Elias Andreato monta com requinte ‘A Casa de Bernarda Alba’, de García Lorca

A encenaçãocondensa habilmente o original em três atos e tem um elenco à altura do tema

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Por Redação
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O espetáculo A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, é um drama atemporal e sem espaço definido, embora evoque inevitavelmente a Espanha. Não se trata exatamente de casa, mas da prisão doméstica de mulheres dominadas por uma viúva tirânica que decreta luto por oito anos. Ou ainda a metáfora de estados mentais. De um lado, a pulsão sensual de suas filhas, o desejo da carne, a fecundidade. De outro, a loucura do mando conservador. Lorca sempre foi mais atento às mulheres, ao contrário do restante do teatro clássico espanhol que reserva ao patriarca, o varão, a atribuição imemorial de garantir, mesmo que pelo sangue, a honra da estirpe.

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No estudo García Lorca: Persona y Creación, o ensaísta Alfredo de La Guardia apresenta três definições para esta parte da obra lorquiana: o “drama da maternidade vencida” (Bodas de Sangue, no qual o amor é perseguido), o “drama da maternidade frustrada” (Yerma, a mulher sem filhos devido à esterilidade do marido), e o “drama da maternidade injusta” encarnada por Bernarda Alba, que mata em si qualquer instinto amoroso e de fecundidade e arrasta consigo as filhas, uma para a morte e as demais para o pântano do luto.

Todas essas peças foram estreadas na Argentina quando a Espanha se dilacerava em uma guerra civil que tem em Lorca (1898-1936) a sua vítima mais amada, assassinado com requintes de perversidade, e que culminou com a ditadura do general Francisco Franco, um homem medíocre até no físico, que por 36 anos negou poesia e liberdade aos espanhóis. A nação sobreviveu, porém, e, como escreveu La Guardia, a aflição daqueles dias converteu-se para Lorca na “serena luz de sua imortalidade”. Outras ditaduras surgiram, políticas, religiosas e culturais, e as mulheres estão entre as grandes vítimas. A liberalidade ocidental de costume é ainda parcial, luxo dos centros urbanos, enquanto continentes inteiros são casas de Bernardas Alba.

A encenação de Elias Andreato condensa habilmente o original em três atos e tem um elenco à altura do tema. Os acontecimentos não sofrem de tempos lentos ou pouco calorosos, embora às vezes ocorra o contrário. Há instantes de movimentação em círculos, entremeados de empurrões entre moças aparentando apenas nervosismo, quando o que ocorre é trágico. Este é o ponto instável do espetáculo, o de parecer algumas vezes narrativa de costumes com um grupo de pessoas de mau humor incorporado ao cotidiano, aos vícios domésticos. Ninguém ali ouve mais o outro.

Walderez de Barros, atriz de reconhecida densidade dramática, pode dar a impressão de só simular dureza ou intolerância. Como se fosse um deliberado distanciamento entre ela e o papel. Walderez convence mesmo assim, por ser uma intérprete superior, mas não temos a escuridão da sua personagem.

Por estranho que pareça, o absurdo dos conceitos de Bernarda soam quase engraçados, sobretudo na relação com a governanta que Patrícia Gaspar explora com malícia. A divisão de classe doentia é diluída pela reiteração de desaforos sem que os rostos traduzam a relação desumana. É algo que talvez possa ser mais sublinhado no conjunto da representação. A gravidade das circunstâncias está expressa no rosto tenso e nos silêncios de Mara Carvalho e na dor de Victoria Camargo, explícita em elaborada composição gestual e boa voz.

Detalhes musicais e de dança flamenca insinuam o clima de uma Andaluzia cigana, embora naquela casa soe melhor a voz comovida e a guitarra áspera de Paco Ibañez em Canción de Jinete, poema de Lorca sobre uma “luna negra”. São detalhes, reparos pontuais, em uma criação com um requinte que o teatro anda esquecendo. Bernarda Alba termina com a altivez do elenco a receber aplausos sem avisos e agradecimentos de última hora. A cortina é fechada lentamente. O que se viu pede solenidade, porque García Lorca traz o que La Guardia define como um protesto contra a solidão e as trevas.

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A CASA DE BERNARDA ALBATeatro Cultura Artística Itaim. Av. Juscelino Kubitschek, 1.830, 3258-3344. 6ª, 21h30; sáb., 21 h; dom., 18h30. R$ 50/R$ 60. Até 1º/12

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