‘Mataram ele praticamente na minha frente’; parentes de vítimas relatam violência policial na Bahia

Mortes pela polícia no Estado atingiram patamar recorde e, em números absolutos, passaram a liderar o ranking entre os Estados. Famílias pedem justiça para os casos

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Por Fernanda Santana

Todos os dias, João Miguel, de 2 anos, pergunta à mãe pelo pai, Givanildo Lino. A criança não consegue entender a ausência dele, mas nem ela consegue explicá-la. “Não tenho forças para responder”, desabafa Maira Pinheiro, de 32. O marceneiro, com quem ela teve três filhos, foi morto no dia 11 de março deste ano em Portão, bairro da cidade de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. A família dele culpa a Polícia Militar baiana pela morte.

A Bahia tem a polícia que mais mata no Brasil em números absolutos, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Desde 2015, a polícia carioca era apontada como a mais letal do país. Mas, no ano passado, 1.464 pessoas (três vezes a mais do que há oito anos) foram mortas em intervenções militares na Bahia, que assumiu o topo da lista.

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Quase seis meses depois da morte do marido, Maira permanece sem respostas, como o filho João. “Não tivemos acesso nem ao resultado do exame balístico que foi realizado (pela Polícia Civil)”, diz a operadora de caixa do supermercado. Givanildo morreu na frente da marcenaria onde trabalhava, durante uma ação policial. Ele e Maira estavam a cinco dias de comemorar 11 anos de casados e o primeiro aniversário do filho mais novo.

O marceneiro saía do trabalho, por volta das 14h de um sábado, quando policiais militares o abordaram. A família e a comunidade afirmam que ele foi confundido com um criminoso e, por isso, morto por policiais sem oferecer resistência.

Na mochila de Givanildo, estavam materiais de trabalho, como uma furadeira. As marcas dos tiros daquela tarde continuam na parede da marcenaria, hoje administrada pelo sócio do alagoano que se mudou para a Bahia em 2009.

Na mochila de Givanildo, estavam materiais de trabalho, como uma furadeira. As marcas dos tiros daquela tarde continuam na parede da marcenaria Foto: Acervo pessoal

A PM da Bahia afirmou que realizava rondas no bairro de Portão, quando avistaram homens armados que começaram a disparar contra os agentes. A corporação declara que só quando a troca de tiros terminou, os policiais encontraram Givanildo caído. Ele foi levado ao Hospital Geral Menandro de Faria, mas não resistiu aos ferimentos.

“Todos os dias vivo um déjà vu de sofrimento. Hoje, não tenho a pessoa que me aguardava chegar do trabalho, que me fazia chamadas de vídeo para me mostrar as crianças”, lamenta a viúva, que agora cria os filhos com ajuda de familiares, como a irmã e o cunhado.

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A Polícia Civil (PC) finalizou o inquérito sobre a morte de Givanildo e encaminhou o documento ao Ministério Público da Bahia (MPBA) em julho, com os depoimentos de doze pessoas e os laudos periciais. O órgão, no entanto, solicitou novas investigações relacionadas à apuração do caso na Corregedoria da PM.

As histórias de mortos em ações policiais se avolumam. Só em julho deste ano, 64 pessoas morreram durante operações desse tipo, conforme o Instituto Fogo Cruzado, que monitora a violência armada em Salvador.

Criança foi baleada quando brincava em calçada

Uma das mortes registradas em julho aconteceu no mesmo bairro onde Givanildo morreu. Gabriel Costa tinha 10 anos e brincava na calçada de casa há menos de cinco minutos quando entrou na sala da residência aos gritos - tinha sido baleada no pescoço. A mãe e o pai dele, por medo e luto, se mudaram para a casa de um familiar em outro bairro, e culpam policiais pela morte do menino que sonhava em ser jogador de futebol.

A criança foi atingida por um tiro por volta das 16h do dia 23 de julho. Ele havia pedido à mãe para brincar na calçada com amigos, depois de ter sido proibido por ela de andar de bicicleta na vizinhança. A mãe, por tentativa de proteção, não queria que o filho fosse longe.

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Segundo a família, entre a saída de Gabriel e o retorno já ensanguentado, não houve troca de tiros de policiais com criminosos, mas um tiroteio iniciado por policiais.

Já a Polícia Militar alega que a 52ª Companhia Independente se deparou “com um indivíduo em atitude suspeita que, diante da aproximação das guarnições, iniciou disparos”. Um deles atingiu a criança, que morreu no Hospital Geral do Estado, depois de sofrer uma parada cardíaca.

“Existem inconsistências entre as versões apresentadas pelos policiais e as demais provas produzidas até então. Em razão das contradições, outros procedimentos investigatórios ainda devem ser realizados”, defende Frederico Loureiro, advogado da família Costa no caso.

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Os três policiais militares envolvidos na ação que provocou a morte da criança foram afastados do trabalho nas ruas. Um laudo de balística é realizado para descobrir quem disparou o tiro que matou Gabriel, mas a PC solicitou, na última terça-feira, 22, prorrogação para o término da apuração do caso.

‘Polícia roubando vidas, sonhos’

A morte da criança revoltou Silvana dos Santos, 43, que soube da notícia em um telejornal baiano. Desde então, ela não assiste à televisão de casa, na Gamboa, em Salvador. “Até isso, ver televisão, eles estão privando a gente. Tudo que passa é polícia roubando vidas, sonhos”, desabafa a mulher, que também teve um filho morto em uma operação policial. Ver o desespero da mãe daquela criança na tela foi como se despir à frente do espelho.

Silvana aponta que Alexandre, o segundo dos seus oito filhos, vendedor de roupas e entregador, foi assassinado por policiais na madrugada de 1º de março de 2022. Foto: Acervo pessoal

Silvana convive com crises de ansiedade e episódios depressivos desde a perda de Alexandre dos Santos, aos 20 anos. A morte do filho a despertou para a luta contra a letalidade policial, que já conhecia. A comadre dela também enterrou um filho morto em uma operação policial em Salvador.

“Hoje eu luto por mim e por outras mães. Antes eu via muitas sofrerem, mas não entendia como era. Eles estão matando inocentes e mesmo que peguem vagabundos, eles podem tirar a vida? A obrigação é prender, não matar”, revolta-se a garçonete.

Na versão de Silvana, Alexandre, o segundo dos seus oito filhos, vendedor de roupas e entregador, foi assassinado por policiais na madrugada de 1º de março de 2022. Alexandre estava com Patrick Sapucaia e Cleverson Guimarães, também mortos naquele dia.

Ainda de acordo com ela, os três foram levados por policiais do bar onde estavam para uma casa abandonada da comunidade, projetada sobre a Baía de Todos-os-Santos. Lá, foram alvejados.

Minutos antes da morte do filho, Silvana ouviu barulho de tiros. Saiu para a varanda de casa, mas não localizou a origem dos disparos. Quando desbloqueou o celular, viu a mensagem de uma amiga na tela: “Corre que a polícia pegou Léo (apelido de Alexandre)”.

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Saiu de casa atordoada e chegou a tempo de ouvir, pela última vez, a voz do filho dentro do imóvel. “Me apresentei aos policiais, disse que era mãe de um dos rapazes. E eu disse: ‘vão matar meu filho’. E praticamente mataram ele na minha frente mesmo. Nem tiveram pena.”

A PM afirma que, como nos casos que provocaram as mortes de Gabriel e Givanildo, foi recebida a tiros por criminosos na Gamboa e revidou. Os quatro policiais envolvidos na situação são investigados pelos crimes de homicídio e fraude processual.

O MP da Bahia não respondeu à reportagem sobre o andamento do procedimento. O órgão coordena o Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública, que exerce funções de controle externo da atividade policial.

“É sempre assim, matam e é ‘troca de tiros”, contesta Silvana, que ainda mora na Gamboa, com cinco filhos. Ao acordar, entre 4h e 5h, ela passa nos dois quartos onde eles dormem para checar se estão bem. Sempre lembra de Alexandre nesse momento. O jovem havia voltado a morar lá quatro meses antes de morrer, após se separar da esposa, e dividia quarto com a mãe. “O lugar dele está vazio. Mas busco forças nele: eu não posso parar”.

Secretaria vê queda no semestre e cita violência contra policiais

Procurada pelo Estadão para comentar os índices de letalidade na Bahia, a SSP informou esta semana que “o número de mortes por intervenção policial apresenta declínio” no Estado. Segundo a pasta, “no primeiro semestre de 2023 foram registrados 5,8% casos a menos que no mesmo período de 2022″.

A SSP também apontou para um alto índice de violência cometida contra policiais. “Nos últimos dois anos e meio, cerca de 200 viaturas foram atingidas por disparos de arma de fogo durante ações ostensivas de combate ao crime organizado. Cento e oito policiais militares acabaram feridos após ataques dessas organizações criminosas, o que salienta o clima de beligerância entre facções”, declarou a secretaria.

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