Clássico do Dia: ‘Bye Bye Brasil’ foi despedida de um país e aceno ao futuro

Todo dia um filme clássico é destacado pelo crítico do ‘Estado’; como este, de Cacá Diegues, que completa 80 anos no dia 19

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Algumas das mais belas cenas do cinema brasileiro, momentos definidores da cultura e da identidade nacionais, estão em filmes de Cacá Diegues. Basta lembrar de Gracinda Freire recitando a dor humana naquele teatro de revista que, de repente, vira palco de tragédia em Chuvas de Verão, de 1978. Ou de Zezé Motta, com a carta de alforria na mão, correndo para a igreja seguida pelas mucamas e a porta se fecha na cara delas em Xica da Silva, dois anos antes. São cenas de antologia, mas tem uma melhor ainda – em Bye Bye Brasil, de 1980. Carlos José Fontes Diegues, Cacá para os íntimos (e para sua imensa legião de espectadores), criou a carvana Rolidei, que excursiona pelo Brasil.

Lorde Cigano, Salomé, o sanfoneiro Ciço – José Wilker, Betty Faria e Fábio Júnior. Ainda eram os duros anos da ditadura militar, mas, sob Ernesto Geisel, começara a distensão lenta, gradual e segura. A caravana chega a essa cidadezinmha perdida e, pela primeira vez, em praça pública, o extraordinário e inominável Lorde Cigano, imperador dos mágicos e videntes, apresenta o seu fabuloso número que já havia assombrado as plateias do Rio e de São Paulo. E ele faz nevar no sertão. Zaira Zambelli, como Dasdô, a mulher de Ciço, prova os flocos e diz que eles têm gosto de coco. A magia e seu reverso, o desmonte da mágica. E José Wilker, shakespearianamente, recita - não o 'Ser ou não ser'. Lorde Cigano diz - “Neva na França, na Inglaterra, nos EUA, em todo o mundo civilizado. E agora neva no sertão.” Bem-vindo à civilização, Brasil. Havia beleza na cena, mas também algo meio nostálgico. Porque o filme carrega, desde o título, Bye Bye, a ideia da despedida.

Cena de 'Bye Bye Brasil', de Cacá Diegues Foto: Paramount Home Entertainment

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A caravana, com seus pobres (grandes) artistas – Ettore Scola talvez tenha visto Bye Bye Brasil para realizar A Viagem do Capitão Tornado, anos mais tarde, em 1990 -, resiste, mas o avanço é inexorável. Em pleno sertão, a Rolidei encontra a população reunida em torno de um aparelho de TV, na praça. Cacá já contara uma história do Brasil pelo filtro da Rádio Nacional em Os Herdeiros, de 1969. Agora, via a televisão virar emblema de um projeto de modernização e integração nacionais, como a Transamazônica. A grande estrada que rasgara a floresta prometendo progresso trouxe desmatamento e um contingente imenso de marginalizados, como mostraram Jorge Bodansky e Orlando Senna em Iracema, Uma Transa Amazônica, de 1974. A Globo, sinônimo de TV no Brasil, crescera sob o regime de exceção, mas essa história não é assim simples. Ela abrigara grandes artistas em suas hostes.

Eduardo Coutinho, João Batista de Andrade e outros fizeram no Globo Repórter alguns dos maiores, e mais críticos, documentários do cinema brasileiro. Impossível não pensar em Valerio Zurlini, o grande diretor italiano de Verão Violento, de 1959, e Dois Destinos/Cronaca Familiare, de 1962, que dizia - “O cinema é arte, uma grande arte que conseguiu produzir suas obras-primas sempre de maneira semi-clandestina, ou por acaso, ou embaralhando as cartas no último momento, assim driblando com justo cinismo as intenções ou a fraca inteligência dos que só contam com a gente para ganhar dinheiro. "Havia ambiguidade na terna despedida de Cacá, na forma como seus artistas, e o Brasil, se reinventavam no desfecho. Cacá fez mais dois filmes nos anos 1980, Quilombo e Um Trem para as Estrelas, antes de iniciar os 90 com Dias Melhores Virão. Já era o subtexto embutido em Bye Bye Brasil. É o que ele deve estar pensando agora, em pleno isolamento social.

Brasileiro, profissão esperança. Os dias melhores sempre estarão no horizonte. Como em outro filme de Cacá, num período sombrio da ditadura – em 1972 – estamos nos guardando para ‘quando o carnaval chegar’. Bye Bye Brasil foi um grande sucesso nacional e internacional. A trilha de Chico Buarque de Holanda contribuiu para isso:

Oi coração

Não dá pra falar muito não

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Espera passar o avião

Assim que o inverno passar

Eu acho que vou te buscar

Aqui tá fazendo calor

Deu pane no ventilador

Já tem fliperama em Macau

Tomei a costeira em Belém do Pará

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Puseram uma usina no mar

Talvez fique ruim pra pescar

Meu amor

no Tocantins...

Mas o encantamento vinha dos personagens. Do cruzamento de classes que atravessa o Brasil e o cinema de Cacá.Salomé, Lorde Cigano, Andorinha, Ciço, Dasdô tinham a cara desse País com que o público podia se identificar. Eram tempos de brasilidade, Miami ainda não despontara como pote de ouro no fim do arco-íris. Mambembes, pequenas trapaças, grandes corações. O amor pela cultura popular, que Cacá absorveu do pai, que era antropólogo. Saudades da lona do circo, sob a qual se abriga até hoje – O Grande Circo Místico.Bye Bye Brasil é tão grande, tão complexo que pode ser visto de forma diferente. Na Europa, a crítica entusiasmou-se e os franceses o viram como um filme triste, como o adeus de Cacá ao país que vai desaparecendo. Nos EUA, pelo contrário, foi saudado como alegre, o anúncio de um novo mundo, de um novo tempo. É tudo isso, as duas coisas. Tal é o seu fascínio e a sua grandeza.

Onde assistir:

  • Looke
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