Por que projeto aprovado sobre pesquisas clínicas com humanos divide opiniões? Entenda

Senado aprovou texto, que segue agora para sanção do presidente Lula. Mudanças opõem especialistas e indústria farmacêutica

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Por Roberta Jansen
Atualização:

O Senado aprovou nesta terça-feira, 23, o projeto de lei que estabelece regras para pesquisas com seres humanos e trata do controle das boas práticas clínicas por meio dos comitês de ética em pesquisa (CEPs) já existentes. Após mais de sete anos de tramitação no Congresso Nacional, o PL 6007/2023 foi analisado em regime de urgência e segue para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A legislação aprovada dividiu a opinião de especialistas. Para os apoiadores, a lei garantirá a ampliação da pesquisa clínica no País, que é incipiente justamente pela falta de regras. Para os críticos, trata-se de um retrocesso voltado a atender os interesses da indústria farmacêutica. Até hoje o Brasil não tinha uma legislação sobre o assunto, apenas resoluções.

Novo projeto de lei regulamenta pesquisa clínica com seres humanos no País Foto: Werther Santana/Estadão

De acordo com dados da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), em 2022 foram realizados no Brasil apenas 2% de todos os estudos clínicos feitos no mundo – colocando o País na 20ª posição no ranking global.

  • Para a Interfarma, a aprovação do PL é um passo essencial para o Brasil se tornar referência na realização de estudos clínicos, “ao estabelecer um ambiente legal e regulatório estável e seguro”. Pelas contas da Interfarma, o País pode atrair investimentos estimados em R$ 3 bilhões por ano.

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“O Brasil reúne diversas características importantes para ser protagonista na realização de estudos clínicos de novos medicamentos e terapias”, afirmou o presidente-executivo da Interfarma, Renato Porto.

“O País se destaca por sua diversidade étnica, custo competitivo e robustez do ecossistema de saúde, com boa regulação sanitária. Além disso, os pesquisadores brasileiros têm nível elevado de competência em pesquisa clínica e são reconhecidos mundialmente. O que faltava era regulamentar a pesquisa com seres humanos.”

Em nove capítulos, a nova legislação detalha exigências éticas e científicas para a realização de pesquisas clínicas, instâncias e revisão ética (representadas pelos CEPs), proteção dos voluntários, responsabilidade de pesquisadores e patrocinadores, entre outros temas.

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Além disso, cria regras para fabricação, uso, importação e exportação de bens e produtos para esse tipo de pesquisa. Também estão previstas regras para o armazenamento e a utilização de dados e de material biológico humano.

  • “Esse PL causa enormes prejuízos para a sociedade, é um retrocesso civilizatório”, afirmou a presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, Elda Coelho, que considera que a nova lei afrouxa as regras existentes. “As farmacêuticas querem rapidez nas pesquisas e, para isso, querem acabar com o controle social e não gastar dinheiro.”

O pesquisador Salmo Raskin, especialista em genética que trabalha com doenças raras, tenta chegar a um meio termo.

“Vejo pontos positivos na lei”, afirmou. “É uma tentativa de ampliar a pesquisa clínica no País, isso é positivo. De alguma maneira, está se normatizando o setor, está tudo colocado no papel, de maneira mais transparente. Vale lembrar que 80% do que está nessa lei já é feito, porém por meio de um acordo tácito de ética, então é positivo ter uma lei que foi discutida democraticamente por quase dez anos.”

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Um outro ponto citado como positivo por Raskin é a previsibilidade do tempo de aprovação dos estudos.

“Isso sempre foi uma dor de cabeça para os pesquisadores, saber quanto tempo vai demorar até ter um parecer”, afirmou. “Agora está determinado que são menos de 30 dias úteis. Isso vai agilizar o processo.”

Um ponto polêmico da lei diz respeito a limitar em cinco anos o prazo para os participantes das pesquisas receberem gratuitamente o novo medicamento testado após o fim do estudo. Atualmente, quem participa de um estudo de novo remédio que se revela eficaz tem a garantia de receber de graça o produto pelo resto da vida.

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“A princípio esse pode parecer um ponto justo. A pessoa participa do processo e tem como recompensa receber o remédio gratuitamente pelo resto da vida”, pondera Raskin. “Porém, este é precisamente o ponto que mais tem espantado a indústria farmacêutica de fazer testes no Brasil. O que acontece é que, no caso de doenças raras, por exemplo, você acaba ficando sem mercado para vender o novo remédio porque boa parte dos doentes vão participar do estudo.”

Em tese, cinco anos é tempo suficiente para que o novo medicamento seja incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e distribuído gratuitamente. Mas e se esse processo levar mais tempo? E se o SUS decidir não incorporar o remédio?

“Esse é um ponto duvidoso”, disse Raskin. “O que esses pacientes vão fazer depois de cinco anos?”

Com a lei, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passa a ter um prazo de 90 dias úteis para analisar petições primárias de ensaios clínicos com seres humanos para fins de registro sanitário de produto sob investigação. O PL também cria o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos, que será regulamentado pelo Executivo.

Outro ponto problemático, segundo o pesquisador, será determinar quem vai integrar esse sistema nacional. Seria importante, segundo ele, garantir que seja uma instância técnica, não permeável a problemas políticos e/ou ideológicos.

Coordenador do Fórum de Ciências Humanas, Frederico Garcia Fernandes diz ainda que a nova lei não fez a devida separação entre as pesquisas médicas com seres humanos e as pesquisas da área de humanas que contam com a participação de pessoas. Aplicar as mesmas regras para as duas é um desastre, segundo Fernandes.

“Para nós, essa lei é um grande retrocesso”, afirmou.

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“Tenho certeza de que a lei vai trazer benefícios, mas precisamos ver se haverá também malefícios e qual dos dois vai prevalecer”, resumiu Salmo Raskin.

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