Por que grandes quadros com a cor amarela estão se ‘esfarelando’? Tubos de Miró dão pistas; entenda

Pesquisadores descobriram que uma marca de tinta preferida pelo artista espanhol tinha uma estrutura atômica que a predispunha à degradação. Brilho se perde em outras obras no tom ‘amarelo cádmio’, de Van Gogh a Munch

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Por Katherine Kornei

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Dos girassóis de Vincent Van Gogh a O Grito, de Edvard Munch, não faltam obras de arte seminais feitas com um tom marcante, conhecido como amarelo cádmio. Mas a profusão de cores que os artistas extraíram de seus tubos de tinta não é necessariamente a que as pessoas veem hoje nos museus: o brilho do amarelo cádmio muitas vezes diminui com o tempo, à medida que a tinta desbota e fica farinácea.

Cientistas analisaram composição da tinta usada pelo pintor e descobriram que a composição dela pode ser o motivo do brilho estar desaparecendo. Foto: Andreu Dalmau/Divulgação

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E o efeito não atinge apenas obras de arte centenárias. Uma equipe de cientistas e conservadores de arte recentemente analisou amostras de amarelo cádmio retiradas de peças pintadas pelo artista espanhol Joan Miró na década de 1970. Uma marca específica de tinta foi provavelmente a maior responsável pela degradação observada nas obras de Miró, concluiu a equipe em um estudo publicado em julho na revista Heritage Science.

A tinta amarelo cádmio é um amálgama principalmente de cádmio e enxofre. Foi comercializada pela primeira vez na década de 1840 e logo ganhou renome entre os artistas. Miró descreveu a cor como “esplêndida”. Há dezenas de tubos de tinta amarelo cádmio, como a Cádmio Amarelo Limão No.1, produzida pelo fabricante parisiense Lucien Lefebvre-Foinet, espalhados pelos dois estúdios de Miró em Maiorca, Espanha.

Em 2020, Mar Gómez Lobón, conservadora de arte radicada em Maiorca, começou a pesquisar as tintas que Miró passara a utilizar depois de se estabelecer na ilha na década de 1950. Um curador de arte da Fundação Pilar e Joan Miró, em Maiorca, informou-a de que mais de 25 peças da coleção da fundação, pintadas na década de 1970, apresentavam evidências de tinta amarela degradada.

Para investigar a causa da deterioração e se esta poderia estar ligada a uma determinada marca de tinta, Gómez Lobón e seus colegas recolheram pequenas amostras de tinta amarelo cádmio de três obras sem título que Miró pintou entre 1973 e 1978. A equipe também recolheu pequenas amostras de três tubos de tinta dos estúdios Taller Sert e Son Boter do artista, um copo usado para misturar tintas e duas paletas. Cada amostra tinha aproximadamente o tamanho de uma cabeça de alfinete.

O pintor, escultor e gravador Joan Miró em retrato de 1944. Foto: Joaquim Gomis/Fundació Joan Miró, Barcelona

Tubos em análise

Uma amostra microscópica de tinta é suficiente para muitas análises científicas. E há vantagens em analisar apenas um pingo de tinta, disse David Muller, físico da Universidade Cornell, que não esteve envolvido na pesquisa sobre Miró. Transportar uma obra de arte valiosa para um laboratório é complicado em termos logísticos. “É um procedimento de segurança muito sofisticado”, disse Muller. Mas há muito menos pressão para trabalhar com uma amostra de tinta com apenas um milésimo de polegada de largura, que foi o que Muller e colegas fizeram quando estudaram a degradação do amarelo cádmio em ‘O Grito’.

Gómez Lobón e seus colaboradores analisaram as nove amostras das pinturas e materiais de estúdio de Miró, registrando como a tinta absorvia, refletia e reemitia diferentes comprimentos de onda de luz. Isso permitiu à equipe investigar a composição química e a estrutura cristalina de cada amostra.

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As análises elementares revelaram que as amostras de tinta degradadas das três pinturas continham principalmente cádmio e enxofre, como esperado, com vestígios de zinco. A mesma mistura foi encontrada nas amostras de tintas das duas paletas e de um dos tubos de tinta. Além disso, essas seis amostras - das pinturas degradadas, das paletas e do tubo de Cádmio Amarelo Limão No.1 de Lucien Lefebvre-Foinet - apresentaram baixa cristalinidade, descobriu a equipe. Isso significa que os átomos de cádmio e enxofre não estão perfeitamente interligados no seu arranjo hexagonal habitual, disse Daniela Comelli, cientista de materiais da Universidade Politécnica de Milão e integrante da equipe de pesquisa. “Há uma certa desordem”.

Também se acreditava que a baixa cristalinidade do amarelo cádmio era parcialmente responsável pela degradação observada em obras de arte mais antigas de Pablo Picasso, Henri Matisse e outros artistas. (Condições ambientais, particularmente umidade e temperatura, também demonstraram ter um papel importante). Mas os novos resultados destacam o fato de o problema ter persistido até meados do século 20, o que os pesquisadores consideraram surpreendente.

“Seria razoável pensar que os fabricantes de tintas teriam corrigido o problema”, disse Gómez Lobón. Lucien Lefebvre-Foinet era, além disso, uma marca bem conceituada, disse ela. “Era uma tinta de alta qualidade”.

No futuro, Gómez Lobón pretende catalogar os cerca de cem tubos de tinta ainda espalhados pelos estúdios de Miró. Ela espera datar com precisão a idade dos tubos Lucien Lefebvre-Foinet e entender melhor como a marca produziu sua tinta, especificamente seu amarelo cádmio. Miró deixou para trás um tesouro de suprimentos que precisa ser estudado, disse Gómez Lobón. “Esses estúdios são uma mina de ouro”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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