Escassez e Abundância

Viramos turistas de uma imensa cultura que brota dos dedos e das telas

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colunista convidado
Foto do author Leandro Karnal
Por Leandro Karnal
Atualização:

Santo Agostinho influenciou séculos de pensamento, tendo uma biblioteca menor do que a minha. Livros caros, raros e dificuldade de acesso a informações eram a regra. Tendo menos, produziu mais. Outro detalhe: com óculos posso ler dezenas de páginas por dia; um homem antigo, se fosse importante, necessitaria de secretários. O tempo produtivo de um intelectual era menor ou mais difícil.

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Quando Verdi estreou a célebre Traviata, só tiveram acesso às melodias os privilegiados, naquela noite no teatro La Fenice, em Veneza. Avancemos um século e teremos milhões de pessoas pelo mundo com toca-discos, ouvindo a ópera. Em nosso mundo, posso ouvir dezenas de versões da peça de Verdi, ler o libreto na internet e ter uma imensa biblioteca de críticas à obra.

Estamos sufocados em uma abundância extraordinária de fontes e informações. Já foi diferente. O pintor Diego Velázquez viajou à Itália e foi influenciado pelo ambiente romano. As viagens para o Sul marcaram para sempre Goethe. Lord Byron nunca se esqueceu de Veneza ou da Grécia. Uma ida a Ouro Preto marcou pintores modernistas como Tarsila do Amaral. Gauguin entrou de cabeça no mundo do Taiti.

Por vezes, pessoas do passado fizeram uma viagem e produziram muito a partir dela. Eu viajei mais do que todos os que citei. Tenho mais livros e acesso a museus do que Velázquez sonhou. Mesmo assim, estou muito abaixo de todos eles. O que ocorreu?

Podem dizer o óbvio: “Eles eram gênios, mas você não, Leandro!” Sim, concordo. Quero pensar também no excesso que nos cerca. Há muita informação. A quantidade é avassaladora, excedendo minha capacidade, meu foco. O celular colabora para erodir mais ainda minha concentração. Viramos turistas de uma imensa cultura que brota dos dedos e das telas.

Eu tenho dezessete Bíblias em diferentes versões. Já tive mais. Conheço mais traduções do que Agostinho viu em sua vida. Se eu tivesse apenas uma, seria obrigado a ler e reler o texto em vez de cotejar diferentes versões. Se eu fosse mais limitado nas fontes, eu produziria uma obra como A Cidade de Deus? Acho que nem assim, mas... ainda identifico o excesso como um problema do nosso tempo.

A escassez estimula o desejo, que é fonte de muitas criações. A abundância do celular em nossos bolsos fornece mais dados do que a maior biblioteca física do planeta. O bispo de Hipona brilha em um mundo dominantemente de analfabetos. Eu vivo em outro momento no qual o excesso de signos me cega. O maior buffet cultural já oferecido a uma geração pode estar produzindo inapetentes.

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Eu sempre fico muito pensativo quando vejo uma clássica foto do pós-guerra. Werfel, austríaco de seis anos, ganha da Cruz Vermelha um par de sapatos novos. A data? 1946. O fotógrafo é Gerald Waller, para a revista Time. Procure na internet e você terá um bom tema de reflexão. O menino nasce durante a escassez da guerra. O estado deplorável dos seus sapatos justifica a alegria do presente. Ele possuía quase nada. O pouco que ganha ilumina seu momento e sua vida. A abundância afasta um pouco a alegria. O registro de Waller é uma foto-lição sempre importante para nós. Quem nada tem se torna uma pessoa entregue à felicidade do instante único em que recebe algo. Quem possui muito dilui a alegria mirrada e anêmica entre cada presente. Meu aprendizado, aqui, não é algo no caminho cristão do “Olhai os lírios do campo e as aves do céu”. Eu falo de matemática: seu foco e sua alegria, concentrados em um só objeto, crescem muito.

Jacinto, a personagem central do romance As Cidades e as Serras (Eça de Queiroz), vive afogado no excesso. Sofre de “abundância”, segundo seu funcionário. Muitas águas minerais, biblioteca imensa, pratos elaborados e... um tédio estrutural sufocante. Descobre o valor das coisas, no interior de Portugal, no jornal único de que dispõe e no prato isolado que lhe oferecem. A simplicidade restitui o sabor a tudo.

Volto a uma reflexão: cardápios com 150 tipos de pizza são um desserviço. Um bom chef sabe que nem todos os produtos estão frescos todos os dias. Seria melhor apresentar 15 boas opções.

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Nas imagens do século 19 sobre haréns, fantasia erótica da elite europeia vitoriana, as cenas são de tédio e não de orgia. Uma variante do tema orientalista, A Morte de Sardanapalo (Delacroix), mostra um governante afogado no excesso de coisas que, mesmo diante da morte, não lhe oferecem consolo.

Por fim, uma questão inquietante. Tudo o que descrevo até aqui diz respeito a um pequeno grupo consumidor no mundo e ainda mais restrito no Brasil. O excesso que leva ao tom blasé de alguns – em meio à falta absoluta de muitos – pode estimular suicídios nos primeiros e homicídios nos últimos. Trata-se de um risco a ser enfrentado com coragem e esperança. Toda a arquitetura de Versalhes se escora nas torres da uma Bastilha; ambas podem se encontrar na praça da Revolução.

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