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Walter Salles on the road

Na disputa pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, filme adaptado do romance de Kerouac aborda a gênese da beat generation

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

ENVIADO ESPECIAL / CANNES - Da morte do pai à última fronteira da América, que os personagens de Walter Salles tentam em vão desbravar, On the Road é sobretudo a dilacerante história de uma amizade rompida (na realidade), mas que se eterniza na arte. Agora que o cabo das tormentas foi ultrapassado, pode-se respirar fundo e dizer - havia motivos de sobra para temer pela adaptação do livro mítico de Jack Kerouac. O primeiro, ou principal motivo, é justamente porque se trata de uma obra mítica, cuja fama sobrepuja suas qualidades literárias.

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On the Road não é o livro mais bem escrito do mundo, embora sua escrita “musical” faça com que os diálogos pareçam embalados em jazz, e isso é muito interessante. O livro também tem muitos personagens, e essas figuras transfiguradas pela arte são reais e deram origem a um movimento que marcou época e teve desdobramentos na história da cultura norte-americana. Sal, aliás, Jack Kerouac, Dean/Neal Cassidy, Carlo/Allen Ginzburg viraram faróis da chamada beat generation, mas em On the Road eles ainda são jovens num relato iniciático. Toda a grande história veio depois, como o jovem Guevara que também se inicia na estrada em Diários de Motocicleta, pode estar gestando ali o Che, mas ele só surgirá depois.

Em Diários, Walter Salles já abordara o mito antes mesmo de sua criação, e isso lhe deu as chaves para fazer On the Road. Na coletiva após a exibição do filme para a imprensa, ontem pela manhã aqui, no 65.º Festival de Cannes, o produtor Roman Coppola, filho de Francis Ford, lembrou a complicada gestação do filme, incluindo os anos que Salles passou na estrada, buscando locações e criando o documentário que, sem dúvida, o ajudou a sedimentar uma visão mais aprofundada do projeto.

Está havendo aqui em Cannes um clima de já ganhou em torno ao novo Michael Haneke, Amour/Amor. Pode ser que ele tenha respaldo no júri presidido por Nanni Moretti, mas, mesmo na eventualidade de que isso venha a ocorrer, não significará, necessariamente que Amor é o melhor filme da competição. Poderá ser para esse júri, mas os melhores filmes, por enquanto, continuam a ser o de Christian Mungiu, Beyond the Hills, um pouco menos o de Alain Resnais, Vous n’Avez pas Rien Encore Vu, e um pouco mais, agora, o de Walter Salles.

Despertar político

Ontem já havia ocorrido a mesma coisa. Face a tudo o que foi discutido sobre o novo filme de Andrew Dominik, Cogan - Killing Them Softly, a imprensa norte-americana só quis aproveitar para saber de Brad Pitt quando, afinal, Angelina Jolie e ele vão oficializar sua união. E, de tudo o que foi dito, só a informação de que o casamento não tem data ganhou os sites de todo o mundo. 

Na coletiva de On the Road, houve um momento, logo de cara, em que a coisa poderia ter degringolado. Uma jornalista do Canadá queria saber como foi filmar em seu país - quando o filme atravessa quase 100 mil km dos EUA. Outro, norte-americano, queria saber de Kristen Stewart como foi fazer as cenas de sexo e se Robert Pattinson, o namorado dela (na série Crepúsculo como na vida)... A pergunta ficou no ar, cortada pelo moderador Henri Béhar e pelo próprio diretor do filme, Walter Salles, que tinha muito mais a dizer sobre sua adaptação do livro cult de Jack Kerouac do que ficar alimentando os sites de fofocas. Veja os principais tópicos.

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Preparação. “Foi necessário um longo período que nos tomou oito anos para fazer esse filme. No processo, fiz um documentário que terminou sendo uma ferramenta importante na compreensão e aprofundamento da aventura toda. Foi muito importante ter encontrado o filho de Neal Cassidy, representado como Dean no livro de Kerouac. Ele forneceu uma espécie de bússola ao nos lembrar que os personagens de On the Road precedem a explosão da Beat Generation. E é disso que se trata. A história trata do despertar político e social de dois jovens que descobrem uma geografia humana que é estranha para eles. É também a história da escritura de um livro mítico e de uma amizade rompida, que se eterniza justamente por meio da literatura.” 

Atores. “Considero todos os atores como coautores desse filme. Porque com sua entrega e as pesquisas que fizeram, eles me permitiram ir mais longe que o livro, mas sem deixar de permanecer fiel a Kerouac. Trabalhamos num espírito de improvisação permanente. E, embora seu papel seja pequeno na tela, Viggo Mortensen foi fundamental. Quando filmamos sua última cena, ele me deu carona, para que a gente fosse conversando. Mas ele colocou uma gravação com a voz do seu personagem, o verdadeiro (William) Burroughs. Ficamos em silêncio durante todo o trajeto, só ouvindo. Viggo pesquisou sobre o que Burroughs escrevia na época, sobre os livros infantis que sua mulher poderia estar lendo para os filhos, sobre a arma quer utilizava. Tudo veio dele e foi incorporado à produção, que ficou mais autêntica nos detalhes.”

Viggo Mortensen, sobre sua relação com o livro. “Havia lido On the Road quando jovem, mas reli pouco antes da filmagem. Só aí tomei consciência do seu caráter atual. Há hoje uma rejeição da crise econômica e das autoridades, e elas vêm principalmente dos jovens. É por isso um momento oportuno para se fazer este filme. As pessoas da minha geração verão o filme com nostalgia, mas os jovens vão poder se identificar com a época e seu espírito de contestação. O que mais me agrada no texto der Kerouac é a liberdade de interpretação que ele propõe. Walter fez algumas coisa nova sobre esses personagens. Não se contentou em oferecer uma simples cópia de suas palavras e ações.”

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Kristen Stewart, sobre aparecer nua na tela. “Poderia dizer que Walter criou uma ambiência que libera o ator de suas inibições, mas na verdade esse é um risco que quis correr, conscientemente. Gosto dessas personagens que me confrontam, que me permitem sair da minha zona de conforto e ir ao limite. Marylou é uma personagem que ousa. Não creio que ela estivesse querendo ser parte de um movimento. Ela queria ser ela mesma e isso é uma coisa com a qual consigo me identificar. Para mim, se alguém encarna o espírito de liberdade do livro, é ela. Durante a filmagem, nos momentos de dúvida, eu sentia sua presença muito próxima, como se nos guiasse.” 

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