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Às vésperas do Bloomsday, James Joyce ganha novo guia para leigos

Homem comum é tema recorrente na obra do irlandês, celebrada nesta semana

Por Marcelo Tápia
Atualização:

Um feito incomum chama a atenção, mais uma vez, para o modo como o homem comum é tratado na obra do célebre irlandês James Joyce. Espécies de heróis cujos aspectos mais humanos e corriqueiros representam a condição da humanidade, ontem, hoje e sempre. Não é à toa que Joyce parece sempre renascer a cada tempo, lido e traduzido de maneiras diversas, reexplicado, procurado. As relações entre o difícil e o banal, o raro e o vulgar permeiam um fascinante percurso inesgotável como fonte de fruição e conhecimento.

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Comemoração do Bloomsday, em homenagem ao livro 'Ulisses', de James Joyce Foto: JULIEN BEHAL/PA PHOTOS/LANDOVV

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Desta vez, um foco deve ser dado ao livro Ulisses – um Estudo, de Abdon Franklin de Meiroz Grilo, um médico de 82 anos nascido em Natal e formado em Recife, militar, que também estudou filosofia, história e teologia, e hoje reside em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde a obra foi publicada. Há marcas do incomum por toda parte: alguém que não vem do mundo das letras, mais um (entre tantos que conheci) que não pareceria ter o perfil de um leitor do complexo James; um livro volumosíssimo (a ser guardado, ocupe o espaço que ocupar) que reúne um conteúdo veiculado por site mantido pelo autor (conteúdo que, portanto, está acessível pela internet); uma pesquisa que parece dar uma dimensão ampla e utilíssima a algo que poderia ser apenas uma compulsão (que costumamos ter, homens comuns); uma espécie de enciclopédia que deriva da busca incansável dedicada ao desvendamento de referências de uma obra literária; um catatau de informações sobre fontes fundamentais da humanidade. De alguém de interesses múltiplos, não especializado, surge uma obra que parece uma coleta do mundo recriado por Joyce. 

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Mas evoquemos o próprio Ulisses, esse “clássico” que, como tal, jamais de esgota, porque indica múltiplas vias de representação do mundo sem encerrá-las, de reconstrução da dinâmica dos significados da vida, aberto sempre a novas leituras, realizadas por sucessivas gerações, que podem descobrir nele, sempre, coisas novas. O personagem central do romance, Leopold Bloom, é um herói “pequeno”, comum, vulgar, um Ninguém (nome este adotado ardilosamente por Odisseu – ou Ulisses –, no episódio dos Ciclopes, na Odisseia de Homero) que, portanto, não pertence à grande história, mas, sim, à pequena e pulverizada história cotidiana, cheia de comportamentos pequenos, demasiado humanos. Diferentemente de Odisseu – o herói astucioso, multifacetado, de muitos caminhos, e também forte, líder, dono de uma vida plena de compartilhamento de grandes feitos com outros heróis, repleta de aventuras –, Leopold Bloom é apenas um vendedor de anúncios de jornal, filho de um judeu húngaro, nascido na Irlanda e – claro – nem sempre aceito como irlandês (como se vê no episódio em que aparece o personagem nacionalista “o cidadão”, com tapa-olho, correspondente ao do Ciclope, monstro de um olho só, na Odisseia).

Bloom é um homem sensível, afeito à paz e ao amor, capaz de não agir diante do encontro amoroso que sua mulher Molly terá – ele o sabe – durante a tarde de 16 de junho de 1904, dia em que se passa todo o romance. Desde a manhã desse dia, Bloom (o Senhor Dom Flor, no dizer de Haroldo de Campos) perambula por Dublin, numa espécie de epopeia banal mas capaz de abarcar, de modo intemporal e simbólico, a experiência humana, da morte (objeto de reflexão durante o enterro de um amigo) ao nascimento (na maternidade, onde um parto difícil impõe sofrimento à mãe) e a vivênciasplurais que vão de um banho em banheiro público à visita a um bordel (ao seguir, por cuidado, os passos do jovem Stephen Dedalus, alterego do próprio Joyce desde Retrato do Artista Quando Jovem), de um almoço frugal à masturbação numa praia, entre tantas situações diversas.

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Embora essa espécie de reescritura paródica da Odisseia homérica se ambiente no início do século 20, sua leitura, hoje, poderá nos descortinar nosso próprio mundo, que, apesar de tão diverso, segue sendo o mundo humano, com suas qualidades e fraquezas. Um livro como Ulisses (assim como toda a obra de Joyce) permite a descoberta de várias camadas de significação, que vão da história simples feita de acontecimentos nada extraordinários – espécie de narrativa que projeta o alcance de eventos triviais na construção de sentidos da existência – ao uso de citações e referências sobrepostas em teias complexas. 

O livro de Abdon Grilo (que se diz avesso à notoriedade) parece se dirigir, por um caminho simples, à pessoa comum como potencial leitor de Ulisses, mas, também, como dotado da curiosidade do conhecimento. Por meio dos verbetes que anotam informações relativas a elementos do texto joyceano, articula-se uma constelação de dados e significados que se amplia na extensão e nas distâncias temporal e cultural. Por ser um estudo motivado por uma espécie de paixão, com viés empírico de persistente busca cotidiana (o trabalho foi feito, segundo o autor, durante quatro anos, durante os quais anotou, também, diferenças que observava entre as três traduções brasileiras do romance), o livro apresenta certas carências do ponto de vista de um trabalho acadêmico: por exemplo, prioriza-se – sem justificativa explícita para a opção – a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro para a identificação das palavras e expressões listadas, embora se mencionem as páginas em que se encontram as citações também nas traduções de Antonio Houaiss e de Caetano W. Galindo (a mais recente). Os breves textos de apresentação ou comentários sobre o romance contidos no livro apresentam simplicidade de elaboração e certas afirmações questionáveis ou restritas, mas buscam atender o papel pretendido por seu autor: no dizer de Aguinaldo Medici Severino, apresentador do volume, “Abdon Grilo reitera sempre que apenas cometeu anotações de apoio à leitura, que instrumentalizam o leitor a construir sua própria interpretação”.

Ao leitor é dada a informação, por exemplo – na seção denominada Temas, Motivos e Símbolos –, que “em seu nível mais básico, Ulisses é um livro sobre a busca de Stephen de um pai simbólico e de Bloom por um filho. A este respeito, o enredo de Ulisses apresenta um paralelo da busca de Telêmaco por Odisseu, e vice-versa, em Odisseia”. Ou – na seção Personagens –, que “Bloom [...] gosta de ler e pensar sobre a ciência e as invenções e explicar seu conhecimento para os outros. Bloom é compassivo, curioso e adora música. Ele está preocupado com o afastamento sexual de sua esposa, Molly Bloom”.

Mas o melhor do livro é mesmo seu aspecto de alentado inventário de informações relacionadas a elementos de cada capítulo, como a anotação relativa ao fato de Bloom buscar rins de porco para seu café da manhã – “No ritual judaico antigo: Toma dois carneiros sem defeito (Êxodo, 29,1), e os dois rins” (29, 13)” –, que leva a observar o não cumprimento, pelo personagem, do preceito judaico de não se usar carne de porco, indicativo da inserção de Bloom na cultura irlandesa. Ou no verbete sobre a “nova Jerusalém”, segundo o qual esta “combina a cidade celestial cristã descrita por S. João em Apocalipse 21 e 22 e o movimento sionista e sua campanha a atender ao desejo dos judeus por um lar em Jerusalém”, e, no contexto do episódio Ciclope, “a pergunta do Cidadão” [‘por acaso você está falando da nova Jerusalém?’] pode ser mudada para ‘Você está defendendo o sionismo?’ e codifica um insulto antissemita”. Apenas um exemplo, esse, dos apontamentos de leitura que poderão enriquecer a experiência de qualquer leitor do romance.

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Para voltarmos ao tema do homem comum em Joyce, terminemos com uma breve referência ao personagem do taverneiro Humphrey Chimpden Earwicker, do romance mais experimental do escritor, Finnegans wake.As iniciais do nome, HCE, tornam-se, no livro noturno, onírico e metamórfico, uma sigla com diversas significações, entre elas Here Comes Everybody (Aí vem todo mundo), expressão que, adotada por Anthony Burgess como título a sua “introdução a James Joyce para o leitor comum” foi traduzida no Brasil como Homem Comum Enfim... 

A quem desejar embrenhar-se no intricado romance de Joyce escrito em cerca de 65 idiomas e dialetos – cujo herói pode tornar-se, também, símbolo de todos os indivíduos de todas as épocas – há a nova opção, recentemente lançada, do livro Finnegans wake por um fio, de Dirce Waltrick do Amarante, que, ao assumir um caminho de leitura e tradução, indica possibilidades de outros fios a serem seguidos nessa teia da recriação do mundo e da história do homem.

Eventos do Bloomsday pelo Brasil:Casa Guilherme de Almeida – SP Palestras de Maria Teresa Quirino, sexta (15), 19h, e Amara Moira, sábado (16), 15h. R. Cardoso de Almeida, 1943.Universidade Federal Fluminense – RJ  Palestras de Barry Tumelty e Dirce Waltrick do Amarante. Quarta (13), às 14h30. Campus Gragoatá. R. Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Niterói.Fundação Cultural Badesc – SC Leitura de textos, oficinas, performances e exibição de ‘Bloom’. A partir de 15h. R. Visc. de Ouro Preto, 216.

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