Que o vírus da zika está presente no organismo de mães e bebês nascidos com microcefalia e outras má-formações congênitas do sistema nervoso não é mais novidade. O vírus já foi identificado "na cena do crime" por dezenas de testemunhas nos últimos meses. Também já é sabido, por meio de análises do seu material genético, que o ZIKV (como é chamado pelo cientistas) é muito parecido com o vírus da dengue (ou DENV). Mas até agora não se tinha um bom "retrato falado" do meliante, por assim dizer.
Cientistas da Universidade Purdue e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos fizeram melhor do que isso: Bombardearam partículas congeladas do ZIKV com feixes de elétrons de alta energia (uma técnica chamada de microscopia crioeletrônica) e produziram um retrato 3D do vírus, inédito, que pesquisadores do mundo inteiro agora poderão usar para estudar como ele funciona e procurar brechas em sua armadura.
Conhecer a estrutura de um vírus é extremamente importante para entender melhor suas características e seu funcionamento, pois a maneira como as moléculas estão organizadas em sua superfície tem relação direta com a sua capacidade de invadir células e se esconder do sistema imunológico dos hospedeiros. As informações genômicas são, também, extremamente importantes, mas sem conhecer a estrutura que resulta delas é como tentar entender o funcionamento de um carro só pelo manual de instruções. Juntando, agora, o genoma com a estrutura molecular, os cientistas estão muito melhor equipados para destrinchar seu inimigo.
O retrato produzido pelos pesquisadores confirma que o vírus da zika é muito semelhante ao da dengue, da febre amarela e outros vírus da sua família (os chamados flavivírus). A pergunta de 1 milhão de dólares que todo mundo ainda quer responder é: O que o ZIKV tem de diferente, permitindo que ele ultrapasse a barreira placentária e se aloje no sistema nervoso central dos fetos -- algo que não é observado com os outros flavivírus?
Os autores do trabalho identificaram uma diferença que pode ser a chave para solucionar esse mistério: uma pequena variação estrutural na ponta das glicoproteínas que se projetam da carapaça do vírus (os pontos vermelhos na "foto" do vírus, acima). Essas são as estruturas que o vírus usa para se acoplar às células que pretende invadir. Pode-se pensar nelas como chaves que se encaixam em determinadas fechaduras das membranas celulares, abrindo as portas para a infecção.
Se a chave do ZIKV tem um formato diferente das chaves dos outros flavivírus, isso pode ser a explicação para sua capacidade de abrir alguma fechadura específica das células dos sistema nervoso central. E se for este o caso, esta chave passa a ser um alvo importante de pesquisa para o desenvolvimento de vacinas e outras formas de intervenção -- seja no sentido de bloquear a capacidade do vírus de infectar as células ou de torná-lo mais visível e mais vulnerável aos sistemas de defesa do organismo.
Conhecer o seu inimigo é o primeiro passo para derrotá-lo.
O trabalho saiu na edição desta semana da revista Science: http://science.sciencemag.org/content/early/2016/03/30/science.aaf5316
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