Foi, talvez, o momento mais emocionante do Festival do Rio BR 2000. O evento promovido pelo Grupo Estação e pelo Centro de Cultura, Informação e Meio Ambiente (Cima) exibiu, no ano passado, a versão restaurada de Aviso aos Navegantes. É uma das melhores chanchadas da Atlântida. Este ano, o Festival do Rio BR teve outro momento glorioso: a exibição da versão restaurada de Tudo Azul. E, para 2002, se tudo der certo, será a vez de Carnaval no Fogo. O restauro de todos esses filmes, considerados marcos do "filmusical" nacional nos anos 50, é obra do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro. Você pode não ter estado no Cine Odeon, na memorável sessão realizada em setembro do ano passado. Também pode ter perdido a sessão realizada ao ar livre, na praia de Copacabana, zona sul do Rio. Mas agora você também pode ver como ficou a versão restaurada de um dos clássicos dessa vertente tão polêmica do cinema brasileiro. A chanchada, com raízes no humor radiofônico e na tradição do teatro de revistas, sempre dividiu os intelectuais. Já foi definida como "rádio com imagem". E muitas vezes foi desprezada por seu gosto pela paródia, especialmente de filmes americanos, o que seria sintoma de alienação cultural e dependência do produto estrangeiro. E olhem que, naquela época, o cinema de Hollywood já era hegemônico, mas ainda não dominava, como hoje, os mercados de todo o mundo. Aviso aos Navegantes, de 1950, não é uma chanchada qualquer. É uma das melhores. Passa-se no transatlântico no qual irrompe o clandestino Oscarito. Participam da trama Grande Otelo, o futuro diretor Anselmo Duarte e Eliana (Macedo), formando a dupla romântica. E há o Professor Scaramouche, vilão tão sinistro que é interpretado por José Lewgoy, com toda a vilania de que é capaz. E vale destacar que, desta vez, pelo menos, a chanchada se antecipou aos produtos hollywoodianos que seus diretores adoravam parodiar. Emilinha Borba, de capa de chuva transparente, canta Tomara Que Chova e só no ano seguinte Gene Kelly iria dançar na Metro, o memorável número que dá título ao clássico que o próprio ator, bailarino e coreógrafo co-dirigiu com Stanley Donen (Cantando na Chuva). Há outros números em Aviso aos Navegantes que podem ser creditado ao cosmopolitismo do diretor Watson Macedo, aproveitando o fato de que o filme se passa num transatlântico, durante um cruzeiro. Ele encena números cantados e dançados de C´Est Ci Bon e Che Sera Sera. A segunda, você se lembra, é a música que Doris Day canta em O Homem Que Sabia Demais, do mestre Alfred Hitchcock. Peça a especialistas que façam suas listas apontando as melhores chanchadas. Dois filmes de Carlos Manga têm cadeira cativa (Nem Sansão nem Dalila e Matar ou Correr). Talvez entre até um terceiro desse diretor (O Homem do Sputnik). Haverá dois, com certeza, de Watson Macedo (Carnaval no Fogo e Aviso aos Navegantes). E um de Moacir Fenelon, o metalingüístico Tudo Azul, se bem que, aí, as opiniões poderão ser divergentes. O filme não é da Atlântida e é o mais depressivo de todos os "filmusicais" brasileiros. Já foi chamado até de "musical baixo-astral". 60 anos de carnaval - Completam-se, em 2001, 60 anos de fundação da Atlântida. Comemorando a data, a Versátil lança o DVD de Aviso aos Navegantes, com biografias e filmografias, mas sem o making of do restauro que, com certeza, daria toda a dimensão do esforço do pessoal do Centro de Pesquisadores para restaurar não só esse, mas outros clássicos da cinematografia nacional. A BR Distribuidora tem sido parceira do CPCB nessas iniciativas. Após a reestréia da cópia nova de Tudo Azul, o esforço atual dos restauradores é para colocar nos trinques Menino de Engenho, de Walter Lima Jr., um dos títulos importantes do Cinema Novo, e Carnaval no Fogo. Esse último está sendo mais difícil. Faltam minutos preciosos que a turma do CPCB, capitaneada pela pesquisadora Myrna Brandão, está tendo a maior dificuldade para localizar. Ela aproveita, aliás, e pede ajuda de quem possuir qualquer tipo de cópia ou versão do filme de Watson Macedo. O importante é reunir o maior número possível de imagens e sons de Carnaval no Fogo. O restauro de Aviso aos Navegantes, feito com base em diversas fontes, restitui a integralidade da obra, mas não evita certa diferença de qualidade nas cenas. A alta definição do disco digital corrige alguns defeitos da cópia exibida no Rio, mas ainda não é 100%. Não importa. Oscarito e Grande Otelo se encarregam de manter o espectador cativo. Oscarito é um fenômeno. Nascido na Espanha (Oscar Lorenzo Jacinto de La Imaculada Concepción Teresa Dias), ele veio bebê para o Brasil e aqui ficou, se consagrando como o maior cômico da história do cinema no País, principalmente quando, ou se, em dupla com Grande Otelo. Uma linha do diálogo do ator em Aviso aos Navegantes é esclarecedora. Ele diz (seu personagem) que é "um toureiro avacalhado de Cascadura". Há, no filme de Macedo, o fascínio dos atores. E há a personalidade do próprio diretor. Macedo forma com Burle, Fenelon, Manga, Lulu de Barros, Victor Lima e J. Rui Costa uma categoria especial. Esses sete são considerados os monarcas do riso, os reis da chanchada, se bem que Burle, por sua preocupação social, e Fenelon, por não ter a alegria indispensável ao gênero, tendam a ser meio que escanteados. Os reis, mesmo, são Watson Macedo e Carlos Manga, mas foi Lima o mestre da tendência afinal dominante no estúdio. A Atlântida, por meio da chanchada, erigiu uma estética da paródia cujos exemplares mais famosos talvez estejam nos roteiros que ele escreveu para Manga. Esse levou a chanchada ao seu apogeu, mas foi Macedo quem depurou a fórmula em Carnaval no Fogo. Aviso aos Navegantes já é o day after de Carnaval no Fogo, faz parte do apogeu. E Oscarito e Grande Otelo são geniais. Aviso aos Navegantes. Brasil, 1950. Direção de Watson Macedo. Distribuição Versátil. Nas lojas, por R$ 32.