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Após dez anos, Milton Hatoum volta à Brasília para Bienal do Livro

Autor pretende reencontrar pessoas e locais que marcaram sua vida como inspiração para obra

Por Ubiratan Brasil - O Estado de S.Paulo
Atualização:

A decepção começou ainda no avião, momentos antes do pouso. "Brasília está desfigurada, não é mais a mesma", lamentou-se Milton Hatoum, escritor, arquiteto e cronista do Caderno 2. Ele voltou à Capital Federal depois de dez anos, agora para participar da 1.ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, que vai até segunda-feira. "E, do hotel, percebi que já não se vê mais o horizonte, uma das marcas da cidade. A especulação imobiliária, aliada a políticos mal-intencionados, acabaram com Brasília." O desabafo só reforça a verdadeira intenção de Hatoum de voltar ao local onde viveu entre 1967 e o início de 1969: buscar subsídios para o capítulo (talvez o principal) de seu novo romance, ainda sem título e sem data de publicação. Aqui, o escritor viveu momentos intensos, desde conhecer amigos do peito até enfrentar delatores do regime militar. O livro, a ser editado pela Companhia das Letras, trata de assuntos muito caros a Hatoum: memória e exílio. O ponto de partida são colegas que conviveram com ele em Paris, especialmente uma amiga, que morreu no início do ano passado, e um argentino. A trama se passa também em São Paulo e no Rio. "Mas logo vi a necessidade de incluir Brasília, pois alguns personagens, que só eram citados esporadicamente, ganharam uma importância especial." Assim, depois de ter falado para uma grande plateia no domingo - um dos encontros mais festejados da Bienal -, Hatoum estende sua estadia na cidade, para rever lugares e amigos. "Vivi aqui durante o AI-5, com tanques de guerra nas ruas e dedos-duros nos observando nos bares", disse ele, que estudou no extinto Centro Integrado de Ensino Médio. "Era inevitável participar do movimento estudantil, de curtir as drogas, de viver em uma cidade que já não existe mais." Sobre o assunto, ele conversou com o Estado.Como está seu novo romance? Estou reescrevendo. Há uma narradora franco-brasileira que conta sua história e, ao mesmo tempo, rememora façanhas dela com outro brasileiro. A ação se passa entre o fim dos anos 1970 até 1983 - depois, o foco está apenas na vida dela. Mas percebi que faltava um longo capítulo, que vai trazer um pouco da minha experiência em Brasília. Foi difícil: ao mesmo tempo que significou a libertação da província (vim de Manaus), também foi uma espécie de aprisionamento. Era a época do AI-5 e eu fui levado ao movimento político-estudantil, pois estudava em um colégio excepcional, onde me uni aos desgarrados do movimento, aqueles mais independentes que eram vistos com preconceito internamente. A vida era intensa e tensa.Foi no fim dos anos 1960, quando Brasília era uma cidade muito diferente. Totalmente. Brasília foi desfigurada. A barbárie urbana começou na capital do Brasil. O plano piloto já não existe mais, a arquitetura é horrenda. Quando cheguei, era uma espécie de candango estudantil e pretendia cursar a Universidade de Brasília, mas houve um tremendo expurgo entre os professores por conta da ditadura. Havia também muitos dedos-duros. Mas, no romance, não quero fazer apenas um relato dessa memória, mas mostrar a importância do distanciamento temporal para escrever ficção.Isso marca muito a sua obra, não? "O esquecimento como forma de memória", segundo Borges, que você gosta de citar. O tempo que passa transcende a fidelidade das circunstâncias da vida. Cria novas perspectivas, a imaginação torna-se mais livre para trabalhar com o passado. Venho adiando esse romance há muito tempo e, depois de finalizada uma versão, que foi bem comentada pelo meu editor da Companhia das Letras, percebi que esse novo capítulo estava insinuado e que precisava ocupar um lugar de mais destaque.Por que estava insinuado? Na verdade, eu queria utilizar essa história em outro romance. Às vezes, o escritor é avaro demais sem saber. Eu estava errado. Agora é o caso de desenvolver uma narrativa que de fato se integre ao que já escrevi. Estava insinuado porque havia um fato aqui, outro ali, mas tudo desgarrado. Escrevo agora as memórias de Brasília. Sempre dói voltar a um momento difícil da nossa história, mas quero transcender o documental e talvez nem meus amigos da época se reconheçam. Não tenho pressa, não sei quando vai ficar pronto. Às vezes, acho que já escrevi demais.Você fala desse romance? Não, na obra como um todo. Já são cinco livros. Mas você pretende seguir o mesmo caminho do Raduan Nassar? Nem posso, pois ele parou antes. Admiro escritores que sabem o momento de parar. Autores como Juan Rulfo: será que precisaria mesmo escrever algo depois de ter publicado Pedro Páramo? Uma narrativa tão complexa, inovadora no momento em que surgiu, uma visão muito particular da Revolução Mexicana. Não que eu queira parar, mas não posso escrever para publicar. O romance que crio agora está na minha cabeça há muito tempo. Logo depois de publicar o Relato, em 1989, já comecei a pensar nele.Os outros livros furaram a fila? Sim. Cinzas do Norte foi uma antecipação do que escrevo agora: era uma outra narrativa sobre o momento político, mas com uma visão amazônica. Enquanto escrevia o Cinzas, eu já pensava nessa segunda parte. Minha cabeça fervilha de pensamentos, mas, como disse Émile Zola, um romance não se faz com ideias, mas com palavras.Por falar em autores, você chegou a se encontrar com Roberto Bolaño? Sim. Eu fui a uma palestra do Italo Calvino, em 1981, quando eu morava em Barcelona. Ele era poeta nessa época e eu o conheci rapidamente. Bolaño foi injustiçado, pois sua obra demorou para ser publicada. Eu o considero o mais importante autor dessa geração: era um escritor progressista, de esquerda, mas não dogmático. A literatura dele tem um forte sentido histórico, político e também estético, pois está voltada para a própria escrita. Mas continua exemplar.

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