Em meados dos anos 70, Régis Bonvicino, então um estudante de direito de 20 e poucos anos envolvido com a poesia, sentia-se fora de contexto. Respeitava os concretos, mas não tinha intenção de fazer poemas visuais ou multimídia. Não queria ser letrista, algo que, como lembra, era "quase imposição" naqueles anos de tropicália - e uma intenção de seu grande amigo Paulo Leminski, que procurava lugar entre a vanguarda e o desbunde."Queria fazer poesia para o papel. Não buscava o racionalismo concretista nem a irracionalidade que vinha do zen", lembra Bonvicino, hoje com 55 anos, cujos interesses àquela época incluíam, além dos citados acima, a música de Bob Dylan e Rolling Stones e os poemas de Carlos Drummond de Andrade (1902- 1987) e do norte-americano Wallace Stevens (1879-1955). Os resultados das incertezas que durariam até o início da década de 80 podem voltar a ser conferidos em Até Agora, reunião dos volumes publicados ao longo de 35 anos pelo autor, que tem lançamento hoje, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Os primeiros poemas saíram originalmente nos livros Bicho Papel (1975), Régis Hotel (1978) e Sósia da Cópia (1983). Embora não renegue nada do que escreveu e inclusive goste da "energia" que ainda percebe naqueles poemas, foi dali para a frente que o paulistano reconheceu o caminho que gostaria de seguir. "Minha poesia foi um trabalho de concentração, de diálogo, de observação. De estar ligado a todas as coisas da cidade, das paisagens às artes plásticas. Sou um anti-Rimbaud. Não me sentia bem e fui construindo uma poesia própria, aprendendo com todos aqueles com os quais não me identificava totalmente", conta. Esse segundo momento começa com Más Companhias, livro que reuniu trabalhos escritos de 1983 a 1986, e segue numa produção intensa que culmina, até o momento, com Página Órfã, de 2007 - atualmente, Bonvicino trabalha num novo livro. No volume que sai pela Imprensa Oficial, o leitor ainda pouco íntimo com a obra de Bonvicino será apresentado a ela a partir deste Página Órfã, retrocedendo então até aqueles três títulos iniciais, num exercício curioso de conhecer antes o poeta maduro. Nenhuma espécie de interesse fora do comum aí, afirma o autor - admirador de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), com quem chegou a manter um relacionamento próximo, Bonvicino apenas sentiu-se compelido a seguir o modelo usado pelo mestre nas Poesias Completas, de 1968. Bonvicino hoje mantém uma relação intensa com os meios virtuais. "Para mim, a coisa mais impressionante da vida não foi a chegada do homem à Lua, foi o surgimento da internet", diz. Envolvido desde 2001 com a edição da revista Sibila - hoje exclusivamente on-line, no endereço www.sibila.com.br -, trabalho que desenvolve em parceria com o poeta norte-americano Charles Bernstein, ele sente-se mais próximo da poesia feita em francês e em inglês. "Agora estou trabalhando temas diferentes. Eu fujo da literatura, acho que poesia não tem nada a ver com literatura. Não adianta ler João Cabral de Melo Neto e deduzir um poema igual ao dele. Procuro me afastar de tudo isso", diz.
POEMAS
"O lobo-guará é manso
foge diante de
qualquer ameaça
é solitário
avesso ao dia, tímido
detesta as cidades
para fugir do ataque
cada vez mais inevitável
dos cachorros
atravessa estradas
onde quase sempre é
atropelado
onívoro, com mandíbulas
fracas
come pássaros, ratos, ovos,
frutas
às vezes, quando está perdido,
vasculha latas de lixo nas ruas
engasga ao mastigar garrafas
de plástico ou isopores
se corta e ou morre ao morder
lâmpadas fluorescentes
ou engolir fios elétricos
morre ao lamber inseticidas
ou restos de tinta
ou ao engolir remédios
vencidos
ou seringas e agulhas
descartáveis
dócil, sem astúcia,
é facilmente capturado e morto
por traficantes de pele
quando então uiva
(Extinção. Página Órfã, 2007)
"O que matou com disparos
na cabeça
O que eletrocutou o
estuprador
- fio puxado do bico de luz
da cela -
e pediu perdão a Deus
O que decepou um dos seus
O que trocava de nome & de sexo
a cada morte
O que ouvia vozes
O que estuprou a filha
(meses)
O que atraía garotos
com revistas de mulheres nuas
"Papillon" traficava cocaína
e crack
Narque espancou o cara
até abrir sua carne
(O Que. Outros Poemas, 1993)
"Me
transformo,
outra janela–
outro
que se afasta e não se
reaproxima
nas desobjetivações e
reativações,
nas linhas e realinhamentos
outros
me atravessam
morto de ser
coisas perdem sentido
expressões figuradas como
ossos de borboleta
me transformo
na observação
de uma pétala
*
Me destransformo
a mesma janela –
outro
que não se afasta
Nas objetivações,
alinhamentos
e linhas inexistentes
iguais me repassam
Retrato desativado,
taxidermista de mim mesmo
(Me Transformo. Ossos de Borboleta, 1999)
"Quantas vezes
esfregou
os dedos nas unhas
o sol caindo atrás
das paredes
quantas vezes revezou-se
consigo mesmo em silêncio
quantas vezes esteve
no justo oriente de qualquer limo
quantas vezes quis
ser Rimbaud e traficou
aspirina
os dias passaram, severos,
como o vazio
hoje?, ontem?, quantas vezes
as grimpas não giraram
o amor era das palavras, entre elas
fria estrela que irrompe
(Canção 4. De Remorso do Cosmos, 2003)
ATÉ AGORAAutor: Régis Bonvicino. Editora: Imprensa Oficial (564 págs., R$ 40). Local: Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2.073, telefone 3170-4033, Hoje, às 18h30.