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Estreia ‘São Silvestre’, o melhor filme brasileiro do ano

Em filme sobre a tradicional corrida, diretora faz da música a alma da criação

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

São Paulo e a música nutrem a obra de Lina Chamie. A topografia da cidade não fornece somente uma paisagem. Torna-se personagem. E a música... O cinéfilo lembra-se. Em Tônica Dominante, de 2000, Fernando Alves Pinto desce a Xavier de Toledo deserta, num amanhecer, rumo ao Teatro Municipal. A cena não é narrativa, mas visa provocar uma emoção. Mostra o personagem em seu ambiente – a cidade, o teatro. E a música, que faz parte da vida dele – é instrumentista –, superpõe-se aos ruídos urbanos, inunda a trilha. Erik Satie, uma peça para piano. Em São Silvestre, que estreia nesta sexta, 27, os corredores que participam da prova fazem o percurso final da Xavier de Toledo e passam pelo glorioso Municipal. Entra a música de ópera. O efeito é mágico. E um dos corredores é ele – Fernando Alves Pinto, o ator-fetiche, o alter ego de Lina.

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Saem os carros, entram as pessoas. Desde 1925, ano de sua criação, a Corrida de São Silvestre integra o calendário e a paisagem de São Paulo. A mais famosa e tradicional do Brasil e da América Latina, compõe-se de um trajeto de 15 km através da área central da cidade. No início, era disputada à noite, e terminava na virada. Para encaixá-la em sua grade, a Globo fez com que fosse disputada à tarde, para não prejudicar sua programação noturna. A cidade e o Centro, 364 dias por ano, são ocupados por carros. No 365.º, o humano tem preferência.

Lina Chamie ama São Paulo, e não é possível amar a cidade sem amar a São Silvestre. Antes, era só uma corrida de brasileiros, e de homens. A participação oficial das mulheres começou só em 1975, 50 anos mais tarde. E a corrida, claro, internacionalizou-se. São Paulo é uma cidade cosmopolita. Abriga em seu seio – mesmo que, às vezes, os rejeite – imigrantes de várias latitudes e etnias, do País e de fora. Lina já contou que morava na Av. Paulista, no prédio contíguo ao da TV Gazeta. A São Silvestre estava sendo disputada lá fora, e ela sabia disso. Mas só muito recentemente ela desceu, e estava ali, na boca da chegada. O que viu, transtornou-a, como experiência humana.

 

  Massa humana. Existem os grandes corredores – o queniano Paul Tergat detém o recorde de cinco vitórias na prova masculina; a portuguesa Rosa Mota é recordista feminina, com seis vitórias. Existem os anônimos que se esforçam para vencer, até como forma de adquirir notoriedade. E existe uma imensa massa humana que participa da corrida como quem vai a uma festa. Chegam estropiados, mas felizes. Diante do que viu, Lina – diretora, autora – pensou com olho de cinema. Aquela explosão de humanidade dava filme, tinha de dar, e ela imediatamente quis fazê-lo. A ideia amadureceu. De cara, a tentação é definir São Silvestre como um documentário, e Lina documenta a corrida. Mostra o começo, o fim, segue a trajetória dos corredores, recria a topografia da cidade através do esforço humano, focaliza até os campeões. Tudo isso relaciona São Silvestre ao documentário, mas logo a ficção se impõe. São Silvestre deixa de ser um híbrido. Vira ficção. A presença de Fernando Alves Pinto e a trilha são fundamentais para isso. O que faz Fernando na corrida? Representa um personagem? É ele próprio em cena? Deve ser o sonho de todo ator – fazer um personagem levado ao limite, sem que se saiba onde começa um e termina o outro. Fernando Alves Pinto preparou-se durante seis meses para fazer a prova. Lina colou uma câmera ao seu corpo. Para testar a viabilidade da filmagem em tempo real, ela foi com sua câmera, e seu ator/personagem, integrar-se ao grupo dos que, nos últimos dias antes da prova, treinam para ela. Ocorreu algo mágico – numa curva, o sol despontou. E a aurora, no imaginário da musicóloga Lina Chamie, evoca Mahler, a Sinfonia nº 1. É como ela gosta de dizer – “A música vem, a música surge quando você acorda de manhã, quando está no banheiro. Não é na hora da montagem. O raciocínio intelectual, sim, vem depois. Logo que vi o sol nascer, me veio a Primeira de Mahler. O próprio Mahler fala dessa sinfonia como o despertar da natureza. Mas a música tem vida própria. Independentemente do que ele diz, ela contém o despertar e foi o que me veio, é o que vem sempre que vejo o nascer do sol. Quando a corrida dá a largada, aquilo é um despertar, uma aurora.” A diretora fala numa costura entre intelecto e sentimento. E diz algo muito importante: “O intelecto sozinho não dá conta de um filme. O fio condutor é a emoção”. Tempo. Pensando, sendo racional, pode-se dizer que o cinema e a música são similares, porque acontecem no tempo – e, no caso da São Silvestre, a questão do tempo também é fundamental. O corredor que corre para vencer, o que corre pelo desafio ou pelo prazer, todos enfrentam o desafio do tempo para finalizar a provar, não importa que sejam minutos, ou horas. Fernando Alves Pinto corre, e enquanto o faz, estirada a corda do cansaço e da resistência, ele balbucia palavras que são difíceis de entender e que, na verdade, você não precisa se preocupar em decifrar. O ‘texto’, em São Silvestre, o filme, não é o mais importante. Mas, assim como a Primeira de Mahler dá o start, a corrida tem um ponto de chegada, e a trilha, aí, é Poema do Êxtase, de Alexander Scriabin. Há quem diga – críticos e historiadores musicais – que o opus 54 do compositor russo “eleva-nos ao maior grau do conhecimento humano, a intuição”. Scriabin foi um místico que tentou simplesmente decifrar os mistérios do homem e do universo. Que Lina Chamie o tenha escolhido para pontuar essa vitória do esforço humano que é a chegada na São Silvestre diz bem da humanidade – e até espiritualidade – que atravessa seu filme. Algum espectador atraído por esse texto e que vá ver o filme tem de saber que não vai encontrar nenhuma história (nem a da corrida). O filme propõe uma viagem interior – na cidade, no corpo e no rosto dos corredores, na música. Pode não ser nada, se você não entrar no clima. Mas, se entrar, é tudo. O cinema tem nos levado a espaços e alturas inimagináveis. Talvez seja necessário ser um louco sonhador – como Lina, como Scriabin – para viver tão intensa epifania.

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