No último dia 21 de agosto, no auditório do IICS - Instituto Internacional de Ciências Sociais, em São Paulo, vivi um momento único de minha carreira artística: realizei um concerto para autistas. Na realidade, vivi um momento único da minha vida. Nunca pensei que a emoção e o impacto criados pela música tivessem apelo medicinal. Sim, um remédio. Verifiquei isso com meus próprios olhos. Com a contagiante presença da OAM - Orquestra Acadêmica de Madrid e participação especial do amigo e violinista Pablo de León, pedi, naquela tarde, para que o tempo parasse. Conversei com diversos autistas, com suas mães (verdadeiras heroínas do amor real), com familiares, aproveitei para tirar diversas fotos, estive com voluntários que se dedicam a essa causa, psicólogos e, acima de tudo, me enriqueci. Sim, quem não vive para servir, não serve para viver.
Tão logo finalizei minhas breves palavras de boas vindas, mesmo sem ter a certeza de ter sido completamente compreendido, sentei-me ao lado de uma criança adorável, de sorriso largo. Essa garotinha me cativou. A mãe acariciava a filha durante todo o tempo, em esforço nem sempre bem sucedido para deixá-la calma, tranquila. Receberam-me cordialmente na fileira em que estavam. Nesse momento ocorreu algo extraordinário: tão logo a OAM iniciou sua execução, comecei a acariciar o rosto da garotinha no mesmo ritmo da obra de Mozart que estava sendo interpretada. Foi aí que presenciei o indizível: a garotinha emudeceu, posicionou-se em atitude de atenção e, com os olhos bem abertos, acompanhou durante longo tempo o ritmo mozartiano com a cabeça. Sua mãe me olhava surpresa e muito feliz. Meus olhos marejaram quando, ao final da execução, todos se puseram de pé, em intenso aplauso, alguns copiando os gestos do maestro. Observei alguns pais e voluntários emocionados, alguns em lágrimas. Falo sério.
Quando tudo se encerrou e o auditório já estava vazio, enquanto retornava para apanhar minhas partituras, deparei-me com outra mãe que, sozinha, em um canto mais escondido do anfiteatro, olhava para o chão. Aproximei-me dela e ela, simulando estar arrumando o cabelo, esforçou-se por sorrir. Percebi, no entanto, que ela estava chorando, sozinha. Ela não havia trazido seu filho autista para o concerto, como ela mais tarde explicou, por receio de um comportamento destoante. A mãe percebeu seu erro. E foi enquanto me explicava isso que suas lágrimas foram copiosas. Mas a música também a havia tocado: era o primeiro concerto que ela assistia em sua vida e, ainda sob a emoção, falava-me sobre o som dos violinos. Tudo era novidade para ela. Sentei-me ao seu lado enquanto. Falei pouco. Na realidade não falei nada. Cada vez mais percebia como minha profissão pode influenciar a vida de outras pessoas. O mesmo ocorreu com outra senhora, Neusa Maria Silva, amiga antiga de facebook, que também estava lá com seu filho André, autista e devoto do piano. Escutei, com atenção, o depoimento da Neusa que, em detalhes, me explicou como a música havia trazido estabilidade e paz ao comportamento de seu filho.
Quando retornei, pensativo, ao foyer do anfiteatro, outro autista, de idade próxima aos 20 anos, reiteradamente repetia, enquanto segurava uma de minhas mãos: "eu gostei muito, muito obrigado!", "eu gostei muito, muito obrigado!", "eu gostei muito, muito obrigado!". Enquanto ele apertava minhas mãos com admiração e agradecimento, eu buscava responder com meu olhar. E foi no dia seguinte, diante de numerosa e extensa platéia presente ao concerto que se realizaria Teatro Guaira, que abertamente falei a todos sobre o trabalho desenvolvido pela ONG Autismo&Realidade, responsável por me fazer entender melhor que a vida pessoal pode e deve ser transformada em serviço. Todos, mais ou menos, buscamos servir. Alguns, infelizmente, ao próprio eu.
Orgulho-me de minha profissão, de poder ser pianista e, em exercício de auto-crítica, proponho-me a ser mais atento aos motivos que me levam a trabalhar.
Enquanto me dirigia ao aeroporto, pensei que Mozart e Mendelssohn, os autores interpretados, deveriam estar também muito felizes.
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