Onde o cérebro guarda cada tipo de memória?

Uma nova pesquisa descobriu que o cérebro guarda as memórias úteis para generalizações futuras em um lugar diferente daquelas que registram eventos incomuns

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Por Saugat Bolakhe
O sistema cerebral para armazenar memórias baseia-se, em parte, na utilidade que uma experiência pode ter como guia para eventos futuros Foto: Kristina Armitage/Quanta Magazine

A memória não representa um único mistério científico: representa muitos deles. Neurocientistas e psicólogos descobriram que vários tipos de memória coexistem em nosso cérebro: memórias episódicas de experiências passadas, memórias semânticas de fatos, memórias de curto e longo prazo e muito mais. Essas memórias muitas vezes têm características diferentes e até parecem se localizar em partes diferentes do cérebro. Mas nunca ficou claro qual característica de uma memória determina como ou por que ela é classificada de certa maneira.

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Agora, uma nova teoria apoiada por experiências que utilizam redes neurais artificiais propõe que o cérebro talvez ordene memórias avaliando a probabilidade de serem úteis como guias no futuro. O estudo sugere, em particular, que muitas memórias de coisas previsíveis, desde fatos a experiências recorrentes e úteis – como o que comemos no café da manhã ou o caminho para o trabalho – são guardadas no neocórtex, onde podem contribuir para generalizações sobre o mundo.

Memórias com menor probabilidade de serem úteis – como o sabor da bebida especial que você tomou naquela festa – são guardadas no banco de memória em forma de cavalo-marinho chamado hipocampo. Separar ativamente as memórias dessa forma, com base na sua utilidade e generalização, pode otimizar a confiabilidade das memórias para nos ajudar a enfrentar situações novas.

Os autores da nova teoria – os neurocientistas Weinan Sun e James Fitzgerald, do Janelia Research Campus do Howard Hughes Medical Institute, Andrew Saxe, da University College London, e seus colegas – a descreveram em artigo recente na Nature Neuroscience. Ela atualiza e expande a ideia bem estabelecida de que o cérebro tem dois sistemas de aprendizagem interligados e complementares: o hipocampo, que codifica rapidamente novas informações, e o neocórtex, que gradualmente as integra para armazenamento a longo prazo.

James McClelland, neurocientista cognitivo da Universidade de Stanford que foi pioneiro na ideia de sistemas de aprendizagem complementares na memória, mas não fez parte do novo estudo, observou que este “aborda aspectos da generalização” que seu grupo não havia pensado quando propôs a teoria em meados dos anos 1990.

Três dos co-autores do novo estudo – (a partir da esquerda) os neurocientistas Nelson Spruston, Weinan Sun e James Fitzgerald – no Janelia Research Campus. Foto: Megan Zipperer/HHMI Janelia Research Campus

Os cientistas sabem que a formação da memória é um processo de vários estágios pelo menos desde o início da década de 1950, em parte graças a estudos sobre o paciente Henry Molaison – por décadas conhecido na literatura científica apenas como H.M. Como ele sofria de convulsões incontroláveis originadas no hipocampo, os cirurgiões o trataram removendo a maior parte dessa estrutura cerebral.

Depois disso, o paciente parecia bastante normal em muitos aspectos: seu vocabulário estava intacto; ele tinha memórias de infância e se lembrava de outros detalhes de sua vida antes da cirurgia. Mas sempre se esquecia da enfermeira que cuidava dele. Durante a década em que cuidou dele, ela teve de se apresentar novamente toda manhã. Ele havia perdido completamente a capacidade de criar novas memórias de longo prazo.

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Os sintomas de Molaison ajudaram os cientistas a descobrir que novas memórias se formavam primeiro no hipocampo e depois eram gradualmente transferidas para o neocórtex. Por um tempo, presumiu-se que isso acontecia com todas as memórias persistentes. No entanto, quando os pesquisadores começaram a ver um número crescente de exemplos de memórias que continuavam dependentes do hipocampo a longo prazo, ficou claro que tinha mais alguma coisa acontecendo.

Para compreender a razão por trás dessa anomalia, os autores do novo artigo recorreram às redes neurais artificiais, uma vez que a função de milhões de neurônios entrelaçados no cérebro é incompreensivelmente complicada. Essas redes são “uma idealização aproximada dos neurônios biológicos”, mas são muito mais simples do que as redes reais, disse Saxe.

Assim como os neurônios vivos, elas têm camadas de nós que recebem dados, os processam e depois fornecem saídas ponderadas para outras camadas da rede. Assim como os neurônios influenciam uns aos outros através de suas sinapses, os nós das redes neurais artificiais ajustam seus níveis de atividade com base nas entradas de outros nós.

A equipe conectou três redes neurais com funções diferentes para desenvolver uma estrutura computacional que chamaram de modelo professor-caderno-aluno. A rede professor representava o ambiente em que um organismo poderia se encontrar e fornecia informações sobre experiência. A rede caderno representava o hipocampo, codificando rapidamente todos os detalhes de cada experiência proporcionada pelo professor.

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A rede aluno treinava com os padrões do professor, consultando o que estava registrado no caderno. “O objetivo do modelo é encontrar neurônios – nós – e aprender conexões [descrevendo] como elas poderiam regenerar seu padrão de atividade”, disse Fitzgerald.

As repetições de memórias da rede caderno treinaram a rede aluno em um padrão geral por meio da correção de erros. Mas os pesquisadores também notaram uma exceção à regra: se a rede aluno fosse treinada com muitas memórias imprevisíveis – sinais ruidosos que se desviavam muito do resto – isso degradava a capacidade de a rede aluno aprender o padrão generalizado.

Do ponto de vista lógico, “faz muito sentido”, disse Sun. Imagine receber pacotes em casa, explicou ele: se o pacote contém algo útil para o futuro, “como canecas e pratos”, parece razoável trazê-lo para dentro e guardá-lo permanentemente. Mas, se a embalagem contém uma fantasia de Homem-Aranha para o Halloween ou um folheto de promoção, não há necessidade de bagunçar a casa com ela. Esses itens podem ser armazenados em um lugar diferente ou jogados fora.

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O estudo fornece uma convergência interessante entre os sistemas utilizados na inteligência artificial e aqueles empregados na modelagem do cérebro. É um exemplo em que “a teoria desses sistemas artificiais deu algumas novas ideias conceituais para pensar sobre as memórias no cérebro”, disse Saxe.

Andrew Saxe, da University College London, co-autor do novo estudo, observa que o seu trabalho é um exemplo de um conceito baseado em redes neurais artificiais que fornece informações sobre como funcionam os cérebros vivos Foto: Elizaveta Fouksman

Existem paralelos, por exemplo, com o funcionamento dos sistemas computadorizados de reconhecimento facial. Eles podem começar solicitando que os usuários carreguem imagens de alta definição de si mesmos de diferentes ângulos. As conexões dentro da rede neural podem montar uma concepção geral da aparência do rosto de diferentes ângulos e com diferentes expressões.

Mas, se acontecer de você enviar uma foto “contendo o rosto do seu amigo, o sistema não vai ser capaz de identificar um mapeamento facial previsível entre os dois”, disse Fitzgerald. Isso prejudica a generalização e deixa o sistema menos preciso no reconhecimento da face normal.

Essas imagens ativam neurônios de entrada específicos e a atividade flui pela rede, ajustando os pesos das conexões. Com mais imagens, o modelo ajusta ainda mais os pesos das conexões entre os nós para minimizar erros de saída.

Mas o simples fato de uma experiência ser incomum e não se enquadrar em uma generalização não significa que ela deva ser descartada e esquecida. Pelo contrário, pode ser de vital importância relembrar experiências excepcionais. Parece ser por isso que o cérebro classifica suas memórias em diferentes categorias que são armazenadas separadamente, sendo o neocórtex utilizado para generalizações fiáveis e o hipocampo para exceções.

Esse tipo de pesquisa aumenta a consciência sobre a “falibilidade da memória humana”, disse McClelland. A memória é um recurso finito e a biologia teve de fazer o melhor uso dos recursos limitados. Mesmo o hipocampo não contém um registro perfeito de experiências.

Cada vez que uma experiência é relembrada, há mudanças nos pesos de conexão da rede, fazendo com que os elementos da memória fiquem mais ponderados. Isso levanta questões sobre as circunstâncias sob as quais “os depoimentos de testemunhas oculares [poderiam] ser protegidos de preconceitos e da influência de seguidas rodadas de perguntas”, disse ele.

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O modelo também pode oferecer insights sobre questões mais fundamentais. “Como construímos conhecimento confiável e tomamos decisões informadas?”, disse James Antony, neurocientista da California Polytechnic State University que não esteve envolvido no estudo. Isso mostra a importância de avaliar memórias para fazer previsões confiáveis: muitos dados ruidosos ou informações não confiáveis podem ser tão inadequados para treinar humanos quanto para treinar modelos de IA. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em The Usefulness of a Memory Guides Where the Brain Saves It

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