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Opinião|Temos que tomar cuidado com essa história de "brincar de deus"

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Bella Baxter (Emma Stone), que faz uma jornada de autoconhecimento e libertação no filme "Pobres Criaturas" - Foto: reprodução

Apesar do título, esse não é um artigo religioso. Tampouco pretendo fazer uma crítica de cinema. Mas não posso deixar de falar sobre o filme "Pobres Criaturas", que assisti nessa segunda. Muito mais que diversão, ele me trouxe algumas reflexões bem ligadas à nossa realidade (e à tecnologia em que estamos imersos até o pescoço), apesar de se tratar de uma fantasia com um quê de comédia, ambientada em um século XIX modificado.

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Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, o filme do diretor grego Yorgos Lanthimos é o segundo em indicações para o Oscar desse ano: 11, atrás apenas de "Oppenheimer". Ele conta a história de Bella Baxter, vivida magistralmente por Emma Stone, uma mulher adulta que tem seu cérebro trocado pelo de um bebê, a despeito de tudo de errado que isso poderia provocar.

O responsável pelo experimento é o cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe), tão brilhante quanto perturbado, que lembra um pouco o doutor Frankenstein. Seu nome é sugestivo para alguém que afirma explicitamente bancar deus com suas intervenções cirúrgicas nada ortodoxas. Por conta disso, Bella começa o filme se comportando como uma criança, mas evolui rapidamente, não apenas na linguagem e na coordenação motora, como também no conhecimento do próprio corpo e do mundo, fazendo da obra uma campeã de público e de crítica.

Ainda impactado pelo roteiro, não pude deixar de relacionar os resultados das ações de Godwin com o que se tem visto no efeito transformador da inteligência artificial em nossas vidas. Em pouco mais de um ano de ChatGPT, ela evoluiu (e continua evoluindo) assustadoramente. E assim como Bella, desperta deslumbramento e um temor por não se saber até onde pode ir, com seus movimentos inesperados.

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Fiquei pensando na busca pelas big techs da chamada Inteligência Artificial Geral, aquela que permitirá que um sistema deixe de realizar apenas tarefas específicas e passe a se comportar como o cérebro humano, combinando o que souber em qualquer área para atingir seu objetivo, e ainda dotada de iniciativa.

Não estaríamos também "brincando de deus"?

Em tarefas específicas, as atuais inteligências artificiais superam os seres humanos, pela sua brutal capacidade de processamento, sua base de informações quase infinita e seus sensores que vão além de nossos sentidos. O que acontecerá quando criarmos algo com todas essas capacidades, mas sem suas limitações? Teremos criado um "humano mais que os humanos"?

Bella, pela sua origem, se desenvolve de maneira bastante "peculiar", mas com um caminho que se pode chamar de positivo. Felizmente para ela e para o mundo, não seguiu pelo do monstro de Frankenstein. Mas nem Godwin poderia garantir o sucesso de sua criação.

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O que sairá da inteligência artificial geral: uma Bella Baxter ou uma criatura de Frankenstein? O que mais me preocupa é ninguém saber responder essa pergunta ao certo. Na terça, Sam Altman, CEO da OpenAI e "pai" do ChatGPT, declarou na Cúpula Mundial de Governos, que acontecia em Dubai, que não está tranquilo sobre a tecnologia pela qual se notabilizou.

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Mesmo sendo uma das pessoas em posição mais privilegiada no mundo sobre o tema, Altman fez um apelo para que seja criado um órgão internacional como a Agência Internacional de Energia Atômica, para supervisionar essa tecnologia, que estaria avançando mais rápido do que o mundo espera.

"Não estou muito preocupado com robôs assassinos andando pelas ruas e que podem dar errado", disse o executivo. "Estou muito mais preocupado nos desalinhamentos sociais muito sutis de termos esses sistemas na sociedade e, sem nenhuma má intenção específica, as coisas darem terrivelmente errado."

Mais interessante ainda foi sua declaração de que essa regulamentação não deve ficar nas mãos das empresas do setor. E faz todo sentido: afinal, "a raposa não deve tomar conta do galinheiro".

A inteligência artificial é um caminho sem volta e certamente bem-vindo. Mesmo engatinhando, ela já trouxe avanços interessantes em muitos setores no ano passado. Em 2024, ela certamente começará a andar e, pelo seu ritmo, a correr. Alguns pesquisadores dizem que, apesar disso, nunca chegaremos à inteligência artificial geral. Talvez! Mas se ela vier ao mundo, que evolua como Bella. Ou ainda melhor!

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Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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