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Coautor de Batman, Bill Finger enfim recebe crédito após 77 anos

Até então, o crédito da criação do Homem-Morcego foi apenas para Bob Kane, o desenhista, ignorando o papel de Finger, o escritor

Por João Villaverde
Atualização:

NOVA YORK - A chegada de um novo filme com Batman traz também o primeiro registro oficial nas telas com o nome de seu cocriador, esquecido há quase oito décadas: Bill Finger. Por mais de 77 anos, Batman esteve nos quadrinhos, na televisão e diversas encarnações no cinema, mas em todas essas aparições o crédito de sua criação sempre foi apenas para Bob Kane, o desenhista, ignorando o papel de Finger, o escritor. Uma das mais longas sagas de direito autoral será concluída quando surgirem os créditos “Batman criado por Bob Kane e Bill Finger” ao final de Batman x Superman.

Juntos, eles criaram um dos personagens mais icônicos do mundo dos quadrinhos e um dos símbolos da cultura pop moderna. Foi no início de 1939, no Bronx, bairro de classe média baixa em Nova York, que Finger, aos 25 anos, e Kane, 23, desenvolveram o visual do personagem. Depois, Finger criou sozinho a origem do herói, deu nome à cidade de Gotham City, e escreveu outros 1,5 mil roteiros para edições de Batman pelos 27 anos seguintes. O problema é que Kane vendeu o personagem para a editora DC Comics e fechou um contrato de exclusividade. Anônimo e esquecido, Finger morreu sozinho em 1974. Famoso, Kane viveu em mansões em Hollywood, na Califórnia, e ainda viu o renascimento de Batman com os filmes de Tim Burton, com Michael Keaton e Jack Nicholson, antes de falecer em 1998.

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A história da falta de crédito a Finger começou ainda nos anos 1960, numa das raras ocasiões em que o introvertido escritor concedeu entrevista informando suas criações. No entanto, por força do contrato fechado – e constantemente renovado – entre Kane e a DC Comics, o crédito nunca chegou. Décadas depois, em 2003, foi criado o Bill Finger Award, o maior prêmio da indústria de quadrinhos voltado aos escritores. Pouco depois, Batman voltou aos cinemas com os blockbusters dirigidos por Christopher Nolan entre 2005 e 2012, e, novamente, apenas Kane foi creditado. Agora, pela primeira vez, a justiça começa a ser feita.

“Já era hora. Ver isso acontecer é como um sonho, depois de tantos anos”, disse ao Estado o historiador de cultura pop Marc Tyler Nobleman, formado pela Universidade Brandeis, de Boston, e autor de Bill, the Boy Wonder (2012), livro que é resultado de uma pesquisa de seis anos sobre Bill Finger. Em sua investigação, Nobleman descobriu que Finger deixou herdeiros, fato desconhecido até pela DC Comics. O filho único do escritor, Fred Finger, era homossexual e morreu em 1992, deixando a pequena parcela de royalties devidos ao pai para seu parceiro. Mas Fred teve na juventude uma filha, Athena, que nasceu dois anos depois da morte do avô. A descoberta de Nobleman e seu livro amarrando a história de Bill Finger fizeram retomar um movimento pelas redes sociais. Ao final, uma negociação foi estabelecida entre a DC e Athena, que passou a receber os royalties do pai, e pela primeira vez o crédito oficial pela criação de Batman passou a ser registrado a partir das edições de outubro do ano passado. Agora, ponto máximo, o crédito chegará ao cinema. 

“Com a internet e o fato de que os criadores culturais modernos são, de modo geral, conhecedores de direitos de propriedade intelectual, acho que veremos cada vez menos casos de legados negados na indústria cultural. O próprio fato de histórias como a de Bill Finger ganharem mais evidência também fortalece essa percepção”, diz Nobleman. 

Por que somente Kane teve crédito desde o início? Finger e Kane reuniram-se em um fim de semana em 1939, quando Finger aprimorou e efetivamente alterou o design original do personagem, mas, na segunda-feira seguinte, somente Kane foi vender Batman para companhia que hoje se chama DC Comics. Não havia sequer uma história ainda para o personagem, era basicamente o desenho do herói e o nome. A razão para Finger não ter ido com Kane até a DC infelizmente se perdeu com o tempo e não pude reconstituir, mas presumo que o acordo tácito entre os dois era de que Kane era o “chefe” daquele arranjo. Além disso, como era comum na época, uma pessoa fechava um contrato estabelecendo um tipo de crédito que basicamente excluía os demais envolvidos no processo criativo.

Ben Affleck interpreta o herói em cena de 'Batman vs Superman: A Origem da Justiça' Foto: Warner Bros

Em sua pesquisa de seis anos, que rendeu o livro, o senhor conseguiu confirmar com exatidão quais foram as mudanças sugeridas por Finger ao conceito original do personagem de Kane? O desenho original de Kane apresentava um personagem loiro com uma máscara semelhante ao Zorro e uma roupa predominantemente vermelha. Finger sugeriu que o personagem fosse ameaçador, com roupa em cores escuras, como o preto, e uma máscara marcante, seguindo o rosto de um morcego. Quando Kane fechou com a DC, Finger escreveu a primeira história do personagem e também criou sua inovadora origem. Batman não seria um alienígena, como Superman, ou teria super poderes, como quase todos os heróis que seriam criados desde então. Finger criou um homem como qualquer outro, mas que tinha uma motivação forte para combater o mal: quando menino, viu os pais serem assassinados por um criminoso. 

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Além disso, o que mais Finger criou para o personagem? Ele escreveu a primeira história e outras 1,5 mil ao longo dos 25 anos seguintes. Foram criados neste caminho Robin, Comissário Gordon, Coringa, Pinguim, Mulher Gato, Espantalho, Charada, o Batmóvel, a Batcaverna, além de dar os nomes de Bruce Wayne (Batman), Dick Grayson (Robin) e Gotham City. Ele também apelidou Batman de “o cavaleiro das trevas”. Enquanto isso, Bob Kane desenhou as primeiras histórias, mas rapidamente contratou “desenhistas fantasmas” para fazer o trabalho dele. Kane também nunca escreveu uma única história de Batman em toda a sua vida.

O senhor mencionou que Finger criou o Coringa. Ele é provavelmente o vilão mais famoso das histórias em quadrinhos. De onde ele tirou esse personagem? Bob Kane escreveu em sua autobiografia que ele e Bill Finger criaram o Coringa, mas o desenhista Jerry Robinson (um dos primeiros “fantasmas” contratados por Bob para desenhar os roteiros para as revistas do Batman) sempre disse publicamente que o Coringa é, na realidade, uma criação dele e de Bill Finger. A única certeza, portanto, é que Finger foi o cocriador. Além disso, está confirmado que Finger escreveu sozinho a primeira história com o Coringa, em 1940. Visualmente falando é possível, a partir de documentos da época, creditar a Finger a ideia do rosto do personagem também. Ele se baseou em duas imagens arrepiantes mostradas a Kane e Robinson: o mascote da corrida de obstáculos de Coney Island e o ator Conrad Veidt maquiado para seu personagem no filme O Homem que Ri (1928), o clássico do expressionista alemão Paul Leni. Junto com essas referências, Robinson misturou o visual da carta do Coringa, típica de jogos de cartas. 

Como era o ambiente de trabalho nos quadrinhos em Nova York naqueles primeiros anos? Como a maioria dos escritores do período, para não dizer todos, Finger era um freelancer: algumas vezes, ele ia até o escritório onde os criadores se reuniam, mas ele desenvolvia seus roteiros de sua casa mesmo. Era do tipo “reverencial” no ambiente de trabalho. Enquanto a maior parte dos editores gostava dele, especialmente Julie Schwartz, um em particular era brutal com ele (e com os demais criadores): Mort Weisinger. Jerry Robinson lembrava de Weisinger humilhando Finger na frente de outros colegas. Acredito que esse tipo de tratamento decorria de um pensamento que Finger e outros tinham na época, de que uma reclamação ou confronto poderia significar menos trabalho para ele.

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E como era método de trabalho de Finger? Ele era meticuloso. Todos que trabalharam com ele registraram isso em escritos da época ou em depoimentos a mim. Ele pesquisava muito e entregava seu roteiro cheio de referências, como imagens de jornais e revistas. Por outro lado, isso rendeu a ele a reputação de estar sempre atrasado na entrega de roteiros. Ainda assim, os editores continuaram buscando seu trabalho por quase 27 anos: melhor atrasado, mas excelente, do que na hora certa e medíocre. Parafraseando Jerry Robinson, Finger foi provavelmente o melhor criador de quadrinhos de sua geração e o maior de todos os tempos. Não é uma surpresa que os editores pediam seus roteiros para diversas outras revistas e personagens. 

Ele escreveu histórias do Batman entre 1939 e o fim de 1965, quase 27 anos. Por que parou? Depois que Finger e outros freelancers do mundo dos quadrinhos em Nova York começaram a demandar planos de saúde, nos anos 1960, os pedidos para trabalhos começaram a secar. A nova guarda de criadores – desenhistas, roteiristas etc. – estava chegando com tudo. Finger chegou a voltar a ser escalado a escrever histórias para a DC Comics no início da década de 1970, mas eram roteiros para revistas de mistérios, não mais do Batman. 

Quando ele morreu, em 1974, qual era sua situação? Embora ele não fosse do tipo que reclamava, muitas fontes especularam que sua situação profissional foi destruindo ele por dentro ao longo das décadas. Nos anos imediatamente anteriores à sua morte, ele passou por diversos problemas cardíacos. Não sou médico, mas não ficaria surpreso que a falta de crédito e a diferença de renda entre ele e Bob Kane tivesse um peso psicológico e mesmo físico. Além disso, ele estava virtualmente quebrado – divorciado pela segunda vez, separado de seu único filho e vivendo sozinho. Quando faleceu, Bill Finger não ganhou obituários, não teve um funeral ou uma lápide. 

O crédito começou nas edições de outubro de 2015 das HQs e agora, com a chegada do filme nos cinemas. A missão de trazer justiça na qual o senhor se engajou está concluída? O principal item na lista poderá, agora, ser riscado. Mas sinto uma obrigação cultural de continuar a contar a história de Bill Finger. Meu objetivo mais urgente agora é conseguir um memorial permanente para ele em Nova York, onde ele cocriou Batman, e também possivelmente em Denver, onde nasceu, em 1914.

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