A memória da guerra em um joystick

Novo videogame sobre a Guerra Civil Espanhola coloca em questão as formas de preservação da história e de suas tragédias

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Se no Brasil tudo acaba em pizza, na Espanha, ou se pega em armas ou se faz um pacto político exemplar, como o de Moncloa. Até por isso, no ranking do desenvolvimento humano, a Espanha ocupa, atualmente, a 13ª colocação e o Brasil, a 70ª. Para chegar aonde chegaram, os espanhóis padeceram uma guerra civil, que durou três anos, sacrificou 300 mil vidas, e resultou numa ditadura fascista, com 38 anos de duração. Nossa prometida guerra civil, a Revolução de 1930, não chegou, felizmente, a completar um mês de escaramuças, mas também desembocou, com sete anos de atraso, numa ditadura fascista. A fratricida guerra dos espanhóis, ao contrário do levante comandado por Getúlio Vargas, sensibilizou e mobilizou meio mundo, condenou 400 mil pessoas ao exílio, prendeu outras tantas, e inspirou centenas de livros, filmes, peças e obras de arte. Trauma nacional, com prazo de validade permanente, o conflito que opôs republicanos e monarquistas não desencarna do noticiário. Ora é um novo ensaio histórico, ora um romance evocativo, como Soldados de Salamina (de Javier Cercas) e A Sombra do Vento (de Carlos Ruiz Zafron), ora um novo filme, como O Labirinto do Fauno (de Guillermo del Toro), ora uma exumação documental (como as centenas de fotos inéditas do assédio ao Alcazar de Toledo, em setembro de 1936, desencavadas pelo historiador catalão Carles Querol, notícia de primeira página do El País de sexta-feira). Só faltava um videogame. Não falta mais. Sombras de Guerra - eis como a produtora malaguenha Legend Studios batizou o videojuego da Guerra Civil espanhola, por ela desenvolvido durante três anos, ao custo de ? 1 milhão (R$ 2,6 milhões). Do gênero ETR (?estratégia em tempo real?), permite aos jogadores escolher uma das forças em choque e, como em todos os jogos de guerra, lutar por uma vitória. Que pode sorrir para qualquer dos dois lados, mesmo em se tratando de uma guerra meticulosamente decalcada em outra na qual, como de praxe, só um venceu; no caso, os falangistas de Francisco Franco, capciosamente identificados no jogo como "nacionalistas", embora não passassem de uma horda de golpistas ou sublevados, monarquistas, fascistas, extremistas de direita, que, ajudados pela Alemanha nazista e a Itália fascista, derrubaram um governo democraticamente eleito. Francisco Pérez, o cérebro do negócio, explica a aparente concessão à onomástica fascista como um artifício para facilitar a difusão do jogo em países menos familiarizados com o que aconteceu na Espanha entre julho de 1936 e abril de 1939. Para ele, o aspecto lúdico do produto prevalece sobre os demais. Não há bandidos e mocinhos definidos, apenas soldados disputando batalhas e conquistando ou defendendo cidadelas. Mas as batalhas e os ataques que de fato ocorreram aparecem no monitor com seus nomes autênticos (Ebro, Jarama, Toledo, Guernica, Teruel, etc.), e, à guisa de contextualização histórica, em imagens reais extraídas do acervo da BBC e dos arquivos catalães. Sombras de Guerra não entra em questões políticas, esclarece Pérez, anulando a serventia didática que atribuira a seu folguedo eletrônico quando, pressionado por historiadores, educadores e simpatizantes das duas frentes beligerantes, anunciou que os jovens, seu público-alvo, só conseguiriam aprender algo sobre a guerra civil manejando um joystick. Que me desculpe esse incentivador da preguiça mental juvenil, mas ainda é nos livros que melhor se aprende sobre a guerra civil espanhola ou qualquer outro evento histórico. A narrativa que dela fez Hugh Thomas pode ser um bom intróito. Não li a cantilena revisionista de Pio Moa, Los Mitos de la Guerra Civil, que tanta celeuma causou quatro anos atrás, mas é possível que até ela, apesar de sua reacionária recuperação do franquismo e seus objetivos eleitoreiros em prol do Partido Popular, seja mais útil didaticamente que o videojuego de Pérez. Ainda mantenho Homage to Catalonia, de George Orwell, recém-traduzido como Lutando na Espanha, acima de todas as obras sobre a guerra. Ele foi o grande vencedor moral do conflito, deixando em posição incômoda diversas estrelas da esquerda (E.P. Thompson, Raymond Williams, Hobsbawm) que deram mole para o comportamento dos comunistas, espanhóis e adventícios, tutelados por Stalin. Sombras de Guerra custa ? 30 e é uma adaptação ao videogame da licença "poética" praticada pela história contrafactual, modismo usualmente cultuado por sibaritas conservadores e messiânicos que se comprazem em mudar o curso do passado, partindo sempre da conjunção "se". O que teria acontecido se Hitler tivesse vencido a 2ª Guerra? E se Jesus não tivesse sido crucificado? E se Lênin tivesse sido assassinado na Estação Finlândia? Por ser um videogame sem especulações conseqüenciais, Sombras de Guerra limita-se a permitir um triunfo virtual dos republicanos, e ponto final. Como? Se, por exemplo, na 10ª missão, a Batalha de Ebro (julho-novembro de 1938), uma combatente feminina conseguir transmitir a seus companheiros a posição da Legião Condor, a falange aérea alemã que um ano antes dizimara Guernica, os legalistas vencem. Em outra ocasião, Sombras de Guerra talvez tivesse entrado no mercado sem causar tanto bate-boca. Mas seus fabricantes não tinham como prever que, justo em novembro de 2007, a Espanha estaria encrespada por discussões em torno de uma nova lei autorizando reparações às vítimas da Guerra Civil e um sumiço em todos os monumentos a Franco. Falando nisso, que tal começar pela implosão do Valle de los Caídos? Críticos de ambos os lados condenaram o jogo por trivializar a guerra e dissipar seu tenebroso legado, realimentar conflitos políticos em decomposição, reabrir cicatrizes que pareciam cauterizadas e reforçar a divisão entre as duas Espanhas. Carlota Leret, cujo pai, Virgilio Leret Ruiz, executado no início da guerra por soldados franquistas, "aparece" no jogo, soltou o verbo: "Na medida em que banaliza a morte, a tirania e a violência, em nada contribui para nos ajudar a reconstruir nossa memória histórica." Muitos não entendem como alguém, mesmo de brincadeira, possa colocar-se no papel de um fascista. "Não consigo me imaginar do lado dos falangistas matando meu avô", desabafou o descendente de outro fuzilado pelos franquistas. Há, porém, quem veja com bons olhos a chance de vencer a direita, de devolver, ainda que virtualmente, as barbaridades cometidas pelos falangistas, como a destruição de Guernica, o fuzilamento de 4 mil legalistas na praça de touros de Badajoz e a morte de García Lorca, assassinado um mês depois do início do levante monarquista. Catarse faz bem à alma, mas o jogo mais profícuo que os espanhóis inventaram foi aquele oficializado no Palácio de Moncloa, em outubro de 1977. Jogo à vera, político, democrático, sem joystick, só joy, solamente alegría.

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