"Violação de Conduta" põe a era Bush em debate

Novo thriller de John McTiernan, com Samuel L. Jackson e John Travolta, passou pelo Festival do Rio e estreou em circuito comercial

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Por Agencia Estado
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John McTiernan fez dois dos melhores filmes de aventuras dos anos 1980 - Predador, com Arnold Schwarzenegger, e o primeiro Duro de Matar, com Bruce Willis. Com eles formatou o que viria a ser o cinema de ação hollywoodiano pós-Guerra nas Estrelas. Os produtores ganharam um monte de dinheiro com ele, mas, a partir de certo momento, McTiernan tornou-se pouco confiável. Passou a contestar as próprias regras que estabeleceu. Cahiers du Cinéma, que não perde a pose de bíblia dos cinéfilos, o tem na conta de gênio. McTiernan está de volta. É o diretor de Violação de Conduta, que estreou neste fim de semana. Na quarta-feira da semana passada, Samuel L. Jackson esteve no Brasil. Veio especialmente para promover a estréia de Violação de Conduta na Première América, uma das seções que integram a programação do Festival do Rio 2003. Como vitrine da produção mundial, o festival não deixa de abrir um espaço para o cinemão exibir suas novidades. Mas seleciona. Um Violação de Conduta pode ser duplamente desconcertante - para grandes platéias, que não vão entender o que o diretor quer dizer, e para platéias mais selecionadas, que também não vão entender o que McTiernan propõe. Uns, pela complexidade, outros, pelo preconceito contra o cinemão. McTiernan é um homem de cultura e, segundo Samuel L. Jackson, é muito seguro em seus conceitos. Sabe o que quer fazer, mas isso não basta numa indústria como a de Hollywood, onde o diretor também tem de saber fazer o que pretende (e comprometer artistas e técnicos com seu projeto). A maneira mais óbvia de analisar Violação de Conduta é vendo no filme de McTiernan a adaptação do conceito de Rashomon, o clássico de samurais em que Akira Kurosawa busca a verdade de sua história por meio da reconstituição dos diferentes depoimentos dos que podem contá-la. Aqui, também existe essa relativização da verdade. O filme começa quando um grupo de militares americanos parte numa missão, no Panamá, e só regressam dois de seus integrantes. A oficial Connie Nielsen tenta descobrir o que ocorreu. Entra em cena, a pedido do comandante da base, outro oficial - suspeito de envolvimento com traficantes e interpretado por John Travolta. Samuel L. Jackson faz o oficial, odiado por seus comandados, que desapareceu na selva. Surgem as diferentes versões do que houve e elas vão ficando cada vez mais complicadas, já que os depoimentos se contradizem a todo momento, o que confunde o espectador. Essa confusão é levada ao limite quando até a cor da pele de certos personagens é trocada, de acordo com os interesses dos depoentes. Isso, você nunca viu nesse tipo de filme. Mas a verdade é que McTiernan pode ter-se inspirado em Rashomon, só que com objetivos diferentes. Samuel L. Jackson, que interpretou Otelo no palco, terminou por concordar com o repórter do Estado de que o tema de Violação de Conduta é muito mais shakespeariano. Um Shakespeare, ele próprio, de fundo sofocliano, pois o tema de Otelo, a primeira das grandes tragédias noturnas do bardo, é o encobrimento e seu oposto a revelação da verdade. É o que ocorre em Violação de Conduta, de tal maneira que quando o espectador faz, com Connie, a descoberta da verdade, o que se coloca, para ele/ela, é um problema moral, sobre o que fazer com o que se sabe. Violação de Conduta termina pondo a era George W. Bush em discussão. Um governo fundado na fraude (a eleição) e na mentira (a guerra contra o Iraque) realmente cria um problema de Sófocles em relação à verdade.

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