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O Festival de Veneza aos olhos do crítico

O crítico de cinema do Estado comenta os filmes de Ang Lee, Takeshi Kitano, a boa recepção a Kátia Lund e a assustadora segurança no Lido

Por Agencia Estado
Atualização:

Ang Lee e seus caubóis gays eram esperados como a sensação do ano em Veneza, o chamado filme-escândalo que não pode faltar a qualquer festival. Mas o que se viu com Brokeback Mountain foi outra coisa - uma delicada história de amor, que envolveu a platéia e ganhou aplausos calorosos no final. Só que essa história de amor era entre dois machões (Heath Ledger e Jake Gyllenhaal os interpretam), que se conhecem pastoreando ovelhas e estendem seu affair por mais de 20 anos. Ang Lee, que já havia mexido no tema há muitos anos com A Festa de Casamento, mostra aqui a mesma mão leve para tratar de temas considerados espinhosos. Um bonito filme. Já a decepção veio de Takeshi Kitano, que não estava na lista de competição mas apareceu em Veneza com um filme surpresa, com nome provisório de Takeshi´s. É uma espécie de balanço de obra, uma reflexão sobre um percurso de artista, como fez Fellini com seu Oito e Meio. Mas a comparação pára por aqui, já que quando se perguntou a Kitano sobre a influência do diretor italiano sobre seu trabalho, limitou-se a responder que admirava demais Fellini, mas não entendia seus filmes. No seu, Kitano interpreta dois papéis - o dele mesmo (uma figura popular e poderosa no Japão), e um homem comum, com o cabelo pintado de loiro, como ele próprio se apresentou no Lido. O tema do duplo surge assim, cheio de promessas, no começo do filme. Mas depois ele vai caindo num exercício fútil de auto-referência e metalinguagem, que acaba por cansar. A expectativa inicial se frustrou e o filme recebeu frágeis aplausos no final. Apenas protocolares, e olhe lá. É meio que chover no molhado dizer que Manoel de Oliveira é um mestre do cinema. Assim, ele é considerado em Veneza. Ano passado ganhou um Leão de Ouro pela carreira e agora está de volta, na competição, apresentando seu Espelho Mágico, baseado no romance A Alma dos Ricos, da antiga colaboradora. a escritora portuguesa Augustina Bessa-Luís. A sensação do espectador diante desse filme é estranha. A própria história já é surpreendente: Alfreda (Leonor Silveira) é uma ricaça cuja maior aspiração é ser contemplada com uma aparição da Virgem Maria. Não se conforma que Nossa Senhora tenha se deixado ver por uns "pastorzinhos lá de Fátima" e não venha a ela, linda e rica. O outro personagem é Luciano (Ricardo Trepa), que sai da prisão, onde estava por um crime que não cometeu e vai trabalhar com Alfreda. O filme se desenvolve num clima de obsessão religiosa e profundidade filosófica, como se Oliveira estivesse tentando entender o sentido mais profundo da existência humana e atrás dele tateasse por meio de suas imagens e diálogos. É inquietante e brilhante. Em especial pela maneira como não concede nada em termos de espetáculo. Vários planos duram às vezes longos minutos, com a câmera parada diante dos atores que dialogam. Concessão comercial: zero. É um cinema do espírito, austero como um claustro lusitano, cheio de pontas de luz e sombra. Lima Duarte está no elenco, no papel de um padre. Já havia trabalhado com Manoel em Palavra e Utopia. Brasil - Além de Lima, outro representante brasileiro apareceu na fita. Trata-se do episódio Bilu & João, de Kátia Lund, presente no filme coletivo All the Invisible Children, sobre os problemas da infância em vários países do mundo. Quem são essas crianças invisíveis? As que se envolvem na guerra, como no episódio de Mehdi Charef de Burkina Fasso, ou as que são filhas de drogados, contaminados pela Aids, como no de Spike Lee. Completam o time de diretores Emir Kusturica, Jordan & Ridley Scott, Stefano Veneruso e John Woo. Na história de Kátia Lund, um menino e uma menina paulistanos sobrevivem da venda de materiais recicláveis, papelão, latinhas de refrigerante, etc. Sem apelo melodramático, mostra a dinâmica da pobreza e de como ela se auto-alimenta num ciclo sem fim. Foi bastante aplaudido. Assustadoras medidas de segurança - Este ano, o Lido de Veneza não é apenas o encontro do que (se supõe) seja o melhor da cinematografia mundial. É também objeto de atenções especiais no que diz respeito à segurança. Depois dos atentados em Londres, ficou no ar que a Itália passara a ser a bola da vez como alvo do terrorismo. Afinal, teimosamente Berlusconi ainda mantém tropas no Iraque. Assim, os organizadores do Festival resolveram se precaver contra qualquer tentativa de atentado. Afinal, seus pontos fortes, a presença de gente rica e famosa, e mais a cobertura da mídia em escala mundial, tornaram-se exatamente seus fatores de perigo. Resultado: o coração do evento - o Palácio do Festival, onde são realizadas as sessões de gala; o antigo Cassino, onde tudo acontece, de projeções secundárias a coletivas de imprensa, e mais a imensa sala Palagalileo, onde se projetam os filmes para a imprensa mundial - foi, como dizem os italianos, "blindado". É uma dificuldade para entrar e sair. Todos têm de se submeter aos detectores de metal, bolsas são revistadas e mochilas foram banidas. O lugar pulula de carabinieiri (os policiais italianos) e agentes a paisana. Helicópteros sobrevoam constantemente o local. Há um clima de guerra no ar, as pessoas reclamam do desconforto mas, no fundo, todo mundo compreende que são medidas inevitáveis. Mas a presença de tantos homens com metralhadoras nas mãos não deixa de ser um toque sinistro para uma atividade tão festiva quanto uma mostra cinematográfica de alcance mundial.

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