Festival Olhar de Cinema apresenta filmes intensos em Curitiba

Obras de Jean-Marie Straub, Lav Diaz e Alexey Fedorchenko são destaques do primeiro dia do evento

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio e CURITIBA
Atualização:

Primeiro dia no Olhar de Cinema e já um mergulho profundo no cinema "de autor". Jean-Marie Straub (Kommunisten), Lav Diaz (Storm Children) à tarde, e, à noite, Alexey Fedorchenko, Anjos da Revolução. Ufa! Três programas intensos. Porém recompensadores, é o mínimo que se pode dizer. 

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Em Kommunisten, Straub une novas filmagens a algumas sequências conhecidas de seus filmes anteriores, como Operai e Contadini (Operários e Camponeses). Como sabem o que conhecem seu trabalho (feito com Danièlle Huilllet até a morte da parceira, em 2006), sabe da opção por um cinema de leitura de textos e imagens. No caso, textos de Malraux, Hölderlin e Vittorini, entre outros.É um cinema libertário, que fala da exploração do homem pelo homem (homo homini lupus, diziam os latinos) e aponta vias para sua superação. Portanto, cinema político, apontando para este antigo sonho da liberação econômica do ser humano, devidamente arquivado em nossa época de monopólio das ideias neoliberais. Mas, enfim, ainda prestes a ser sonhado por quem nunca desiste, e artistas pertencem a essa etnia dos insistentes. Do ponto de vista do espectador, é um cinema considerado árido por muitos, mas que conserva seu agudo senso poético. Isto é, confia no poder das imagens, mas também no das palavras, para desestabilizar lugares-comuns que passam por verdades e indissolúveis. Tudo é História, diz Straub.

Em Lav Diaz, famoso pela extensão de seus filmes, o fluxo narrativo também não é dos mais usuais. Em Storm Children, Book 1, temos o que pode ser considerado um curta-metragem para os padrões de Diaz - "apenas" 143 minutos. Hora e tanto de imagens impressionantes, em preto e branco,cujo sentido descobrimos aos poucos. No princípio, vemos cenas de enxurrada numa cidade e crianças que procuram alguma coisa em meio ao lixo trazido pelas águas. Depois, as mesmas crianças escavam num aterro, em busca de não se sabe o quê. Em seguida, mais cenas impressionantes. Cascos de navios, encalhados na terra e favelas que parecem proliferar em torno desse cemitério de navios, com as pessoas buscando peças que, supõem, tenham algum valor. Três quartos do filme passam-se sem qualquer diálogo ou explicação. Depois, ouvimos vagas alusões a um tufão que ocasionou mortes, jogou navios ancorados em cima das casas e deixou atrás de si um rastro de miséria e destruição. Foi o furacão Yolanda, que se abateu sobre as Filipinas em 2013. O filme é rodado em Tacloban City, devastada pelo tufão. 

O notável de Storm Children é ir apresentando, sem nada explicar, os bastidores de toda uma vida social baseada sobre a garimpagem de restos, com vistas à sobrevivência. Quando sabemos que esses restos foram provocados por uma catástrofe natural, essa procura ganha novos significados. Em todo caso, as pessoas estão lá, jogadas à própria sorte, haja ou não furacões e tormentas. E, nem por isso, o impulso lúdico das crianças se esgota na luta pela sobrevivência física. Afinal, os cascos dos navios canibalizados continuam lá e, além de fornecerem matéria para ganho de alguns trocados, servem também como trampolins. O filme é lindo e pungente. 

Já Fedorchenko, premiado em festivais de primeira linha (como Veneza), trabalha com o binômio imagens deslumbrantes e mais registro mágico-realista. Não que ele seja um Gabriel García-Márquez eslavo, mas o fato é que suas histórias são pouco lineares e nem sempre obedecem à lógica causal a que se está habituado. O ponto de partida é mais que estimulante. Vive-se o ano de 1934 e duas populações do norte da Rússia, Khanty e Nenets, não aceitam a nova ordem comunista. Vivem sob o domínio de xamãs e creem numa ordenação mágica da realidade. Não estão preparados para o materialismo dialético. Para submetê-los, parte de Moscou uma trupe de seis artistas metropolitanos - um compositor, um escultor, um diretor de teatro, um arquiteto, um diretor de cinema - todos chefiados por uma bela comissária do povo, Polina. 

Narrado em tom de alegoria, Anjos da Revolução relata o encontro (áspero) entre duas culturas não comunicantes. Ilustra a dificuldade de imposição de valores revolucionários que se acreditavam universais a povos de outra mentalidade. E mostra quanto esse encontro de culturas, às vezes celebrado como estimulante de per si, pode também ter de sangrento e brutal. É um estudo radical da irredutibilidade do humano sob certas circunstâncias. Narrado com igual dose de radicalidade, o filme pode ser acusado de tudo, menos de banal. Encanta-se com a obra, com aquilo que ela traz de original, de ousado e belo. Mas deve-se admitir que não é nada fácil de seguir. Não se trata propriamente de um passeio cinematográfico, mas de uma excursão invernal para a qual deve-se armar de determinação. 

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