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Diante de um apocalipse, livro mostra como super-ricos resolvem salvar a própria pele

Douglas Rushkoff traz episódios recentes que beiram o surrealismo, como a crescente busca por ‘bunkers’ nos EUA

Por Nick Romeo
Atualização:

THE WASHINGTON POST - O novo livro de Douglas Rushkoff, Survival of the Richest: Escape Fantasies of the Tech Billionaires, começa com uma cena surreal: por uma quantia equivalente a um terço de seu salário anual de professor, Rushkoff voa para um resort de luxo para aconselhar cinco bilionários sobre como sobreviver ao colapso da civilização. Os homens não identificados discutem questões tão urgentes como manter a autoridade sobre suas forças de segurança privada após o “evento” e analisam soluções. E se os guardas usassem algum tipo de coleira disciplinar? Melhor ainda: que tal usar robôs como guardas?

É um episódio sombrio e revelador. Mais aterrorizante que seus pesadelos hollywoodianos é a resposta ingênua e profundamente antissocial dos bilionários: eles preferem otimizar seus bunkers do que trabalhar para evitar o apocalipse. Rushkoff descreve sua atitude como uma “certeza típica do Vale do Silício, baseada na fé de que eles sempre vão conseguir desenvolver alguma tecnologia que de algum jeito quebrará as leis da física, da economia e da moralidade para oferecer a eles próprios algo ainda melhor do que uma maneira de salvar o mundo: uma maneira de escapar do apocalipse que eles mesmos criaram”.

No filme 'Não Olhe para Cima', de Adam McKay, uma comitiva de bilionários prefere investir em uma missão espacial para escapar da Terra a ajudar o planeta  Foto: NIKO TAVERNISE/NETFLIX

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Ainda que pouquíssimas pessoas tenham os meios para satisfazer fantasias distópicas tão extravagantes, os bilionários são um exemplo extremo de uma tendência mais ampla. As vendas de bunkers estão subindo nos Estados Unidos, e o mercado agora atende a vários níveis de renda: de bunkers de US$ 40.000 a um modelo “Aristocrata” de quase US$ 10 milhões, que vem com piscina e pista de boliche. Muitas pessoas agora parecem focadas em estocar dinheiro suficiente para se proteger do resto do mundo, em vez de pensar no tipo de mundo que estão criando ao ganhar dinheiro desse jeito.

Rushkoff, professor de teoria da mídia e economia digital na City University de Nova York, que presta consultoria e palestras sobre mídia e tecnologia, chama essa dinâmica de “Equação de Isolamento”. Qualquer um que faça alguma versão da pergunta – posso ganhar dinheiro suficiente fazendo X para me isolar dos efeitos de fazer X? – está aplicando a Equação de Isolamento. Pense em Jeff Bezos se lançando ao espaço com dinheiro ganho com um modelo de negócios vastamente criticado por seus baixos salários e seu impacto ambiental. (Bezos é dono do Washington Post). Pense nos negociantes de criptomoedas que podem se dar ao luxo de viver em ambientes relativamente intocados vendendo produtos financeiros especulativos e voláteis que geram grandes quantidades de poluição do ar.

A Equação de Isolamento é um conceito provocativo e esclarecedor, e Rushkoff dedica grande parte do livro a traçar as manifestações e origens de uma mentalidade que seduz as pessoas a acreditar que podem se isolar dos danos que ajudam a criar. Como um fabricante de ilusões em grande escala – por exemplo, o mito de que, sem grandes esforços, todos os desejos podem ser satisfeitos sem prejudicar outros humanos ou o meio ambiente – o Vale do Silício é um dos principais alvos de suas críticas. O mesmo acontece com a financeirização implacável das novas tecnologias por meio do capital de risco, que ajudou a transformar o ethos de código aberto, democrático e coletivo de muitos dos primeiros tecnólogos no cenário contemporâneo de monopólios construídos sobre roubo de dados e vício programado.

O fundador da Amazon Jeff Bezos, que foi ao espaço é um dos homens mais ricos do planeta  Foto: Charlie Riedel/AP

Um dos exemplos mais arrepiantes envolve a produção de telefones celulares. No final do processo de montagem, os trabalhadores limpam cada dispositivo com um solvente tóxico, para remover suas próprias impressões digitais. O produto químico causa abortos espontâneos, câncer e redução da expectativa de vida, mas mantém a ilusão de que os celulares são criados como que por magia, sem atritos, não por trabalhadores em condições terríveis. Rushkoff vê nisso o exemplo de um fenômeno mais abrangente: “Algumas das inovações mais inteligentes da Amazon existem inteiramente para proteger os membros Prime da realidade que é trabalhar para a empresa”, escreve ele.

Rushkoff faz uma crítica poderosa das atitudes e tecnologias que possibilitam essas ilusões. Mas seus argumentos sobre as origens e suas sugestões sobre como melhorar nossa economia e nosso futuro não são convincentes

O problema começa com um ataque confuso e simplista à ciência empírica e à quantificação. Tentando reformular os termos “ocidental” e “empírico” como insultos, ele critica uma “abordagem empírica ocidental da ciência que divide tudo em partes, em vez de enfatizar as conexões e interações entre todas as coisas”. Trata-se de um retrato caricatural: muitos ecologistas, biólogos e outros cientistas estudam as interações dentro e entre sistemas complexos. É uma pena que o livro se rebaixe com essas generalizações mal pensadas.

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Também é difícil levar a sério sua afirmação de que, como “os sistemas de linguagem ocidentais tendem a ser mais baseados em substantivos do que muitos de seus equivalentes, nossa linguagem possibilitou certas formas de industrialismo e capitalismo, entre outros sistemas (como escravidão e dominação) que dependem de categorias e objetificação”. Pedir evidências para essa afirmação ou uma maneira de descartar outras explicações desses fenômenos talvez seja manifestar o próprio empirismo ao qual ele se opõe. Mas tal recusa a padrões de evidência e verificabilidade coloca a afirmação no mesmo nível epistêmico que a astrologia ou o ceticismo climático.

Cena do filme 'Não Olhe para Cima', de Adam McKay, com Meryl Streep e Leonardo DiCaprio  Foto: NIKO TAVERNISE/NETFLIX

O problema central é uma confusão entre a ciência e como ela é usada. Os métodos científicos não são ruins porque ajudam algumas pessoas a localizar depósitos de petróleo ou bons porque ajudam outras a tratar tumores cerebrais: eles possibilitam ações boas e também más. Os métodos em si não devem ser condenados por causa de como são usados às vezes. A resposta correta é evitar usos imorais da ciência, não condenar a ciência.

As soluções propostas por Rushkoff, esboçadas em um parágrafo rápido perto do final do livro, concentram-se em consumir menos e regular e tributar mais as indústrias. São ideias boas, ainda que familiares, mas não podem ser bem implementadas sem um estudo empírico cuidadoso. Quanto menos precisamos consumir? Em quais setores da economia e em que prazo? Qual é a eficácia comparativa de diferentes regulamentações e quais tecnologias verdes são mais promissoras?

Esses tipos de perguntas não devem ser respondidas apenas por cientistas; também têm dimensões morais e políticas. Mas são impossíveis de responder sem uma análise científica cuidadosa. A ciência é necessária para criar um futuro habitável. Mas não é suficiente.

Survival of the Richest: Escape Fantasies of the Tech Billionaires

Douglas Rushkoff

Norton - 224 páginas - US $26.95

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Nick Romeo é crítico e jornalista em Atenas. Seu novo livro, que explora as pessoas e ideias para construção de uma economia justa, será publicado em 2023.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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