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Artistas latino-americanos reinventam suas histórias e brilham no Museu de Arte Moderna de Nova York

Emocionante exposição apresenta a nova arte latina no MoMa, em Nova York; ‘Chosen Memories’ reúne obras do brasileiro Paulo Nazareth e muitos outros

Por Holland Cotter

THE NEW YORK TIMES - A terra dos bravos e lar dos livres sempre foi pessimista em relação às fronteiras, sobre quem entra e quem fica de fora. Politicamente, estamos sentindo muito essa tensão agora. E isso sempre foi culturalmente evidente, por exemplo, no tipo de arte que os museus dos EUA apresentam.

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O padrão longo, mas esporádico, do Museu de Arte Moderna de colecionar arte latino-americana do século 20 oferece um indicador construtivo. No início, ele favoreceu a arte que parecia ser vista como uma espécie de exotismo: folclórica, surreal, prova de que o sul da fronteira era um terreno selvagem, quase moderno.

Após a Segunda Guerra Mundial, com o intercâmbio cultural cada vez mais frequente como ferramenta diplomática, o MoMA queria um maior envolvimento com a nova arte latino-americana, mas uma arte que parecesse ser feita por “pessoas como nós” – isto é, obras que parecessem carregar uma evidência clara do DNA europeu, como a abstração geométrica.

Então, na década de 1970, veio a recessão global. Os mercados de arte faliram. E na confusão, os muros começaram a cair quando uma nova onda chamada multiculturalismo – pró-diversidade, antiessencialista – chegou.

Antropologia do Negro, de Paulo Nazareth, no MoMa Foto: Reprodução/MoMa

Cada vez mais, à medida que esse episódio inicial do que por vezes chamamos de pós-modernismo recua na história, este parece ser um dos melhores e mais germinativos momentos da arte do século 20. O MoMA levou muito tempo - décadas - para embarcar nisso, mas está bem adiantado, a julgar por Chosen Memories: Contemporary Latin American Art from the Patricia Phelps de Cisneros Gift and Beyond (Memórias escolhidas: arte latino-americana contemporânea da doação de Patricia Phelps de Cisneros e muito mais), uma das exposições mais emocionantes que já vi em Nova York nos últimos tempos. Ela fica em cartaz até 9 de setembro.

Coleção Patricia Phelps de Cisneros

Na década de 1970, Patricia Phelps de Cisneros, natural da Venezuela e administradora de longa data do MoMA, já se interessava pela arte latino-americana em um amplo espectro: arte indígena; obras do século 19 feitas por europeus que viajaram para a região; artefatos coloniais híbridos; e pintura e escultura modernistas.

Em 2016, ela doou ao museu mais de 100 obras modernistas, e houve uma exposição. Mas nessa altura ela já tinha voltado as suas atenções para a nova arte, e em 2019 houve uma doação ainda maior, esta de trabalhos contemporâneos, incluindo fotografia e vídeo.

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Cerca de três dezenas de exemplos, a maioria datados das últimas três décadas e complementados por empréstimos, compõem a exposição atual. E juntos refletem — e refletem criticamente — todas as categorias da arte latino-americana que desde o início a interessaram.

Por exemplo, a complexa história do colonialismo, em grande parte expurgada da abstração modernista, é trazida à tona em uma das primeiras salas da exposição, The Catherwood Project, do artista argentino Leandro Katz.

Na década de 1840, o artista inglês Frederick Catherwood viajou duas vezes para a América Central e fez desenhos das ruínas maias da região. Publicadas como gravuras, suas imagens deram ao público europeu uma primeira visão desses monumentos antigos e estabeleceram uma visão romantizada do “Novo Mundo” que persiste atualmente nos ônibus turísticos.

Em sua série Catherwood, Katz considera a precisão dessas imagens por meio de comparações no local: ele se fotografa segurando as imagens do ilustrador na frente dos monumentos maias que elas retratam. Katz observa as manipulações de Catherwood, mas também entende que ele está inevitavelmente adicionando sua própria visão distorcida do século 20 a uma história perceptível em camadas.

Arte indígena

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A cultura indígena, crucial, mas pouco reconhecida pelo modernismo europeu, é mencionada repetidamente na exposição. Em 1996, a artista mexicana Laura Anderson Barbata passou um tempo com o povo Yanomami na floresta amazônica venezuelana aprendendo, na prática, como eles criavam suas graciosas canoas. Em troca desse aprendizado, ela os ensinou a fazer papel.

Vemos os frutos da reciprocidade na exposição: em uma fotografia, que Barbata intitulou de Self-portrait, de um barco esculpido à mão em pé como se tivesse vida própria; e em desenhos graciosos da fauna e da flora amazônica da artista Yanomami Sheroanawe Hakihiiwe, todos feitos em papel fibra artesanal.

Alguns artistas transformam a tradição em algo hábil e divertido. O artista mexicano Gabriel Kuri brinca com noções de valor, trabalho e cultura de consumo em sua imagem tecida em tear de um recibo de supermercado.

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O mesmo acontece com o coletivo porto-riquenho chamado Las Nietas de Nonó, composto por duas irmãs (Mulowayi Iyaye Nonó e Mapenzi Chibale Nonó) que, isoladas durante a pandemia, transformaram sua vida cotidiana em uma espécie de piquenique de caçador-coletor de volta às origens.

Mulowayi Iyaye Nonó e Mapenzi Chibale Nonó, do coletivo Las nietas de Nonó Foto: Juan Carlos Malavé/MoMa

Espiritualidade

O que é levado a sério é aquilo que a maior parte da arte ocidental mainstream não sabe como lidar, mas que o multiculturalismo respeitava notavelmente: a espiritualidade. Em uma pintura de 2020 do artista dominicano Firelei Báez, uma poderosa divindade feminina afro-caribenha dança e domina um mapa europeu do Oceano Atlântico do século 16.

E em desenhos a lápis, a artista coreana colombiana Gala Porras-Kim documenta centenas de fragmentos têxteis deixados, séculos atrás, como oferendas nos templos ao deus maia da chuva e que agora estão preservados em um museu etnológico da Universidade de Harvard.

Incluída na exposição está uma carta que a artista escreveu à diretora do museu pedindo a ela que liberasse as oferendas de sua prisão arquivística e permitisse que virassem pó como seus doadores pretendiam. Sua perecibilidade, ela argumenta, é o que as torna poderosas.

O tema da perda

O tema da mudança e da instabilidade, aqui muitas vezes enquadrado como perda, é um dos fios condutores do programa, e ele é complicado. Historicamente, a perda pode ser violenta, como sugere uma obra feroz da sempre surpreendente e determinada artista performática guatemalteca Regina José Galindo.

Para uma obra de 2010 chamada Looting, que aborda as depredações extrativistas do colonialismo europeu em sua terra natal rica em minerais, ela pediu a um dentista na Guatemala que lhe colocasse em oito dentes obturações feitas de ouro extraído localmente e depois pediu a um segundo dentista, na Europa, para retirar as obturações, que são expostas como arte em uma vitrine.

Várias obras sobre perda são, como a dela, politicamente carregadas. Um pequeno vídeo intitulado Black Anthropology II de 2014 de Paulo Nazareth é uma delas. Nela, o artista jaz semienterrado sob pilhas de crânios e ossos humanos, restos mortais de prisioneiros afro-brasileiros que ele encontrou guardados em um museu da polícia baiana.

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Em uma fotografia de 1989 intitulada The Two Fridas, os ativistas gays chilenos Francisco Casas Silva e Pedro Mardones Lemebel (1952-2015) posam com o peito nu e saias, seus corpos conectados por tubos intravenosos, em uma versão da era da AIDS do famoso autorretrato duplo de Kahlo.

A obra s duas Fridas (Pedro Lemebel e Francisco Casas), de Yeguas del Apocalipsis, foi exposta na 31ª Bienal de São Paulo  Foto: Pedro Marinello

Sua foto pode ser lida como uma homenagem à parceria, artística ou afetiva, ou ambas. O mesmo pode acontecer com uma pequena escultura alegre montada a partir de uma estante de música, um par de tesouras de jardinagem e uma única rosa, dedicada a um amigo - amante? — pelo indescritível polímata venezuelano Claudio Perna (1938-1997).

Há uma vibração memorial nesta peça, assim como em um vídeo de 2009 que foi concebido como um gesto de luto antecipado pelo artista uruguaio Alejandro Cesarco. Intitulado Present Memory (2010), é um retrato mudo filmado do pai de Cesarco, um médico, feito logo após ele receber o diagnóstico de câncer de pulmão terminal. Vemos o homem mais velho, com seu terno elegante e bigode extravagante, sentado impassivelmente em seu escritório e sendo visto repetidamente de vários ângulos, como se para fixar suas feições em nossas mentes. Em seguida, a câmera percorre a sala, agora vazia. Ele se foi.

Choque de realidade

Um tom fundamental da exposição — organizada por Inés Katzenstein, curadora de arte latino-americana do MoMA e diretora do Cisneros Research Institute, e Julia Detchon, assistente de curadoria — é destilado aqui: uma espécie de melancólico choque de realidade inquieto e irônico muito diferente da utopia muitas vezes atribuída à arte latino-americana a partir da pintura abstrata geométrica que, até recentemente, a definiu em muitas coleções de museus norte-americanos.

Na verdade, a abstração geométrica está presente, ainda que ambígua, em Chosen Memories, na forma da pintura mural arte in situ do artista brasileiro Iran do Espírito Santo.

O artista brasileiro Iran do Espírito Santo Foto: Sergio Castro/Estadão

Composta inteiramente de linhas verticais em tons de cinza sutilmente variados, é difícil ver a pintura inicialmente, é como uma sombra passageira ou uma mancha escura. Parece tanto sujar a parede branca da galeria quanto dissolvê-la, ser um auxílio à meditação ou um erro.

Intitulada En Passant e encomendada para a ocasião, ela desaparecerá fisicamente quando a exposição terminar, mas permanecerá vívida como uma ideia, como muito do resto do que está aqui. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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