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O filme ‘A Marcha’ tem sabor de 'Selma' para os franceses

Longa de Nabil Ben Yadir evoca movimento por direitos de descendentes de árabes nos anos 1980

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Para o espectador que assiste hoje a A Marcha, o longa de Nabil Ben Yadir talvez faça lembrar Selma, de Ava DuVernay, que foi indicado para o Oscar de melhor filme, em fevereiro. Não a mesma história, mas uma parecida, de marcha por direitos civis – basta substituir os afrodescendentes liderados pelo pastor Martin Luther King no filme norte-americano pelos muçulmanos que, na França do então presidente François Mitterrand, em 1983, marcharam contra o racismo.

A Marcha começa nos Miguettes, um subúrbio de Paris, onde um jovem árabe de segunda geração, Mohammed, é atingido no peito por um disparo da polícia quando tenta ajudar o amigo, Hassan, atacado por cães da instituição. O fato gera revolta na comunidade e os mais radicais exigem uma retaliação, mas o próprio Mohammed, inspirado no exemplo de resistência pacífica do ‘Mahatma’ em Gandhi, de Richard Attenborough, que acabara de estrear – e ganhara o Oscar – acena com a marcha do título. Ela começa tímida, com poucos participantes, em outubro, e chega a Paris, em dezembro, como uma massa humana de 100 mil participantes, todos clamando que os árabe-franceses, a despeito da cor da pele, não são perigosos e devem ter os mesmos direitos.

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Quando se deram os fatos narrados em A Marcha, a esquerda socialista estava no poder e um movimento popular transformara Ruhollah Khomeini no líder supremo que, a distância, em 1979, derrubara o Xá do Irã e instituíra no país a República dos aiatolás. Haviam se passado 30 anos da marcha e o filme do diretor belga surgia como uma celebração.

Dois anos depois, quando A Marcha chega aos cinemas brasileiros, a causa pode continuar justa, mas os sangrentos acontecimentos em Paris, ao longo deste ano, de alguma forma produziram o acirramento da tensão contra o Magreb. É o que talvez, apesar de tudo, torne o programa mais interessante. O apelo ao diálogo, o reconhecimento do outro, há muito para fundamentar a distensão no filme de Nabil Ben Yadir.

Há um esforço muito honesto de reconstituição e veracidade, com a participação de atores de prestígio – além de talentosos. Tewfik Jallab, que faz Mohammed, havia coestrelado pouco antes Né Quelque Part com Jamel Debbouze, que aqui faz Hassan. Debbouze é um astro na França e ao redor dos dois, em participações muitas vezes episódicas, destacam-se Lubna Azabal (de Incêndios), Hafsia Harzi (de O Segredo do Grão) e Olivier Gourmet. Mas o filme, por qualidades que tenha, tem também defeitos, e graves. Centrado na marcha, ele cria dois ou três personagens de certa densidade (Mohammed, Hassan, etc.) e utiliza todos os demais para fazer avançar o relato, equilibrando a macro-história com as outras, micro, que vão dando sustentação cômica e/ou dramática ao relato. Até pela presença de Jamel Debbouze, o mix humor/drama está na essência de A Marcha.

Os encontros pelo caminho expõem as contradições de um país dividido entre a vanguarda socialista no poder e a maioria silenciosa conservadora, quando não francamente reacionária. O que realmente aumenta o envolvimento é a escalada racista – como a repercussão da morte do jovem árabe lançado pela janela do trem. A todas essas, o filme, com roteiro de Nadia Lakhdal, não idealiza e mostra as fissuras do grupo. No começo, o padre católico (Olivier Gourmet) é decisivo para dar união e legitimidade aos manifestantes, mas, com o tempo, uma ala, não necessariamente radical, começa a se sentir incomodada por ter um cristão como porta-voz do Magreb. A despeito de tudo o que ele fez, Kheira (Lubna Azabal) lhe joga na cara, que, como ‘branco’ e católico, o padre não pode representá-la. A marcha antirracista deixa claro que boa vontade não é tudo nem resolve dissensões. O racismo pode estar em toda parte, e por quem não se espera.

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