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Crônica, política e derivações

Resenha do livro Ires y Venires: escrituras migrantes latinoamericanas judías" por Filipe Amaral Rocha de Menezes*

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Por Paulo Rosenbaum

SENKMAN, Leonardo. Ires y venires: escrituras migrantes latinoamericanas judías. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Equidistancias, 2023. 304p.

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Resenha de Filipe Amaral Rocha de Menezes*

Escrituras latino-americanas em galut

Escritores com suas trajetórias migratórias, impressões, saudades e lembranças, estão reunidos nessa singular antologia organizada por Leonardo Senkman. A vida e os deslocamentos de autores e obras imprimiriam nos textos uma inflexão de migritud que, segundo o organizador, é um neologismo cunhado para uma "espécie de circuito circulatório e onipresente simultâneo de seus escritos." Essa marca imprime, nos múltiplos testemunhos reunidos, o espírito e a voz migrante diaspóricos que "evocam a terra natal, glorificam a língua materna e sonham com a terra prometida."

A coletânea Ires y venires é dividida em cinco seções de importantes reflexões sobre partida, retorno, transmigração, exílio, diáspora, língua materna, peregrinação à terra prometida e peregrinação às cidades sagradas. Em sua maioria, os textos foram originalmente publicados entre 1987 e 2011 na revista Noaj, fundada por Senkman em parceria com Florinda F. Goldberg. Os trinta e um textos selecionados compartilham indagações sobre a movimentação humana, transnacional e transcultural, em estilos que mesclam o ensaio autobiográfico e a narração literária.

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Esses ensaios encerram uma variedade de tramas, testemunhos, além da hibridez de estilos, entre a prosa e a poesia. Nascido em Paraná, Argentina, e radicado em Israel desde 1984, Senkman é Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. Escritor e ensaísta, dedica-se, em diversas publicações, à literatura, à identidade judaica e à luta pelos direitos humanos, além de um combate incansável contra os múltiplos fascismos, ainda na ordem do dia.

Essa antologia reúne textos testemunhais de escritores latino-americanos que viveram distintos dramas pessoais nas décadas de 1960 e 1970 e dá voz a exilados, expatriados, repatriados e emigrantes. Alguns foram fugitivos que optaram por não regressar durante a transição democrática. Expatriados que decidiram ficar no estrangeiro embora quisessem regressar ou emigrantes que se tornaram naturalizados com direito de residência ou cidadania. Outros são estrangeiros que regressaram, mas deixaram novamente o seu país de origem.

Há histórias de quem emigrou ou transmigrou das democracias recuperadas por razões socioeconômicas, além de conhecer a cultura de outros países. Há, também, relatos sobre líricas peregrinações a cidades sagradas e/ou a Terra Prometida de seus ancestrais, onde hoje se instalou a nação israelense, nova pátria de alguns desses narradores.

Os autores são jornalistas, professores, poetas, médicos, ensaístas, dramaturgos, tradutores, psicanalistas, antropólogos: Gabriela Avigur-Rotem, Sergio Chejfec, Alicia Dujovne Ortiz, Luisa Futoransky, Juan Gelman, Gerardo Mario Goloboff, Carla Isaak, David Keidar, Arnoldo Liberman, Pedro Isaac Gdansky Orgambide, Luis Porter, Reina Roffé, Susana Romano Sued, Mario Satz, Elías Schebacovsky, Saúl Sosnowski, Alberto Szpunberg, David Boris Viñas Porter, Ismael Viñas e Pablo Urbanyi; Roberto Brodsky e Ana Vásquez Bronfman; Angelina Muñiz-Huberman e Esther Seligson; e Isaac Goldemberg, Teresa Porzecanski, Liliana Lara. São, em sua maioria, argentinos, mas há chilenos, mexicanos, brasileiros, além de peruanos, venezuelanos e uruguaios. Entre eles, um húngaro que adotou a Argentina como sua nova terra.

Dois escritores brasileiros estão presentes nessa antologia: Moacir Amâncio e Paulo Rosenbaum. Moacir Amâncio é jornalista, ensaísta, poeta, e professor de língua e literatura hebraica na Universidade de São Paulo, cidade onde, após muitas andanças, voltou a residir.

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Entre várias chegadas e partidas, estadas longas e curtas, durante sua atuação como jornalista, pôde experimentar muitas culturas, porém, como relata em seu texto, é a língua espanhola que sempre o fascinou, quando, na infância, estabeleceu seus primeiros contatos com o estrangeiro, por meio de emissoras de rádio de ondas curtas, em transmissões no idioma de Lorca, Góngora e Quevedo, vindas de longe nos programas da Rádio Pekin, ou em emissoras espanholas e argentinas. Suas experiências idiomáticas continuam quando precisa recorrer ao inglês e ao hebraico, inicialmente para dar conta de sua atuação profissional, porém, é com o espanhol que inicia seus primeiros passos na poesia. Seu ensaio-homenagem às línguas estrangeiras com as quais se relaciona, "Sobre las hablas, el habla", foi publicado na revista Noaj, em 2011, em português, sendo traduzido para o espanhol para compor essa nova publicação.

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Paulo Rosenbaum é escritor, ensaísta e médico, é também doutor em ciências pela Universidade de São Paulo. Seu texto, "Outro galut", foi especialmente preparado para a publicação em 2023. Nele, o autor imprime frescor e atualidade à coletânea, além de compartilhar uma contundente experiência pessoal em meio aos tempos difíceis e epidêmicos da contemporaneidade. A palavra "galut", do título, vem do hebraico e significa "exílio", "diáspora". O vocábulo se refere às comunidades judaicas espalhadas pelo mundo, fora de Israel, e dá o tom do texto.

O sentimento de deslocamento, no entanto, não se encontra unicamente na diáspora geográfica, mas se constitui como um sentimento interior, a partir da experiência do passamento do pai do autor em decorrência da pandemia. Morte e vida se imbricam nessa narrativa ao rememorar a história familiar, remontando os trágicos acontecimentos que antecedem a partir da avó paterna da Europa em direção a uma nova vida no Brasil.

Não menos trágica é a história do avô paterno que, tendo emigrado da Polônia anos antes do estabelecimento do gueto de Varsóvia exatamente na rua onde vivia com sua família, foi o único de sua família a sobreviver a Shoah. O ensaio-depoimento de Rosenbaum entrelaça emocionantes histórias de sobrevivência, em meio a um mundo marcado pela violência, pelo antissemitismo, pelo ódio.

As memórias fluem com elegância nas demais partes do ensaio, passando por anedotas de sua infância, principalmente sobre livros, e são entremeadas à busca de pertencimento e de identificação com grupos sociais, dentro e fora dos círculos judaicos.

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A história dos pais do escritor torna-se, em vários momentos, uma história sombria sobre tempos sombrios também vividos pelos brasileiros nos anos de chumbo da ditadura militar, quando, parte deles, foi "descartada" por, talvez, ter "ideias subversivas", ou ser considerada uma "biblioteca suspeita". Mas é na parte em que conta a história do exílio familiar e da perda do irmão mais novo que o leitor é mais impactado, quando o sentimento de desconforto e deslocamento do autor, ante a perda inesperada de uma criança, se torna uma força propulsora da narrativa de um exílio interior, reflexivo, quase hermético.

A parte final, o último diálogo com o pai doente, fecha o texto, e talvez o narrador, em sua última galut, pessoal, interior, poética.

Emocionantes relatos pessoais da migritud se encadeiam nessa coletânea e representam, liricamente, uma parcela significativa da produção literária e ensaística de autores judeus latino-americanos. Por meio dessas contribuições valiosas, Ires y venires pode ser lido como uma produção intelectual que extrapola questões pertinentes apenas aos judeus, mas são iminentemente inscritas na história das ideias, na condição diaspórica do homem, num mundo cada vez mais fragmentado, no entanto, interconectado, e em tempo real. Assim, essa coletânea organizada por Leonardo Senkman pertence ao grupo dos textos referenciais, indispensáveis a pesquisadores, estudiosos e interessados tanto no tema do exílio, quanto na noção de identidade, judaica e latino-americana, na experiência íntima e, ao mesmo tempo, coletiva da condição migratória que, judaica, interpenetra compartilhada por toda humanidade.

*Publicado também no Arquivo Maaravi, V 17 n. 33 (2023) "As escritoras no arquivo da tradição judaica". Lyslei Nascimento (UFMG) e Karla Petel (UFRJ) ORGs.

**Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) | Belo Horizonte, Brasil filipearm@ufmg.br

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