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Por dentro da rede

Opinião|Sistema da Apple contra abuso infantil pede análise cuidadosa

Mesmo com promessas de uso adequado, parece um abuso que, unilateralmente, alguém se meta a espionar o que enviamos

Atualização:
Algumas tecnologias de segurança nãocaem muito longe de se implantarem câmaras em todas as casas com a finalidade de monitorarmoradores Foto: Tingshu Wang/Reuters - 9/7/2021

A enxurrada de informações a que estamos submetidos muitas vezes nos rouba a clareza necessária para avaliar não apenas a importância de determinada medida, mas também seus possíveis efeitos colaterais. Aliás, até parece proposital que temas importantes de debate sejam enfraquecidos por meio do desvio de foco para assuntos subsidiários.

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Veja-se como exemplo a discussão sobre a existência  de “viés” no uso de inteligência artificial em dispositivos equipados para reconhecimento de imagens. É muito razoável assumir que, nos conjuntos de dados usados para a montagem de um sistema de reconhecimento automático de indivíduos, existam significativos desequilíbrios quanto à homogênea e equitativa participação de amostras das diferentes etnias a culturas.

Mas seria esse o ponto principal de discussão? Se faltam amostras de determinada etnia, o sistema deveria captar imagens adicionais para resolver essa carência? Ou, e até com a nova LGPD, luta-se exatamente no sentido de diminuir a sanha de captura de dados e imagens nossas na rede? A ordem de discussão que parece prioritária seria, antes, debater a validade das intromissões que existem ao se procurar identificar automaticamente cada pessoa com base em sua imagem previamente armazenada.

Se a conclusão for de que, sim, é útil e traz benefícios que sejam identificados em cada ambiente em que nos encontramos pelas onipresentes câmaras, daí deveríamos buscar que essa aplicação tenha alcance global e atinja a todos igualmente. Se a decisão for, porém, em sentido contrário quanto ao uso da identificação de imagem automática obrigatória, parece contrassenso buscar expandir a todos algo que foi considerado não benéfico ou abusivo. Ou seja, não haveria por que corrigir qualquer viés aqui...

Ainda no mesmo tema, a decisão recente da Apple de, sob o argumento eventualmente honesto de combate à pornografia infantil, passar a examinar todas as fotos que usuários guardam na nuvem deve ser examinada de forma muito cuidadosa. Argumenta-se que um dos problemas técnicos que poderiam ocorrer são os “falsos positivos”, dado que a base de fotos que seria usada como parâmetro já possui cerca de 20% de incorreções. Mas valeria a pena lutar para limpar essas imperfeições da base (o viés), de forma a eliminar os “falsos positivos”? Ou o sistema em si, seja ele falho ou perfeito, já representa uma intromissão indevida em nossa privacidade?

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Isso não cai muito longe de se implantarem câmaras em todas as casas com a finalidade de monitorar comportamentos adequados ou não de seus moradores! Os detalhes técnicos sobre possíveis ou prováveis vieses e erros de detecção não podem obliterar o que deveria ser o fulcro de discussão sobre a principal característica do sistema, que é buscar acesso direto ao conteúdo do que enviamos, colocando-nos como suspeitos em potencial. Mesmo com todas as promessas de uso adequado e não vazamentos de dados parece um abuso que, unilateralmente, alguém se meta a espionar o que enviamos.

Essa possível intromissão remete ao sempre citado 1984, onde está postulado que “se alguém quer manter um segredo, deve escondê-lo até a si mesmo”. Afinal, a “polícia do pensamento” estará sempre atenta para detectar os que praticam “crimes de pensamento” e puni-los adequadamente...

Antes de se discutirem os detalhes técnicos de “como” algo deveria ser feito, parece importante que se avalie se aquilo deveria mesmo ser feito ou se os riscos e abusos que poderia acarretar a direitos fundamentais bastariam para que a proposta seja banida.

*É ENGENHEIRO ELÉTRICO

Opinião por Demi Getschko
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