EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Opinião|‘Hormônio do amor’ não funciona do jeito que imaginávamos; entenda o que aponta nova pesquisa

Experimento pôs abaixo a teoria de que a oxitocina e seu receptor seriam suficientes para explicar o comportamento amoroso em animais

PUBLICIDADE

Foto do author Fernando Reinach
Atualização:

Você pode contar nos dedos o número de mamíferos que formam pares amorosos parecidos com os formados por seres humanos. Um deles é o rato das pradarias (Microtus ochrogaster), um pequeno roedor que vive nos campos no centro da América do Norte. Esses animais formam casais estáveis que convivem por toda a vida. Eles gostam de ficar juntinhos, colaboram na criação dos filhotes, e os membros do casal dificilmente trocam de parceiros durante a vida. Além disso, adotam facilmente filhotes de outros casais. Como nenhum outro mamífero demonstra esse tipo de comportamento, que se assemelha muito ao dos seres humanos, esses simpáticos ratinhos têm sido o modelo animal preferido dos cientistas para estudar os mecanismos do que chamamos de amor.

A oxitocina talvez continue a ser o hormônio do amor nos próximos anos, mas sem dúvida o amor é um fenômeno muito mais complicado do que imaginávamos  Foto: REUTERS/Akhtar Soomro

Esses estudos mostraram que um hormônio chamado oxitocina é parte importante nesse comportamento, e levou muitas pessoas a chamar a oxitocina de hormônio do amor. Muitos de nós já tivemos contato com a oxitocina, ela é usada com frequência durante o parto para induzir ou acelerar as contrações uterinas. A oxitocina também é importante para a liberação do leite materno depois do parto. Ela é produzida no hipotálamo e liberada pela glândula pituitária no cérebro. Ela também é liberada durante o ato sexual em seres humanos e aumenta a empatia entre pessoas, diminuindo a agressividade.

Esses animais formam casais estáveis que convivem por toda a vida. Eles gostam de ficar juntinhos, colaboram na criação dos filhotes, e os membros do casal dificilmente trocam de parceiros durante a vida Foto: Science direct

PUBLICIDADE

A oxitocina age no corpo ao se ligar a um receptor. Esse receptor está presente no útero e nas glândulas mamárias durante a gravidez, mas também está presente em diversas regiões do cérebro. Nos experimentos em que os cientistas tentam manipular os níveis de oxitocina no corpo, isso é feito administrando o hormônio ou bloqueando o receptor. Em espécies semelhantes a do rato da pradaria, mas sem esse comportamento amoroso, a quantidade de receptores é muito menor. E nos ratos da pradaria, se você bloquear o receptor com uma droga, eles perdem esse comportamento e deixam de cuidar dos filhos. Eles tampouco produzem leite após o parto. Esses e muitos outros experimentos indicam que a oxitocina, ao se ligar a seu receptor, é responsável por grande parte do comportamento social e afetivo desses animais.

Mas em ciência, muitas vezes um único experimento pode destruir toda uma explicação e forçar uma revisão de teorias construídas ao longo de décadas. Foi o que aconteceu essa semana com a oxitocina.

Até agora, os estudos do sistema oxitocina e seu receptor podiam ser feitos de duas maneiras: ou você alterava para mais ou para menos o nível de oxitocina no corpo, ou você bloqueava o receptor de oxitocina com uma droga que se ligava ao receptor e impedia a ligação da oxitocina. E foi assim que a história do hormônio do amor se desenvolveu. Faz algum tempo surgiu a oportunidade de produzir uma linhagem de ratos da pradaria que não possuíssem o receptor para oxitocina.

Publicidade

Usando técnicas modernas de alteração genética, os cientistas foram capazes de produzir esses animais e eles realmente não possuem, em nenhum lugar do corpo, os receptores para oxitocina. Os cientistas esperavam que esses animais se comportassem como se não tivessem oxitocina no corpo, pois a oxitocina presente não teria como exercer sua função sem a presença dos receptores. Eles deveriam ficar menos amorosos, talvez infiéis, e com dificuldades no parto e na lactação. Mas, para espanto geral, os ratos da pradaria sem receptores continuam amorosos, permanecem em pares, dão a luz normalmente e cuidam dos filhotes como os animais que possuem os receptores. A única diferença é que as mães produzem menos leite e os filhotes não crescem tão rápido e não atingem o mesmo peso.

Esse simples experimento pôs abaixo a teoria de que a oxitocina e seu receptor seriam suficientes para explicar o comportamento amoroso desses animais. Claramente a história é muito mais complicada, talvez existam outros mecanismos que dão suporte para esses comportamentos, ou outros receptores ainda desconhecidos que podem fazer o papel do receptor que foi eliminado.

Lendo o trabalho é divertido observar como os cientistas encaram a descoberta e como ela está forçando os cientistas a rever seus conceitos sobre o papel da oxitocina no comportamento social desses animais e dos seres humanos. A oxitocina talvez continue a ser o hormônio do amor nos próximos anos, mas sem dúvida o amor é um fenômeno muito mais complicado do que imaginávamos. E isso não deveria ser novidade para qualquer pessoa que já se apaixonou.

Mais informações: Oxytocin receptor is not required for social attachment in prairie voles. Neuron https://doi.org/10.1016/j.neuron.2022.12.011 2023

É biólogo

Publicidade

Opinião por Fernando Reinach

Biólogo, PHD em Biologia Celular e Molecular pela Cornell University e autor de "A Chegada do Novo Coronavírus no Brasil"; "Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito"; e "A Longa Marcha dos Grilos Canibais"

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.