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Historiadora fala de 15 de novembro: ‘Liberdade era mais importante que a República para os negros’

Lucimar Felisberto dos Santos argumenta que questão republicana era restrita a pequenos grupos na virada do século 19 para o 20

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Por Gonçalo Junior
Atualização:
Foto: Luana Felisberto de Souza
Entrevista com Lucimar Felisberto dos SantosHistoriadora

O sonho de substituir a monarquia mobilizava entusiastas da República em 1889, mas uma parcela importante da população - os negros - tinha participação limitada nesse movimento. Segundo a historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), isso ocorria porque esse grupo tinha urgências maiores naquele período, como a luta pela própria liberdade, o que dava caráter mais elitista às reivindicações republicanas.

“A questão da liberdade era uma questão social. Isso não significa que não existissem negros envolvidos com a questão (da Proclamação da República, celebrada neste 15 de novembro). Há muitos literatos que são reconhecidos por isso”, afirma ela, em referência a Silva Jardim, Quintino Lacerda e Anacleto de Freitas. “Mas a população geral não estava voltada com a Proclamação da República, mas sim com a questão da libertação”, diz.

A historiadora Lucimar Felisberto dos Santos, doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Foto: Luana Felisberto de Souza

A abolição veio no ano anterior, 1888, em um processo lento que precisou superar diversos obstáculos. E essa busca não terminou com a assinatura da Lei Áurea, uma vez que a inserção social dos ex-escravizados foi negligenciada pelo Estado brasileiro, umas das raízes da desigualdade racial que ainda existe hoje.

Em seu novo livro, Entre a escravidão e a liberdade: africanos e crioulos nos tempos da Abolição, a pesquisadora traz outra perspectiva. Ela mostra que os negros já tinham atuação expressiva no mercado de trabalho assalariado: muitas vezes eram eles os responsáveis por ensinar o ofício a outros trabalhadores.

O problema é que esse modelo não envolvia oferta em larga escala nem igualdade de oportunidades formativas. “Não foi oferecida nenhuma oportunidade de alfabetização para capacitação da mão de obra. Todas as conquistas (dos negros) foram individuais, frutos do autodidatismo.”

Confira alguns trechos da entrevista:

Como foi a participação da população negra na Proclamação da República?

Temos duas questões principais a partir de 1870. Em relação ao governo, aos parlamentares brasileiros e à classe senhorial, a questão republicana era uma bandeira levantada por um grupo pequeno. A manutenção da escravidão fazia com que muitos fazendeiros fossem favoráveis à monarquia. Do ponto de vista dos escravizados, a questão da liberdade era uma questão social. Isso não significa que não existissem negros envolvidos com a questão. Existem muitos literatos que são reconhecidos por isso. Mas, a população geral não estava voltada com a Proclamação da República, mas sim com a questão da liberdade. Vasculhei muito a documentação, procurei muito sobre as expectativas dos escravos e dos libertos em relação a esse momento político e a questão da liberdade era o que estava no horizonte.

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A proclamação mudou a vida cotidiana dos negros?

Em termos práticos, não há evidências nas fontes históricas dessa mudança. Não há registros nem sobre a circulação da notícia sobre a Proclamação da República. O mesmo aconteceu com a abolição da escravatura. Em algumas fazendas, as pessoas ainda não sabiam.

Abolicionismo e republicanismo caminhavam juntos?

Às vezes, as lutas se cruzavam, mas o movimento que levava a bandeira do abolicionismo sempre foi mais consistente. A luta das classes menos favorecidas era pela abolição. Trabalhadores braçais escravizados não realizavam um movimento político em prol da República. O movimento republicano em 1880 não tinha a mesma força do movimento abolicionista. Mas eles caminham juntos.

Nesse contexto de libertação, como foi a inserção dos trabalhadores libertos e livres no mercado de trabalho?

A hipótese da minha tese, que virou um livro, é que eles já estavam inseridos. É importante lembrar a figura dos escravizados ao ganho, que exerciam as mesmas atividades dos trabalhadores brancos, estrangeiros ou não, compartilhavam áreas e postos de trabalho no Rio de Janeiro. Outros autores comprovam isso em Salvador. Eles tinham um ganho financeiro e atuavam em todo tipo de trabalho. Desde o século XVIII, já existiam registros de trabalhadores que dividiam postos de trabalho qualificados. No século XIX, é possível comprovar que eles já eram ganhadores econômicos. Com isso, não faz sentido pensar na inserção dos escravizados no mercado de trabalho. Eles já estavam inseridos. Eles foram formadores, tanto quanto os trabalhadores brancos, estrangeiros e brancos.

O volume aborda a contribuição do negro para o mercado de trabalho assalariado na virada do século 19 para o 20 Foto: Reprodução Editora Ramalho

Como assim?

Trabalhadores escravizados, libertos e livres, independentemente de sua cor, atuaram na formação do mercado de trabalho assalariado. Existe certa desqualificação da mão de obra escrava quando se pensa na impossibilidade ou incapacidade de sua atuação com outros atores no mercado de trabalho.

Quais eram os principais ofícios dos negros?

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Eram carregadores que transportavam as mercadorias dos portos, quitandeiras, chapeleiros, sapateiros e também faziam todo o serviço artesanal de produzir mesas, cadeiras... Eles trabalhavam nas oficinas que antecederam as fábricas. Também faziam todo o tipo de trabalho fabril do século XIX.

Como superaram o preconceito e a discriminação na hora do trabalho?

Existe o compartilhamento de experiências de trabalho, o que suaviza as relações raciais. Brancos e negros podiam fazer a mesma função. O problema é quando o negro vai deixar de fazer aquilo e vai ser chefe. A tensão do ambiente de trabalho vem da competição.

Quais os impactos da República e da contribuição dos escravizados na formação do mercado de trabalho, eventos do final dos anos 1800, sobre a população negra atual?

Essa memória reduz a capacidade de qualificação do trabalhador negro. A quantidade de pessoas nos guetos, nas periferias e na base de pirâmide econômica é resultado dessa narrativa de que houve problemas na capacitação da mão de obra negra no fim da escravização. Não foi oferecida nenhuma oportunidade de alfabetização para capacitação da mão de obra. Todas as conquistas foram individuais, frutos do autodidatismo.

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Serviço

Entre a escravidão e a liberdade: africanos e crioulos nos tempos da Abolição

Autora: Lucimar Felisberto dos Santos

Editora Ramalho

476 páginas; R$ 59,00

Veja outros títulos sobre a participação do negro na história do Brasil:

Proletários escravos: universos e paisagens do Rio de Janeiro Oitocentista

Autores: Carlos Eduardo Moreira de Araújo e Lucimar Felisberto dos Santos; Marcelo Mac (Cord.); Flávio dos Santos Gomes (Org.)

Editora Companhia das Letras

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192 páginas; R$ 54,00

Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação

Autores: Maria Helena. P.T; Luciana Cruz Brito; Iamara Silva; Flávio dos Santos (org.).

Editora Unesp

R$ 94,00

Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista

Autora: Ana Flávia Magalhães Pinto

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Editora: Unicamp

376 páginas; R$ 44,00

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Rede de Historiadorxs Negrxs e a plataforma Afrodiálogos

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