Sean Baker está no radar de quem acompanha o cinema independente norte-americano faz tempo. Mas, mesmo tendo no currículo filmes como Tangerine (2015), Projeto Flórida (2017) e Red Rocket (2021), a Palma de Ouro que ele recebeu por Anora, além das sete indicações no Bafta, sete no Critics Choice Awards e cinco no Globo de Ouro, foram uma surpresa – inclusive para o cineasta. Muito em breve, o longa deve garantir alguns lugares na lista de indicados ao Oscar, que será revelada nesta quinta-feira, 23, mesmo dia em que estreia nos cinemas brasileiros.
“Jamais esperava ganhar a Palma de Ouro, estava contente de participar da competição na companhia tão maravilhosa de diretores importantes”, disse Baker em mesa-redonda com a participação do Estadão. “Depois o filme começou a ser incluído nas discussões de Oscar, e eu sempre pensei em Anora como algo fora do ‘mainstream’ e um pouco divisivo por causa de seus temas, mas ele parece estar agradando às pessoas de maneira universal. E isso é maravilhoso.”

Anora é o nome da nova-iorquina de 20 e poucos anos interpretada por Mikey Madison. A personagem prefere ser chamada de Ani e trabalha em uma boate como acompanhante. Por falar russo, certa noite ela é convocada a atender Ivan (Mark Eydelshteyn), jovem herdeiro de um oligarca. Os dois embarcam em uma aventura com muito sexo, diversão, bebida e drogas, que culmina em um casamento em Las Vegas. Quando os pais do rapaz descobrem, porém, mandam Toros (Karren Karagulian) e seus capangas Igor (Yura Borisov) e Garnik (Vache Tovmasyan) para resolver o assunto.
É verdade que, como apontou Sean Baker, o mundo em que se passa o longa-metragem não é dos mais populares em Hollywood. Anora é a quinta obra em seguida do cineasta que tem como personagens trabalhadores do sexo. “Tudo deriva da pesquisa que fiz para Uma Estranha Amizade”, explicou ele, citando sua produção de 2012, que tinha como protagonista uma jovem atriz de filmes adultos. “A partir daí, continuei a encontrar inspiração nesse universo, e meu objetivo é apresentar personagens complexos e tridimensionais para ajudar a remover o estigma relacionado à maneira como essas pessoas ganham a vida.”
Mas é verdade também que Anora é um de seus filmes com trama mais definida, bem diferente de Projeto Flórida e Red Rocket, que convidam o espectador a acompanhar as experiências dos personagens. Fora isso, durante boa parte de sua duração, é uma crítica às diferenças de classe disfarçada de comédia, além de apresentar algo diferente para um público cansado da mesmice. “Acho que as pessoas estão interessadas em ver filmes diferentes”, disse Baker.
De Cinderela à humilhação
Em sua primeira meia hora, Baker dá ao público uma comédia romântica com toques de comédia maluca de George Cukor e Howard Hawks e um quê de Um Príncipe em Nova York, dos anos 1980. Ani parece estar vivendo uma história de Cinderela. Não à toa, o longa foi comparado com Uma Linda Mulher.
“Se o filme terminasse aí, seria o que Hollywood costuma oferecer. Mas eu dou mais 90 minutos de realidade depois disso, e foi proposital. Nós puxamos o tapete debaixo dos pés do espectador”, disse Baker.
É uma mudança de tom bastante significativa, marcada por uma cena maluca em que Toros, Igor e Garnik tentam conter Ani. Até aí, o filme provoca gargalhadas, com o drama da situação da garota se instalando aos poucos, aumentando até se tornar quase insuportável. No fundo, Anora é um filme sobre quem tem muito e quem tem pouco, e sobre como quem tem demais nem sempre considera os outros como seres humanos – especialmente uma trabalhadora do sexo.
Ani não é apresentada como uma vítima, porém. Ela é uma guerreira, desbocada, por vezes insuportável. A empatia que ela gera é conquistada ao longo do filme. “Eu sempre consigo detectar quando um cineasta está te forçando a gostar de um personagem, está implorando pela empatia”, disse Baker. “O personagem é santificado, colocado em um pedestal. Eu não consigo me conectar com um personagem sem defeitos, visto com condescendência. Soa falso. Eu quero ver pessoas reais. A Ani é nova-iorquina, sabe lutar, é brigona, um tanto rude. E tudo bem.”
Mesmo a relação entre Ani e Ivan é cheia de nuances – pelo menos por parte dela. “Ivan não tem consideração pelos sentimentos dela, nem a leva a sério. Mas eu acho que ela realmente vê potencial no relacionamento”, disse Baker. “Não sei se Ani está apaixonada, mas acha possível se apaixonar por Ivan e passar o resto da vida com ele. E, claro, ele oferece um estilo de vida com o qual ela jamais poderia sonhar. Mas Ani leva a sério. Daí a grande tragédia do filme. Eu não a culpo porque ela é muito jovem.”
Um elenco afinado
Para interpretar tantos matizes, o diretor precisava de uma atriz que pudesse passar da comédia para o drama e fosse real, como ele queria. Mikey Madison, de 25 anos, era mais conhecida pela série Better Things e por papéis marcantes, porém pequenos em Era uma Vez em... Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, e Pânico (2022). Foi no meio de uma projeção do filme de terror que ele viu Madison como Anora.
Em uma reunião, percebeu que a atriz era o oposto do que tinha mostrado na tela, uma adolescente cheia de atitude, petulante, com senso de humor. “Ao vivo, ela era reservada, quieta, quase tímida. Deu para perceber que na tela realmente era uma performance, o que me deu confiança de estar fazendo a escolha certa”, contou o diretor.
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Segundo a atriz, Ani ter uma personalidade tão diferente ajuda. “Para mim, fica mais fácil assim. Ao mesmo tempo, preciso despender muita energia para interpretar essas personagens.”
Ivan foi escolhido em um golpe de sorte. Baker já tinha selecionado o russo Yura Borisov (Vagão Nº 6) para viver Igor, o segurança que se identifica com Anora. Foi Borisov que recomendou Mark Eydelshteyn para viver o bilionário irresponsável. O ator russo conseguiu o papel ao mandar um vídeo de costas para a câmera, nu. Ele tinha a irreverência necessária.
Para interpretar Ani, sua primeira protagonista, Mikey Madison leu e viu documentários sobre trabalhadoras do sexo, visitou boates e conversou com algumas profissionais. Aprendeu a dançar e fez aulas de russo. Nascida e criada em Los Angeles, morou em Brighton Beach, Nova York, por um tempo para praticar o sotaque.
A cena em que ela é contida por Toros, Igor e Garnik foi difícil, mas nada comparável à sequência final, um soco no estômago cheio de ambiguidades. “As emoções vão em um crescendo até ali, fiquei nervosa porque queria fazer justiça à personagem”, disse Madison. Ani vai guardando todas as pequenas e grandes agressões, mesmo que lute e grite o tempo inteiro. Mas, no fim, Madison foi capaz de soltar suas emoções da personagem. “Fiquei aliviada porque não havia Mikey ali, era só a Ani.” Por causa dessa atuação, ela está cotadíssima a ser indicada ao Oscar, depois de concorrer ao Globo de Ouro e Bafta e ganhar diversos prêmios da crítica norte-americana.