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Como a poesia trata das agruras da vida em tempos sombrios

Elegias poéticas podem nos ajudar a abrir espaço para nossa dor pandêmica

Por David Sherman e Karen Elizabeth Bishop
Atualização:

O árduo trabalho de sobrevivência à pandemia nos deixa poucos momentos para reconhecermos a importância de nossas perdas catastróficas. A escala das mortes pelo coronavírus – 5,4 milhões, mais de 800 mil nos Estados Unidos, e os números não param de crescer – embaça a visão e eclipsa o sentimento. Mas uma sociedade só consegue sobreviver a tal devastação criando tempos e espaços compartilhados para o luto. Como lidar com tantos mortos? Com que formas culturais e práticas expressivas podemos levar essas vidas ausentes conosco para o futuro?

A elegia é onde descobrimos como fazer esse trabalho. A poesia elegíaca nos ajuda a velar os moribundos e a transportar os mortos para seu lugar de descanso. A forma há muito oferece versões simbólicas desses atos distintamente humanos, jeitos vicários de cumprir obrigações existenciais quando nos vemos mudos e passivos diante da morte de outra pessoa. When Lilacs Last in the Dooryard Bloom’d, de Walt Whitman, compartilhado em tantas salas de aula e antologias poéticas, ainda ressoa pela maneira como o poeta se arrisca em questões irrespondíveis no coração oscilante da elegia: “Oh, como devo cantar o morto que amei? / E como devo adornar minha canção para a alma imensa e doce que se foi?”.

Um desenho dopoeta estadunidense Walt Whitman que está na edção de 'Guía para la salud y el entrenamiento masculinos' Foto: Nórdica Libros

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Whitman escreveu esses versos para um presidente assassinado e uma nação devastada pela guerra civil. Na pandemia, quando a enxurrada de estatísticas ameaça engolir a singularidade de cada morte, as elegias contemporâneas – sobre os mortos, para os mortos, no lugar dos mortos – nos oferecem novas maneiras para nosso luto atravessar o silêncio. A elegia representa um cuidado essencial, íntimo e público para com nossos mortos. A poesia é um trabalho de sobrevivência.

No início da pandemia, nossas práticas mortuárias e memoriais mais estabelecidas ficaram em lockdown. Funerais foram proibidos e os enlutados não tinham como se reunir presencialmente: os rituais de despedida se transformaram em telas. A poesia angustiada daquele momento tentava superar esse impasse terrível. Up Late, de Nick Laird, uma elegia a seu pai, que morreu de covid-19, descreve a repentina e absurda alienação da morte pela pandemia: “Esta manhã / o médico disse, seu pai agora está se agarrando / à máscara e está exausto e já fizemos / tudo o que podíamos. É uma doença terrível... // Pai, / seu pobre coitado, estou vendo você. / Você ficou assim uma semana, sozinho / com seus pensamentos. // Amarrado. Sem fôlego. Sem defesa. / No mar feito um bloco de gelo / deslizando para dentro dos canais de navegação”. Como é impossível tocar o pai, Laird se esforça para garantir que ele seja visto. O poema faz de tudo para entender como estar presente à distância, como testemunhar os estragos da pandemia de dentro para fora. Neste presente final que é a elegia, ao mergulhar nas águas frias da morte, o pai está isolado, mas não sozinho.

Nos últimos tempos, muitos tentaram expressar a pandemia de mortos sob formas inventivas de memoriais: cadeiras vazias em D.C. e no Tennessee; bandeiras em Austin e no National Mall; orações, lápides e cobertores em Massachusetts; pássaros de origami em Los Angeles; bosques de árvores nativas em Ohio. Mas os memoriais, ainda que concebidos e montados com elegância, funcionam apenas in situ, enquanto a elegia oferece uma alternativa: um texto fácil de acessar, reproduzir, circular e compartilhar. Falada ou escrita, a elegia potencializa aquele mecanismo de expressão mais íntimo, visceral e espontâneo: a voz humana.

A elegia contemporânea, assim como a poesia de amor, tenta dizer algo muito antigo e repetitivo – sinto sua falta, onde está você, por que você se foi e tantos outros ficaram? – mas sem clichê. Cada morte dilacera nosso mundo compartilhado de um jeito único. O choque da forma elegíaca inovadora captura a incompletude específica de estar diante da morte de outra pessoa, contando como essa morte e essa dor são importantes. “À noite escovo / os dentes com uma navalha”: este dístico – uma velha forma elegíaca aqui renovada por Kevin Young – constitui a totalidade de seu poema Grief. Ele nos acorda de susto ao nos confrontar com um vazio terrível que combina a rotina diária e violência. Assim como a lâmina pode ameaçar os nervos protegidos entre os dentes, sua imagem corta a linguagem familiar para expor a dor crua. No mesmo volume, Book of Hours, chegamos a um verso estranhamente musical: “I wish to wash / my face in the furnace” [algo como “Quero lavar / o rosto na fornalha”, em tradução livre]. A aliteração e a assonância, dispostas em pentâmetro iâmbico, nos levam sem aviso para a catarse aterrorizante de uma purificação pelo fogo. Se a elegia fere a imagem, o som e o artifício figurativo, ela também abriga a impossível estranheza da dor para que sobrevivamos.

Muitos poetas usam a elegia para contar aos mortos sua própria passagem, como se pudessem nos ajudar a dar sentido à sua ausência e à nossa – agora incômoda – sobrevivência. “Eu estava dormindo enquanto você estava morrendo. / É como se você escorregasse por alguma fenda, um buraco / que abro entre meu sono e meu despertar”, Natasha Trethewey explica à sua mãe morta em Myth. Trethewey se dirige diretamente à mãe, tenta invocá-la com as imagens, ritmos e tons da saudade. Por um momento nos encontramos numa fértil fronteira entre ser e não-ser, um fuso horário entre o é e o era. Habitamos este espaço junto da poeta: a elegia é uma prática de se endereçar aos mortos para que os outros também possam ouvir. As palavras de Trethewey para a mãe também são para nós e até mesmo para ela própria, um circuito que faz companhia para o isolamento do luto.

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Diante de traumas generalizados e crises sociais, a elegia, assim como outras práticas celebratórias, muitas vezes se estende entre a voz individual e a coletiva. A morte em massa requer uma linguagem diferente para lidar com a perda, fragmentando a elegia tradicional nesse esforço de narrar muitas vidas interrompidas. O surpreendente livro de Kim Hyesoon, Autobiography of Death, traduzido para o inglês por Don Mee Choi, responde ao desastre da balsa Sewol em abril de 2014, quando centenas de crianças em idade escolar morreram afogadas na costa da Coreia do Sul, deixando toda a nação horrorizada. Hyesoon alucina ritos impossíveis: “um sino de bronze de quatro toneladas com mil nomes de mortos gravados pende do helicóptero / O helicóptero voa sobre a montanha para pendurar o sino num templo escondido entre as pedras”. Ou então “Mil máscaras flutuam nos mil rios do norte, sul, leste, oeste”.

Nesses poemas, as 304 pessoas mortas no desastre se tornam milhares de nomes, máscaras e rios porque sua perda é incalculável. Para Hyesoon, cada morte é multiplicada pela injustiça e negligência oficial de um jeito que resulta em muitas mortes, intoleráveis e irreparáveis. Sua imaginação inscreve o céu, as águas e a terra com a ausência, refazendo e remapeando o mundo. Sua poesia nos fala da combinação de imaginação e coragem de que precisamos para criar lugares de memória para os milhões que morreram e estão morrendo de covid.

A elegia modula a angústia coletiva em forma e significado. Em The Man with Night Sweats, poemas escritos em reação à epidemia de AIDS na década de 1980, Thom Gunn imagina vidas desaparecendo em intrincados emaranhados: “Contato de um amigo levou a outro amigo / Envolvimento maleável da massa viva / Que por tudo que eu sabia talvez não tivesse fim, / Imagem de um abraço ilimitado”. Para Gunn, a massa viva denomina nossa solidariedade existencial básica, a vasta interdependência das vidas humanas.

O poema The Missing continua explorando um sentido de implicação mútua na doença dos outros, uma exposição compartilhada que fala com clareza ao tempo presente: “Mas a morte – suas mortes me deixaram menos definido: / Era sua presença pulsante que me fazia claro. / Tomava tudo isso de empréstimo, estava desterrado, / esta noite oscilo sem suporte aqui”. Gunn busca ambiguidade na sobrevivência, porque toda sobrevivência é temporária. Diante desses versos é difícil ignorar a sombra de “desenterrado” sobre “desterrado”, como se o falante voltasse de seu próprio enterro para falar por si mesmo. Com um tom de voz póstumo, Gunn fala junto com os mortos. A linguagem elegíaca é um território onde vivos e mortos coabitam. Quatro décadas depois, precisamos recuperar esse território lírico.

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A elegia não muda o fato da morte. É só poesia: é tão frágil quanto o sopro que a profere, é uma confirmação de nossa própria precariedade. Como Joy Harjo nos diz em Death Is a Woman, “Não tenho nada para provar sua vida voraz, só papel / que se transforma em pó”. Mas de alguma forma nos fazemos mais fortes tanto em saber que os termos da morte são inegociáveis quanto em insistir, na página e na nossa voz, na negociação. A mente imagina táticas; a voz testa suas reivindicações. É o trabalho que nos cabe. Mesmo a grandes distâncias, a poesia nos ajuda a juntar os restos dos mortos e lhes dar um lugar. A elegia faz soarem nossos mortos, agora protegidos das intempéries. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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David Sherman é professor do Departamento de Inglês da Brandeis University. Atualmente, está escrevendo Inventing Farewell, uma investigação imaginativa sobre as formas como a literatura e a arte deixam o luto menos solitário. Karen Elizabeth Bishop é poetisa, tradutora e acadêmica que leciona na Rutgers University. Sua coleção de poesia, The deering hour, foi publicada recentemente pela Ornithopter Press. Juntos, ela e David Sherman dirigem o Elegy Project.

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