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Como a obra-prima de Toni Morrison se tornou objeto de disputa eleitoral na Virginia

Romance 'Amada' é reduzido aos seus trechos mais explícitos por um candidato

Por Ron Charles
Atualização:

“O 124 era rancoroso”. 

Assim começa o clássico romance de Toni Morrison, Amada.

Mas o rancor naquela casa 124 da Bluestone Road não é nada se comparado ao ódio que vem despedaçando o estado da Virgínia neste outono do Hemisfério Norte.

A escritora Toni Morrison, vencedora do prêmio Nobel de Literatura de 1993, durante a Flip 2006 Foto: Wilton Junior/Estadão

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De um jeito quase inacreditável, a corrida para governador – já alarmada com o espectro do ex-presidente Donald Trump – girou em torno de questões de mérito literário, de padrões educacionais e do livro vencedor do Prêmio Pulitzer que conta a história de uma mulher negra que, nos tempos da Guerra Civil, mata sua própria bebê para não ver a criança ser escravizada numa fazenda do sul.

Em Amada, o espírito da bebê assassinada permanece entre os vivos, uma manifestação insistente e inquietante dos traumas da escravidão. Morrison certa vez explicou que ela tinha medo de abordar esse tema difícil. “Era um cuidado que se baseava nos meus primeiros anos de estudante”, disse ela, “durante os quais eu estava bastante ciente das rasuras, das ausências e dos silêncios na história escrita à minha disposição – silêncios que tomei por censura”. Essas forças de apagamento e censura ainda nos perseguem.

Nos dias que antecederam a apertada eleição de terça-feira, o candidato republicano Glenn Youngkin dedicou sua campanha a proteger as crianças de livros desconcertantes. No debate eleitoral do dia 28 de setembro, Youngkin criticou seu oponente, o ex-governador Terry McAuliffe, por vetar um projeto de lei que exigia que professores de ensino fundamental e médio notificassem os pais sobre materiais de sala de aula com “conteúdo sexualmente explícito”. Segundo essa legislação, os pais de mais de um milhão de alunos da Virgínia teriam o poder de exigir tarefas alternativas para qualquer texto que ferisse sua sensibilidade.

Youngkin teve o cuidado de não mencionar que a legislação vetada por McAuliffe – duas vezes – foi apelidada de “projeto de lei Amada”. Mas os virginianos vêm reclamando de Amada há muitos anos. Os problemas começaram no condado de Fairfax, em 2013, quando Laura Murphy reclamou que seu filho, um aluno do último ano do ensino médio que estudava inglês avançado, teve pesadelos depois de ler o romance de Morrison.

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Na grande tradição de pânicos morais do passado, que remontam à música rock, aos quadrinhos e às garotas usando calças, Murphy fez com que a Assembleia Geral da Virgínia redigisse uma legislação consagrando sua visão de um currículo escolar higienizado pelos pais. O debate veio com inúmeras reações escandalizadas diante de palavras impertinentes e descrições chocantes. David Albo (republicano de Fairfax) disse ao Washington Post que uma passagem de um dos livros de Morrison foi pior do que qualquer coisa que ele tinha visto nos tempos de faculdade. “Não sou de me ofender com as coisas”, disse ele, “mas até eu fiquei chocado com o baixo nível”.

Felizmente, McAuliffe vetou o “projeto de lei Amada” em 2016 e de novo em 2017. Durante o debate entre candidatos ao governo no mês passado, ele disse: “Não acho que os pais possam dizer às escolas o que elas devem ensinar”.

Os republicanos logo se puseram a interpretar a declaração de McAuliffe fora do contexto – o que não é de surpreender, porque tirar sentenças do contexto é a essência de sua cínica batalha política contra a experiência dos professores e o desenvolvimento do currículo profissional.

Esta semana Murphy voltou à cena, fazendo sua melhor imitação de Anthony Comstock numa peça de propaganda política patrocinada por Youngkin. Sentada na sala de estar, olhando para a câmera, ela diz: “Quando meu filho me mostrou sua lição de casa de leitura, meu coração congelou. Era um dos materiais mais explícitos que você pode imaginar”. Um close-up de suas mãos retorcendo nos desafia a imaginar quão explícito seria esse material. As chamas brilhantes na lareira atrás dela nos lembram onde aquela sujeira toda mereceria parar. “Eu me encontrei com parlamentares”, disse Murphy. “Eles não podiam acreditar no que eu estava mostrando. Seus rostos ficaram vermelhos de vergonha”.

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Quem não ficaria vermelho de vergonha com uma mulher adulta correndo pela capital do estado mostrando aos parlamentares o que ela acha que são as partes mais nojentas de um romance canônico de uma ganhadora do Prêmio Nobel? Não é por acaso que, na peça de propaganda política, Murphy não menciona que está falando sobre Amada. Seu argumento profundamente destrutivo é o mesmo usado neste outono por outros pais da Virgínia que se opõem aos célebres romances para jovens adultos de Jonathan Evison e Maia Kobabe. Esses esforços sempre se concentram em eliminar o contexto artístico e moral, reduzindo qualquer livro a algumas passagens isoladas e, depois, encorajando os ouvintes a fazer um julgamento visceral e desinformado.

Para ver como esse método é questionável, pense numa peça sobre uma garota de 13 anos que comete suicídio após uma noite de amor: quem passaria esse texto – Romeu e Julieta – para alunos do primeiro ano do ensino médio? Se a cena dos olhos arrancados de Rei Lear não lhe der pesadelos, você não está prestando atenção à leitura. E o que dizer de Ezequiel 16:17 ou Reis 6:28-29? Tente ler essas passagens da Bíblia para os parlamentares da Virgínia e observe sua reação.

O fato é que nenhuma grande obra de arte deve ser enquadrada e esquartejada por um polêmico ritual de pureza. E essa tática parece particularmente grosseira quando se trata de Amada, um romance que tanto minha esposa quanto eu já ensinamos para alunos do primeiro ano do ensino médio. Em nossas respectivas classes – em Missouri e Massachusetts – os alunos nunca foram jogados para dentro do texto sem orientação, sem certos avisos, sem os antecedentes históricos relevantes. Esses adolescentes atenciosos sabiam que o que é desconfortável de ler no clássico de Morrison não estava lá para os brancos grifarem em amarelo e soltarem gritos de horror.

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Morrison trabalhou duro para perfurar mais de um século de nostalgia sulista enquanto pesquisava a verdadeira história de Margaret Garner, a escrava fugida que matou sua filha para evitar que ela fosse arrastada de volta à escravidão. Morrison descobriu as grotescas ferramentas de tortura e, como nunca antes, expôs a violência sexual que sustentava a “instituição peculiar” da América.

É preciso dizer, claro, que Amada contém passagens obscenas: a obscenidade faz parte do argumento. E rapazes e moças com idade suficiente para dirigir seus carros diante de estátuas que homenageiam generais confederados têm idade suficiente para assimilá-las.

Infelizmente, é provável que Murphy, Youngkin e seus colegas republicanos não percebam que estão fazendo eco aos leitores brancos do século 19, que exigiam que as histórias sobre os abusos da escravidão obedecessem a seus gostos delicados. Eles estavam errados na época e estão errados agora.

Os grandes romances americanos não precisam vir com rótulos de advertência, e as escolas de segundo grau não devem ser transformadas numa confusão de alunos, cada um lendo os livros menos ofensivos que seus pais estão dispostos a aprovar. Somos mais livres e espertos do que isso – ou deveríamos ser. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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