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Opinião|Por que gostamos de assistir a lutas e o que isso tem a ver com os nossos neurônios?

O prazer, ou a necessidade primitiva de lutarmos (herdada de nossos ancestrais), é saciada parcialmente pelo simples ato de observar

Foto do author Fernando Reinach

Uma boa parte da humanidade gosta de assistir a outros seres humanos lutando. É isso que explica a popularidade de campeonatos de boxe e MMA e o fato de muitas outras formas de lutas terem se tornados esportes olímpicos, como o judô e lutas greco-romanas. No passado distante, brigas entre indivíduos faziam parte de nossa rotina social e eram importantes para nossa sobrevivência. Por esse motivo, aprender a lutar era uma necessidade. E uma forma de aprender é observando outros lutarem. Do ponto de vista da biologia evolutiva, essa é a explicação para estádios lotados de pessoas que querem ver o sangue correr.

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Mas como esse prazer se origina em nosso cérebro? Nosso cérebro tem áreas dedicadas à visão, outras responsáveis pela memória, outras que controlam sentimentos. Mas agora foram descobertos os neurônios responsáveis pela nossa agressividade e pelo prazer que sentimos em observar outras pessoas lutando. E o interessante é que esses são neurônios espelho. Vou explicar.

Em muitas regiões do cérebro existem neurônios que são ativados por estímulos específicos. Em 1981, o prêmio Nobel foi dado a dois cientistas que fizeram essa descoberta, Torsten Wiesel e David Hubel. Eles implantaram eletrodos capazes de captar o sinal emitido por neurônios individuais numa área do cérebro onde os sinais que vêm da retina são processados.

Usando essa técnica, eles descobriram que existem neurônios que são ativados somente quando o macaco vê uma lista vertical, outros quando a imagem se move, quando a imagem está parada e assim por diante. Hoje sabemos que nosso cérebro integra os sinais de todos esses neurônios, o que nos permite concluir, por exemplo, que estamos vendo uma zebra correndo na nossa frente. Esse esquema existe em outras regiões do cérebro. São neurônios que respondem ao frio, ao calor, a cheiros e até a situações mais complexas, como excitação sexual.

Algumas décadas mais tarde, cientistas descobriram que alguns desses neurônios tinham uma resposta ainda mais sofisticada. Em macacos, na área do cérebro que controla os movimentos do braço, existem neurônios que estão ativados quando o macaco pega um objeto. Até aí nada de novo. Mas eles observaram que parte desses neurônios, além de ser ativada durante o ato (pegar a banana), também está ativada quando o macaco observa um outro macaco pegando uma banana sem executar o ato.

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Veja bem, é uma célula no cérebro do macaco que é ativada durante a ação do macaco e também quando o macaco observava a mesma ação em outro macaco. Esses neurônios foram chamados de neurônios espelho e sua função exata ainda não é bem conhecida. Eles podem estar envolvidos no aprendizado por observação (permite copiar o comportamento) ou na compreensão do que está acontecendo com o outro animal.

Mas o que tudo isso tem a ver com nosso prazer de ver lutas?

A novidade é que os cientistas descobriram uma área no cérebro dos camundongos onde se localizam os neurônios que estão ativados quando camundongos machos brigam entre si. E camundongos brigam por território, por bens materiais (comida) ou por fêmeas, razões pelas quais seres humanos também se envolvem em brigas. Essa região está localizada no hipotálamo. Os neurônios dessa área do cérebro não estão ativados em grande parte do tempo. E se um macho nunca se envolver numa disputa com outro macho, eles podem passar inativos durante toda a vida do animal. Mas quando o animal se envolve numa briga, eles estão muito ativos.

Além disso, quando esses neurônios são ativados artificialmente, a agressividade do macho aumenta muito e eles chegam a brigar com a própria imagem num espelho, o que não acontece em condições normais. Agora, se esses neurônios são inibidos ou destruídos, o animal fica pacífico e covarde, não se envolvendo em brigas mesmo quando provocado. Esses resultados indicam que esses neurônios estão envolvidos no sistema que liga, desliga, e modula a agressividade.

Para nosso cérebro, observar uma luta é quase como participar dela. Foto: Ricardo Moraes/Reuters

Prazer

Num passo seguinte, os cientistas resolveram investigar se existiam neurônios espelho nessa região. Eles descobriram que existem neurônios que estão ativos somente quando o animal está lutando. Outros neurônios estão ativos quando o animal está brigando ou quando ele observa outros animais brigando (são os neurônios espelho). E um terceiro grupo de neurônios só é ativado quando os animais observam uma luta. A presença desses três tipos de neurônios no centro que controla e modula a agressividade demonstra que simplesmente observar uma luta ativa grande parte dos neurônios envolvidos na luta propriamente dita.

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Caso o sistema seja semelhante em seres humanos, num ringue de boxe, os dois lutadores estão com os três tipos de neurônios ativados, enquanto que todos na plateia, ou na frente da TV, estariam com dois dos três tipos de neurônios ativados. Ou seja, o cérebro da audiência está agindo e respondendo de uma maneira muito parecida com o cérebro dos lutadores propriamente ditos.

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Portanto, para nosso cérebro, observar uma luta é quase como participar dela. Não é à toa que nesses campeonatos observamos um alto nível de agressividade entre os espectadores, que expressam sua agressividade de maneira clara e inequívoca. O prazer, ou a necessidade primitiva de lutarmos (herdada de nossos ancestrais), é saciada parcialmente pelo simples ato de observar. Por isso observar lutas é tão popular. Observar é quase como vivenciar.

É possível que mecanismos semelhantes, onde ver quase equivale a viver uma experiência, existam no nosso cérebro em outros contextos. Um possível exemplo é a pornografia, onde seres humanos obtêm prazer no simples ato de olhar. Essa descoberta abre muitos caminhos para explicarmos, do ponto de vista neuronal, as emoções que sentimos lendo livros ou vendo filmes.

Mais informações: Hypothalamic neurons that mirror aggression. Cell 2023

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

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