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Opinião|Sociedade exige da IA uma transparência que ela mesmo não pratica

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Atualização:
Sam Altman, CEO da OpenAI, líder global no desenvolvimento da inteligência artificial, no Fórum Econômico Mundial - Foto: reprodução

Muito além do aquecido debate sobre legislações que organizem o uso da inteligência artificial, começa a se formar um consenso sobre alguns valores em torno dessa tecnologia, como uso e desenvolvimento responsáveis, decisões rastreáveis e dois conceitos que se confundem e são pouco conhecidos: transparência e explicabilidade. Todos são essenciais para que os impactos da IA sejam positivos. Mas a sociedade está exigindo algo dessas plataformas que ela mesma não pratica.

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Se fizermos uma autoanálise, perceberemos que conscientemente não somos transparentes em muitas coisas de nosso cotidiano, assim como tampouco são empresas e instituições. Como exemplo, uma das maiores falhas das redes sociais, que levou à insana polarização da sociedade e a problemas de saúde mental de seus usuários, é a completa falta de transparência das decisões de seus algoritmos.

Diante disso, alguns especialistas afirmam que exigir esse nível de responsabilidade e transparência das plataformas de IA é um exagero e até, de certa forma, hipocrisia.

Talvez... Mas o fato de cultivarmos esses maus hábitos não pode ser usado para desestimular a busca desses objetivos nessa tecnologia com potencial de ofuscar a transformação que as redes sociais fizeram, que, por sua vez, deixou pequena as mudanças promovidas pela mídia tradicional anteriormente.

Se não tomarmos as devidas precauções, a inteligência artificial pode causar graves consequências para a humanidade pelas ações de grupos que buscam o poder de forma inconsequente. Por isso, ela precisa ser organizada para florescer como uma tecnologia que ampliará nossas capacidades criativas e de produção.

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Sem esses pilares éticos, sequer confiaremos no que a IA nos disser, e então tudo irá por água abaixo.


Veja esse artigo em vídeo:


No momento, as plataformas de inteligência artificial funcionam como caixas pretas: colocamos nossos dados e fazemos nossos pedidos de um lado, e nos deslumbramos com os resultados do outro, sem saber como aquela "mágica" foi feita. Apenas quem está dentro das big techs que produzem esses sistemas sabe como aquilo funciona, mas até eles se surpreendem com alguns resultados das suas criaturas, como quando desenvolvem sozinhas habilidades para as quais não foram programadas.

Quando se cria algo que promove profundas mudanças na sociedade, mas não se conhecem seu funcionamento e objetivos, isso pode colocar em risco a própria democracia, não porque exista algo maquiavélico na sua confecção, mas justamente por esse desconhecimento. Não é à toa que legislações para a inteligência artificial ao redor do mundo, com o brasileiro Projeto de Lei 2338/23 e a europeia Lei da Inteligência Artificial, tentem definir rastreabilidade, transparência e explicabilidade.

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A rastreabilidade é a capacidade de identificar e acompanhar as ações de um sistema de IA, saber quais dados foram usados para treiná-lo e seus algoritmos, manter registros sobre como chegou a uma determinada decisão e qual foi seu impacto. Isso permite que suas escolhas sejam auditadas e que vieses sejam corrigidos.

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Já a transparência se refere às pessoas poderem ser capazes de entender como o sistema de IA funciona, quais dados ele usa e como ele toma decisões. Isso visa garantir que ele seja usado de forma justa e ética, aumentando sua aceitação pública.

Por fim, a explicabilidade se traduz na capacidade de um ser humano compreender as razões complexas pelas quais um sistema de IA toma uma determinada decisão, que fatores contribuíram e como foram ponderados. Ela é importante para identificar erros, prever resultados e garantir a conformidade com padrões éticos e legais.

Se não é fácil entender, mais difícil ainda é entregar esses valores. Os algoritmos mais eficientes são justamente os mais complexos, e uma simples documentação pode não ser suficiente. Ainda assim, o desafio dessa conformidade permanece.

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Temos que entender

Como exemplo da importância de se entender essas plataformas, podemos pensar na exigência do artigo 20 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que determina que o cidadão pode "solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses". Mas como ele fará isso se nem compreende como a decisão foi tomada? Da mesma forma, como a empresa revisará a decisão, se tampouco a compreende?

Considerando que a IA estará cada vez mais presente e determinante em nossas vidas, sua compreensão deve ser ensinada até nas escolas, desde a infância, de maneira crescente. Não quer dizer que todos precisem dominar plenamente seu funcionamento: apenas o suficiente para suas necessidades. Fazendo uma comparação com um carro, existe sobre ele os conhecimentos de um projetista, de um mecânico, de um motorista e de um passageiro. E todos usam o carro à sua maneira!

Ao contrário do que alguns dizem, a exigência de que plataformas de inteligência artificial sigam esses preceitos éticos não pode ser visto como ameaça ao seu desenvolvimento e inovação. Pelo contrário, são condições que devem integrar sua própria concepção. A população precisa disso para confiar na inteligência artificial, ou, passada essa fase inicial de deslumbramento, ela poderá deixar de ser considerada como a incrível ferramenta de produtividade que é.

Entendo que as dificuldades para isso sejam imensas. Sei também que nós mesmos não somos transparentes em nosso cotidiano, como já disse. Mas nada disso pode servir como desculpa para se esquivar dessa tarefa. Tampouco é hipocrisia exigir que os desenvolvedores se esmerem para cumprir essas determinações.

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Não podemos incorrer no mesmo erro cometido com as redes sociais, que até hoje atuam de maneira inconsequente e sem responsabilidade pelos eventuais efeitos muito nocivos de suas ações. A inteligência artificial já está transformando a sociedade de maneira determinante.

Seríamos inocentes se acreditássemos que essas empresas se autorregularão: seus interesses sempre falarão mais alto nesse caso. Precisamos de regulamentações claras, não para coibir o progresso, mas para dar um norte de bons princípios, para que a inteligência artificial beneficie a todos, e não apenas grupos tecnocratas.

 

Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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