Mostra de Agostinho de Freitas revela a São Paulo do passado

Trabalho do pintor naïf que retratou as mudanças no centro da cidade ocupa dois andares da galeria Estação até sábado, 11

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Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

A São Paulo retratada por Agostinho Batista de Freitas (1927-1997) já não existe tal como era. A urbanidade, reverenciada em seus trabalhos, foi resultado de uma era de ouro da arquitetura, com edifícios icônicos, como o Itália, Esther, o Copan, entre outros. Atraído pelo monumental, Agostinho documentou a mudança espacial na zona central da cidade de São Paulo, reduto dos grandes mestres, de Oscar Niemeyer (1907-2012) a Artacho Jurado (1907-1983), mas não viveu para ver o intenso processo de gentrificação dos últimos anos.  A inteligência visual do artista ganha uma nova mostra, Agostinho Batista de Freitas, Mestre das Ruas, em cartaz até este sábado, 11, na Galeria Estação. São pouco mais de 20 trabalhos produzidos entre as décadas de 1970 e 1990, em um percurso que aborda diferentes fases do artista popular. Considerado por parte da crítica como um naïf, classificação com a qual o curador Agnaldo Farias discorda. “O Agostinho era um mestre da cor. O estudo que ele faz com os tons de cinza, as sombras, é de uma riqueza, isso pode ser observado quando pinta o Colégio Caetano de Campos, quando se vale da contraposição entre a massa de prédios e a arquitetura do colégio”, conta Farias ao Estadão

O centro da cidade de São Paulo era a inspiração de Agostinho de Freitas, que pintou vias icônicas de cima Foto: Galeria Estação

Quando Agostinho pinta o cruzamento da avenida Ipiranga com a São Luís, a profusão de detalhes aplicados na tela revela a força daquele pintor autodidata que tinha o centro como vitrine. O poder visual para enxergar as minúcias a metros de distância, leva em consideração as intempéries de quem está a céu aberto. A pintura do lusco-fusco, esse estado cultuado na história da arte, aparece tanto em Catedral de Sé, como em Circo dos Bandeirantes, em que o contraste entre claro e escuro foca a luminosidade emanada dos objetos. No circo, os detalhes das lâmpadas que cobrem a lona dão profundidade, pelo reflexo, ao tecido. 

Pintado em 1989, o Terminal Bandeira é uma das paisagens urbanas que foram modificadas ao longo dos anos Foto: Galeria Estação

As variações de cinza e os reflexos das luzes da cidade nas janelas, o movimento das vias abarrotadas de pedestres partiam da observação do pintor, cujo centro da cidade era referência.  Agostinho pintou pontos icônicos da cidade, como o Viaduto do Chá, onde conheceu o fundador do Masp, Pietro Maria Bardi (1900 – 1999), que o apadrinhou. “Era a arquitetura da cidade a sua paixão”, diz o curador. “As pessoas, na obra do Agostinho, ficam em segundo plano, pois queria retratar como a cidade é imensa e as pessoas são por ela esmagadas”, conclui Farias.

Agostinho Batista de Freitas em um registro de 1978, em seu ateliê. Era um autodidata com olho clínico para as paisagens Foto: Galeria Estação

Dividida em dois andares, no primeiro piso da exposição ficam as visões urbanas; no segundo, as rurais, com telas que trazem períodos em que Agostinho pintou cenas de canaviais, laranjais, mares de morro, fazendas (depois que realizou sua primeira individual no Masp, em 1952, foi recebendo encomendas, passou a viver da pintura e viajar, ainda assim para atender os pedidos).  A intersecção entre os ambientes está nas estradas, em telas que mostram a Serra do Mar, as periferias da cidade, vias de ligação entre o mundo urbano e o rural, como o próprio circo dos bandeirantes.  Mesmo nas paisagens de campo, vê-se um movimento curioso do pintor em contar uma crônica urbana pelo cotidiano dos boias-frias, os caminhões, seus rastros. A dinâmica da cidade, essa agitação, aparece em cenas frugais, não são quadros estáticos. Na paisagem maior, de 1977, (sem título), o olhar fica pululando, os tons de verde das montanhas se fundem ao céu, evidentemente demarcado, com azul cerúleo e branco matizado. 

O Circo dos Bandeirantes, uma das obras mais curiosas do artista, que representou uma atmosfera crepuscular Foto: Galeria Estação

De origem humilde, Agostinho se mudou para São Paulo na juventude e, por anos, viveu de trabalhos manuais, foi eletricista, ajudante de pedreiro e chegou a ser demitido por desenhar no expediente. No início da década de 1950, Bardi viu a força das cenas de Agostinho enquanto ele pintava no viaduto do Chá.  Aos 25 anos, o pintor conseguiu, enfim, sua primeira individual no Masp. “Por muitos anos, enfrentei preconceito por expor trabalhos de artistas como Agostinho. Por conta dele ser de origem humilde, não ter um percurso acadêmico, ser autodidata”, contou Vilma Eid, galerista que expõe, pela segunda vez, o universo do pintor. Contemporâneo de José Antônio da Silva, que tem seu legado revisitado em um novo livro, Agostinho ainda é um pintor subvalorizado, o que vai em desencontro com os ideais de Pietro Bardi e Lina: valorizar a arte brasileira fruto de seu tempo.

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