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Festival de Toronto dá a largada para a corrida do Oscar

Destaque da edição de 2018 são os filmes centrados em protagonistas femininas

Por Manohla Dargis
Atualização:

TORONTO, CANADÁ - Destroyer, um thriller violento estrelado por Nicole Kidman, não é o tipo de filme para ganhar um Oscar ou ser premiado em Cannes. É muito brutal, vulgar e deliberadamente abominável. Ideal para o Festival Internacional de Cinema de Toronto, uma vitrine para ficções de gênero impiedosas e filmes de arte difíceis. O porte do evento propicia uma enorme variedade de obras e nos lembra que um filme de festival não precisa se conformar a uma ideia presumível de cinema. Na edição desse ano, 342 filmes foram apresentados, e o evento é tão grande quanto esteticamente diverso.

Cena de 'If Beale Street Could Talk', de Barry Jenkins, adaptação de livro de James Baldwin Foto: Annapurna Release

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No decorrer das décadas, Toronto se tornou um festival em parte essencial porque, juntamente com os festivais de Veneza e Telluride, ele dá o pontapé inicial para a temporada de outono e a maratona conhecida como a corrida para o Oscar. A histeria dos prêmios rapidamente se instalou depois da première de Uma Estrela Nasce, a mais recente narrativa de uma das mitologias mais perenes de Hollywood sobre estrelato e sacrifício. Seu diretor, Bradley Cooper, e Lady Gaga interpretam músicos que se tornam amantes e seguem destinos radicalmente diferentes. A estreia comercial se dará dentro de algumas semanas. Mas logo que um filme é exibido pela primeira vez, tem início o ciclo usual de aclamações e críticas.

Amplamente impulsionado pelo Oscar, esse ciclo não oferece nada de bom para os filmes ou para o público, especialmente porque coloca as probabilidades de prêmios acima da arte, da cultura e da história. Não surpreende que os frequentadores de festivais estejam dispostos a pagar mais para assistir a um filme que ainda não foi atacado por comentários ruins ou taxado de decepcionante antes de ser lançado nos cinemas ou desaparecer nos serviços de streaming. Em Toronto, o público (600 mil no ano passado) assiste aos filmes na grande tela, veem as celebridades, participam das entrevistas com diretores e artistas, e tem o prazer de descobrir filmes por si mesmos.

Uma das mais agradáveis descobertas de 2018 foi o número de filmes centrados em mulheres. Destroyer foi uma das mais inesperadas exatamente porque a sua premissa – Nicole Kidman interpreta Erin Bell, uma detetive alcoólatra e dissoluta de Los Angeles com um passado sordidamente violento – parece absurda, até risível. Mas o filme funciona, em grande parte porque a diretora Karyn Kusama, conhecida pelo seu filme independente Girlfight, insistiu na malevolência do material e manteve sob controle o sentimentalismo de modo tão veemente quanto a diligente estrela da história. É o autêntico filme violento, sensacionalista e chocante, com muito sangue, desespero e pessoas malvadas.

É também uma viagem incomodamente envolvente. Embora Destroyer lembre abertamente o épico de Abel Ferrara de 1992, Vício Frenético, ele é muito específico. E como ocorre com várias outras seleções em festivais, é um história da catastrófica queda profissional e pessoal de um personagem, com indícios de uma possível redenção. À primeira vista Nicole Kidman está quase irreconhecível, seu rosto cuidadosamente manchado e usando casacos de couro, os olhos vermelhos que parece que ela está numa ressaca permanente. Seu desempenho é tão bom, contudo, que logo você se concentra nele e não na sua imagem transformada.

É muito gratificante ver uma atriz como Nicole Kidman usar tudo que tem no seu arsenal artístico e ao mesmo tempo assumir o risco de não conquistar a simpatia ou amor da plateia. Erin Bell não é uma figura simpática ou que alguém tenha vontade de se relacionar, esteja ela embriagada ou atirando com uma arma. Mas a percepção é de que é um ser humano. A mesma coisa é verdade no caso da diva pop Celeste protagonizada por Natalie Portman em Vox Lux, outro grande destaque do festival. Dirigido pelo ator Brady Corbet, o filme começa com um tiroteio em uma escola do qual Celeste sobrevive e, quando uma música que canta no funeral se torna sensação na internet, ela se transforma num novo deus, o que provavelmente explica o título em latim do filme que significa voz e luz.

Narrado por Willem Defoe e com uma brilhante trilha sonora de Scott Walker e canções de Sia, Vox Lux gira em torno de ideias sobre a violência solta em corpos e almas – em vez de oferecer uma mensagem sobre os perigos da celebridade. Celeste ascende e depois tropeça (Natalie Portman oferece um dos tropeços mais oportunos que já vi) às vezes de modo hilário. Aparentemente os outros filmes que tratam da ascensão e queda de estrelas mulheres não são do mesmo tipo dos metacomentários sobre lutas enfurecidas e abusos com que as mulheres do setor de entretenimento continuam a se defrontar.

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Buscar o sinal dos tempos em um punhado de filmes é sempre insano. Mesmo assim é difícil não relacionar filmes tão diferentes como Uma Estrela Nasce e Vox Lux com o que vem ocorrendo fora do cinema, como as notícias sobre o executivo da CBS Les Moonves (obrigado a se demitir por causa de acusações de assédio sexual contra mulheres) e uma manifestação no sábado em Toronto em favor da igualdade de gênero realizada na frente da sede do festival. O diretor Alex Perry talvez não tenha tido a intenção de enfatizar a questão da política sexual com seu filme Her Smell, sobre uma cantora punk (Elizabeth Moss), mas mesmo as chamadas mulheres autodestrutivas têm muita ajuda no caminho da sua derrocada.

O mundo habitado pela personagem principal do filme Gloria Bell não é glamouroso e nem sórdido como em alguns outros filmes selecionados com foco em mulheres. Ele é intencionalmente mais comum. Escrito e dirigido pelo cineasta chileno Sebastián Lelio, é um remake do seu próprio filme em língua espanhola Gloria (de 2013), estrelado por Paulina García como uma divorciada. Uma igualmente maravilhosa Julianne Moore estrela agora esta nova versão, ambientada em Los Angeles. 

Ali Gloria trabalha, cuida da sua família (Michael Cera e Caren Pistorius interpretam seu filho e filha adultos) e está em busca do amor, com frequência girando por clubes de dança escuros. Uma noite ela depara com Arnold (John Turturro), um encontro que dá início a uma intimidade molesta que se torna ao mesmo tempo erótica, cômica e enternecedora. Um dos prazeres de um filme como Gloria Bell é a maneira com ele transforma uma vida comum numa ficção envolvente. 

Nada especialmente excepcional acontece. Gloria não se torna uma depravada ou uma criminosa, como no caso das mulheres em Widows, de Steve McQueen, um filme de arte explorando o cinema que nunca é tão bom quanto suas estrelas principais (Viola Davis e Elizabeth Debick, especialmente). Lelio parte da suposição de que existe muito material para enredo no ato de se apaixonar, ter filhos, ou simplesmente despertar de manhã.

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Os personagens do adorável, às vezes melancólico If Beale Street Could Talk, o mais recente filme de Barry Jenkins (diretor de Moonlight, precisam lutar para ter uma vida normal sem serem molestados. Baseado num romance homônimo de James Baldwin de 1974, o filme segue um jovem casal, Tish e Fonny – interpretados por KiKi Layne e Stephan James – quando iniciam sua vida juntos. Antes eles viviam uma vida boêmia num apartamento no porão sombrio em West Village, com uma banheira no centro. E ali, enquanto Tish relata sua história com a voz em off, os dois planejam seu futuro e Fonny reflete, transformando blocos de madeira em escultura em meio ao redemoinho de fumaça do cigarro.

Em muitas histórias boêmias, a luta quase sempre é interna. Neste caso, contudo, Tish e Fonny também sentem o peso de toda a história do racismo americano que afeta seus momentos quotidianos aparentemente simples, como encontrar um lugar para viver ou um supermercado. (Há também uma alusão ao El Faro, um dos restaurantes favoritos de Baldwin).

Jenkins realizou um belo filme. E ele é particularmente bom em criar intimidade e empatia com close-ups que são tristes e conturbados. E por meio dos seus personagens ele cria um mundo que é obstinadamente pessoal e nunca deixa de ser político. / Tradução de Terezinha Martino

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