrado e financiados por Estados e organizações ricas. Só isso já revelaria uma rotunda falência do propósito acadêmico de desenvolvimento da capacidade de interlocução e equidade. Mas além disso há um agravante, tudo ocorre sob o pano de fundo da disputa pelo poder entre as grandes potências. É uma reinação mascarada com nova plumagem para um vício recorrente. O que prova a paupérrima criatividade dos homens. Testemunhamos o renascimento de uma novíssima onda de intolerância, onde a nação judaica, mais uma vez, é eleita para ser falsa e escandalosamente culpabilizada pelos males do mundo.

A esperança para os judeus talvez esteja num longínquo despertar dos outros povos para um outro tipo de consciência. Alteridade que ainda não apareceu. Sabemos que será um despertar parcial, em doses minúsculas. Com sorte, teremos aproximações sucessivas. Até que os consensos do mundo não sejam forjados pela adulteração grosseira das ideias. E que aqueles que apostam na intolerância sejam derrotados por suas próprias contradições. Ainda assim, nunca haverá uma resolução completa.

Já chegamos a conclusão de que a função pedagógica das guerras é limitada. Prevenimos os motivos que as desencadeiam? Como evitar o desperdício de vidas inocentes?E separar aqueles que usam tais vidas para exaltar suas agendas daqueles que tem obrigação moral de se defender dos massacres de rotina?

A verdade é que o conceito de legitima defesa parece ter pouca aplicabilidade quando se trata de Israel. Mas, e aí esta um dos problemas, a legitima defesa não serve apenas para interromper o agressor, mas é fundamental impedir a recorrência da agressão. Eis um princípio universal do direito que, assim como as medidas antirracistas, tem sido apenas seletivamente aplicada em relação aos judeus e ao seu único Estado. Ainda que não haja nada pleno, ab ovo usque ad mala, da cabeça aos pés, de alto a baixo, de um extremo a outro, é essencial frisar que Israel sabe de suas imperfeições. Aceita-as exatamente por compreender a natureza imperfeita do mundo. Os slogans "nunca mais" e o recente "nunca mais é agora" deveriam ser substituídos por "nem ousem tentar novamente". Não se trata de uma ameaça. É apenas um grito coletivo de almas que entenderam que basta.

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O que nem Israel nem os judeus do mundo estão dispostos a aceitar doravante é o retorno de um gênero de tratamento que há oito décadas foi conduzido com uma semi perfeição maligna, pavimentando a extinção de metade da população judaica do mundo.

E é isso que deve ser perfeitamente compreendido pelo mundo. Qualquer tentativa de repetir o malfeito será imperfeitamente rechaçada. Em tempo, a duração de uma vela equivale ao tempo de uma lágrima atravessar a memória.

Não ousem, porque jamais esqueceremos.

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